A jornalista inglesa que fez a última grande entrevista à agora candidata à presidência dos EUA dá conta de uma Hillary complexa, a quem não ficam bem etiquetas.
Já começou. Vinte e quatro horas depois de Hillary Clinton anunciar a sua candidatura à presidência dos Estados Unidos da América, ouvi chamarem-lhe cabra. Assim como li que, aos 67 anos – a idade de Ronald Reagan quando se candidatou pela primeira vez ao cargo e mais nova do que John McCain quando enfrentou Obama –, Hillary é demasiado velha. E ainda que Bill O’Reilly, da Fox News, acredita que «tem de haver desvantagens numa mulher presidente».
Quando Hillary, enquanto secretária de Estado, conheceu Aung San Suu Kyi, a figura de proa da dissidência birmanesa, expressou o seu desejo de ser uma política de «carne e osso». Hillary avisou-a de que não era coisa para fracos. E sabia bem do que falava. A sua tentativa, nas primárias de 2008, de chegar à corrida presidencial foi um espetáculo de sexismo: os apartes de atletas universitários do género «faz-me uma sanduíche», os quebra-nozes Clinton em forma de coxas, a sátira de South Park sobre uma bomba nuclear na sua vagina.
Para um setor da América, Hillary não era uma licenciada em Yale [uma das mais prestigiadas universidades norte-americanas] e uma senadora que se candidatava legitimamente a um alto cargo, mas uma emproada, uma víbora, a representação de uma irascível e conflituosa primeira mulher de qualquer homem de meia-idade.
Há dez meses, quando entrevistei Clinton em Nova Iorque, perguntei-me por que se disporia ela a passar por todo aquele inferno de novo. Hillary mostrou conhecer bem a batalha que tinha pela frente. «Qualquer pessoa que entre na arena pública nos dias de hoje sabe muito bem que é um ambiente brutal e implacável», disse-me. Além disso, considerou que o preconceito em relação às mulheres tem vindo a aumentar, com uma atitude vil e moralista a grassar na internet e nas redes sociais. A candidata cresceu na década de 1960, um tempo em que, dizia, «não havia a exibição constante do modelo de aparência que uma mulher deve ter, nem a mensagem velada de que, se não correspondermos a esse modelo, não somos suficientemente boas».
Em relação à sua energia e ao seu apetite pela campanha e pelo poder não tenho quaisquer dúvidas. Nessa altura, Hillary Clinton estava num momento de pausa política: a lançar as suas cautelosas e depuradas memórias, Escolhas Difíceis, sobre a sua missão diplomática de mais de um milhão de quilómetros, a reunir forças e à espera do nascimento da neta. Mas o circo montado à sua volta já era presidencial: agentes dos serviços secretos a sussurrarem em auriculares no elevador, devotados e argutos jovens assessores que pareciam saídos de Os Homens do Presidente, rosas em cima da mesa, escolhidas para combinarem exatamente com a cor do seu casaco.
Ao contrário das pivôs de televisão da sua geração, Hillary não fez operações plásticas nem passou fome para agradar a uma nação obcecada com a juventude. É uma mulher bonita e de constituição delgada. Aparenta a idade que tem, e é, sem dúvida, a pessoa de raciocínio mais rápido que já entrevistei. Nem Sheryl Sandberg [COO do Facebook], George Osborne [ministro das Finanças britânico] ou Condi Rice [secretária de Estado de George W. Bush] conseguem rivalizar com a sua rapidez sináptica, o espaço infinitesimal entre o fim da minha pergunta e o parágrafo subtil e perfeito da sua resposta.
Quando sugeri que a imagem do presidente é de uma vibrante jovialidade, todas aquelas subidas, em passo de corrida, das escadas dos aviões, ela riu-se. «Usar sapatos rasos, esse é o meu conselho!», retorquiu. «Acho que se pode ter pessoas de todas as idades, de todas as origens, com todos os atributos, umas têm energia, outras não… Mas eu acho que mais do que a idade, importa a conduta.»
E que conduta deve ter uma mulher com expetativas presidenciais? Esse tem sido o dilema de Clinton. Se um homem fala com dureza, é forte; se for uma mulher a fazê-lo, é uma bruxa ou – mais uma vez – uma cabra. Clinton era tida como «glacial» porque era demasiado inteligente para aturar gente tonta; uma intelectual pedante e altiva como primeira-dama porque preferia pensar a reforma da saúde do que fazer bolachas. No entanto, após a famosa fotografia dos membros do governo de Barack Obama a testemunharem no ecrã a morte de Osama bin Laden, uma Hillary chocada, com a mão a tapar a boca, foi julgada por demonstrar uma fraqueza «tipicamente» feminina.
Em 2008, minimizou as suas credenciais feministas e baseou a candidatura no calibre intelectual e na experiência. Desta vez, representa as mulheres e quer ser a primeira mulher presidente dos Estados Unidos da América. A sua filha, Chelsea, já afirmou que o país está pronto para isso. E no exterior da sessão de autógrafos de Hillary Clinton em Nova Iorque encontrei centenas de mulheres ansiosas pela sua candidatura. Mas a candidata não atrai apenas os liberais de Manhattan. Em 2008, numa pequena cidade do Ohio, entrevistei mulheres socialmente conservadoras, pouco inclinadas a votar nos democratas, que por ela mudariam o sentido de voto. Uma das mais-valias de Hillary está resumida no slogan da sua promoção não-oficial: a Sisterhood of the Pansuit [a Irmandade do Fato Calça-Casaco].
A mulher de fato não é uma beldade fútil. É prática, trabalhadora, altruísta, sensata: tem um trabalho extra depois de um divórcio complicado, leva uma refeição quente ao vizinho que está de luto, ajuda os filhos a resolver os seus problemas. Depois de décadas na sombra de Bill, a suportar as suas traições e tentando salvar o seu casamento, Hillary, a sobrevivente, tornou-se a rainha do fato.
Ser secretária de Estado, assumir finalmente um trabalho digno dos seus talentos, voar pelo mundo, libertar-se da tutela do marido, fez que Hillary se tornasse fixe. Fantástica mesmo. A fotografia dela de óculos de sol, num avião de transporte militar a verificar o seu BlackBerry sem um sorriso, deu origem ao meme de internet «Mensagens de Hillary». A sua mensagem era que Hillary trabalhava, fazia o que tinha de ser feito, era clara e franca no que dizia, estava-se nas tintas.
Consequentemente, tem sido mais leve e bem-humorada relativamente à sua imagem. Além de «Flotus», iniciais para First Lady of the United States (primeira-dama dos Estados Unidos), e «demolidora das barreiras impostas às mulheres», a sua biografia no Twitter inclui «ícone de cabelo». Na verdade, a fachada rígida, impermeável, quase masculina não é a mais eficaz para ganhar eleições. Em 2008, com a nomeação pelo partido a escapar-lhe, exausta, a falar num café em New Hampshire, começou a chorar. Conseguia ouvir-se o chiar de pneus quando as mulheres nas suas carrinhas arrancaram para as mesas de voto: Hillary ganhou essa primária, ainda que não tenha ganho a corrida democrata.
É fácil esquecer, quando conhecemos esta ex-primeira-dama polida e vestida com roupas caras, que ela era filha de um fanqueiro de Park Ridge, Illinois, uma marrona caixa de óculos que ganhou uma bolsa de estudo. No seu primeiro livro de memórias relembra o seu deslumbramento diante das sofisticadas raparigas de Yale a fumarem e a falarem sobre a Europa: ela nunca tinha saído dos EUA até conhecer Bill.
Pouco tempo antes da minha entrevista, Hillary tinha sido atacada por revelar que aceitou fazer palestras altamente remuneradas porque, após deixarem a Casa Branca, Bill e ela estavam «falidos». Será que consegue entender aqueles a quem chama, no seu vídeo de lançamento da campanha, de «americanos comuns»? «Claro que sim, eu sei como a vida é difícil», respondeu de forma inflamada. «Bill e eu tivemos empréstimos para estudar. Nenhum de nós nasceu com qualquer tipo de… posição social e riqueza. Fomos muito afortunados porque ele esteve na vida pública durante muito tempo, mas o outro lado da moeda foi que, quando saímos da Casa Branca, tivemos mesmo que agir para reunir os recursos necessários para viver – não tínhamos uma propriedade de família ou uma casa maravilhosa à nossa espera. Tivemos de ir à luta, por nossa conta.»
A expressão «ir à luta» é sincera. Os seus críticos dizem que ela não é uma outsider corajosa, mas sim um «animal político» dos duros, herdeira dinástica manchada pelos escândalos do marido, Whitewater e Lewinsky, além dos seus próprios e-mails secretos quando ainda estava em funções. Dizem que a Fundação Clinton tem ligações com regimes indesejáveis e que, longe de desejar restringir o capitalismo neoliberal, é, ao invés, muito próxima de Wall Street.
Talvez sim, mas os seus partidários irão contrapor que também não há políticos, homens, perfeitos e que Hillary Clinton é a melhor hipótese que as mulheres alguma vez tiveram de chegar ao poder. Sejam quais forem as suas enviesadas manobras de bastidores, Hillary nunca abandonou os seus princípios feministas. Enquanto secretária de Estado argumentou, frente a líderes em todo o mundo, os quais, relembra, ficavam sentados a revirar os olhos, que a educação das raparigas contribui para o desenvolvimento económico, que os direitos das mulheres são direitos humanos.
Quando nos encontrámos, perguntei-lhe sobre os ataques legais e muitas vezes violentos a clínicas de aborto norte-americanas. Respondeu com ousadia, sem pensar na forma como as suas opiniões iriam ser recebidas nos Estados indecisos. «Aquilo a que assistimos nos Estados Unidos da América é um retrocesso no que respeita à saúde reprodutiva e aos direitos das mulheres, que chega ao ponto de negação de certas formas de contraceção por parte desses grupos minoritários, mas determinados, que nunca desistirão de fazer tudo o que puderem para impor as suas crenças e os seus valores a todos os outros», afirmou.
Desde 2008, o feminismo tem estado em ascensão, no entanto, acabei de ler um comentário sobre as hormonas de Hillary, o temperamento difícil, provável na mulher pós-menopausa, como se a redução de estrogénio pudesse ser mais perigosa do que um excesso de testosterona. Quando lhe perguntei se a América pode eleger uma avó, ela respondeu: «Já tivemos tantos avôs na Casa Branca que penso que alguém dizer “Bom, do meu ponto de vista, não tem qualificações por ser uma avó” é demasiado ridículo.»
Mas di-lo-ão na mesma, porque uma mulher presidente – talvez mais do que um presidente negro – ameaça o status quo. Homens zangados continuarão ainda a gritar a Hillary Clinton em 2016 «faz-me uma sanduíche». A diferença é que as mulheres, não só nos EUA, em todo o mundo, estão prontas para a apoiar.