As placas tectónicas nas manchetes

Notícias Magazine

O terramoto no Nepal, o desabar do teto do mundo, se não estava escrito nas estrelas, estava nas placas tectónicas, quando o supercontinente Gondwana se fragmentou – reparem, nem invoco a era Paleozoica, fico-me pelo Mesozoico, só há 200 milhões de anos, quase ontem. Então, o Gondwana desfez-se como herança nas mãos dum estoura-vergas. A América do Sul disse ao nascer, como o bebé no poema de Almada Negreiros: «Mãe-África vou viajar.» A Austrália foi para a direita e a Índia acelerou rumo ao norte e espatifou-se sob os Himalaias, como um automóvel Tata nas traseiras dum camião. Ainda hoje, a cordilheira sobe um centímetro por ano por causa do choque. Outras vezes abana como nos disseram nesta semana os jornais.

Mas não são estes caminhos de continentes que trago aqui. Um dia, estava eu numa restinga da Vila Velha, a mais velha cidade do estado do Espírito Santo, Brasil. Andava pela praia na hora parda da manhãzinha, desenterrava conchas com o dedo grande do pé, se reconhecia uma, baixava-me e acariciava-a, e sonhei-me num algures previsível. Tanto, que me assustei quando do mar veio o primeiro raio do Sol. O nascer do Sol, no mar? Então, eu não estava na Samba, vindo da Praia do Bispo? Virei-me e acordei na Vila Velha, Brasil, não na minha Luanda, Angola. A mesma terra vermelha, a mesma vegetação de mangue, os mesmos caranguejos de praia… Há cem anos, no outono de 1915, o alemão Alfred Wegener também andou a descobrir identidades espantosas entre costas opostas e longínquas e inventou a teoria da deriva dos continentes.

Wegener vingou os miúdos mais vivos que, olhando o mapa do hemisfério sul, sabiam ver que a América do Sul e a África já se abraçaram. Wegener, meu herói, alimentador da minha megalomania infantil: um dia, o meu lago (Mindelo, na ponta do triângulo, Rio e Luanda, nas bases) será o maior dos oceanos, todo falado em português, assim a América do Sul continue a navegar a toda a brida para oeste… Em homenagem ao centenário das terras siamesas separadas, trago esta crónica sobre a coluna deste sonho.

É, esse mar tem uma coluna vertebral. Chama-se cadeia meso-oceânica e junta a planície abissal de Angola à planície abissal de Pernambuco (nem calculam como acho isto erótico). Escondidinha como tudo que é abissal mas com três ilhas vulcânicas que aparecem sobre a espuma do oceano a fazerem tagatés: de cima para baixo, Ascensão, Santa Helena e Tristão da Cunha. Repararam? De batismos portugueses. A ilha de Ascensão começou até por ter outro nome português, Conceição, dada pelo seu descobridor João da Nova, em 1501. Quatro anos mais tarde, Afonso de Albuquerque, de volta da Índia, rebatizou-a por lá ter passado no feriado santo da Ascensão. A ilha de Santa Helena também foi descoberta por João da Nova. E a ilha de Tristão da Cunha foi descoberta pelo próprio, quando ia para a Índia, em 1506.

Vão dizer-me, tudo acasos, toca e foge, batiza-se e deixa-se as ilhas na roda para que outros as criem. De facto, as três são territórios britânicos. Mas há pormenores que indiciam um destino (Pessoa explica esses mecanismos de Quinto Império). Seguem-se alguns indícios, de baixo para cima. Tristão da Cunha (297 habitantes) é o lugar mais remoto do mundo (o mais perto da ilha é Santa Helena, a 2000 quilómetros), e o seu descobridor foi quem levou a célebre embaixada portuguesa a Roma (1514), com um elefante. Para mostrar ao mundo como ele é diverso. Santa Helena (4255 habitantes) teve como seu primeiro habitante o soldado Fernão Lopes, que lá viveu mais de 20 anos (até 1545), na solidão – foi precursor de Robinson Crusoé. Para mostrar que o mundo é uma ilha. E Ascensão tem uma das quatro antenas centrais em terra do GPS. Para o mundo se encontrar. O Atlântico Sul é um mundo. Se um dia nos convencermos de que é o nosso mundo…

[Publicado originalmente na edição de 3 de maio de 2015]