As amigas geniais

Notícias Magazine

Agora entrei em carência à espera do quarto volume, a história de uma menina perdida. Gostava de saber o que se passa com a Lena e o Nino, por onde anda a Lila, se finalmente saiu de Nápoles ou se desapareceu na paisagem da cidade. Falo dos livros de Elena Ferrante, a escritora italiana misteriosa que assina os quatro volumes de A Amiga Genial, publicados em Portugal pela Relógio d’Agua, traduzidos, e tão bem, por Margarida Periquito. Já fui espreitar ao site da editora, até ao fim do ano não chega o último da série. Em carência, portanto.

Duas amigas estão no centro da obra, Lena e Lila, e ao longo da vida delas podemos sentir como a Itália – ou Nápoles – do pós‑guerra vai evoluindo, como o esquema mafioso de dominação da vida económica da cidade se vai adaptando às novas situações. O acesso à escola, ao saber, como forma de escapar às expectativas banais, o início do design moderno, os primórdios da informática com os cartões perfurados. Em fundo, as contradições entre as lutas operárias e as pressas dos jovens que passaram pela universidade, e o surgimento das Brigadas Vermelhas. Tudo isso e o universo em que se desenrolam as vidas das pessoas que dão corpo aos livros, as famílias simpaticamente esquematizadas no inicio de cada volume – e essa é uma informação bem útil.

Lena e Lila atravessam a segunda metade do século xx, numa sociedade em que a vida das mulheres mudara, tão dolorosamente, apertadas entre as regras sociais, a violência que as oprime e a vontade de fazer de outra maneira.

Escrevo enquanto dou atenção às noticias de Paris, longe do dia em que o texto será publicado. Procuro a todo o momento novidades do que se passa em Franca, na Síria, na Bélgica, sou interrompida pelos alertas de informação que recebo no telemóvel. E desligo‑me de Nápoles, por instantes, a recordar como me chocou ver, numa visita recente, a zona de Bruxelas onde em tempos vivi: tão abandonada, tão desprezada, uma cidade suja de passeios destruídos, como se as autoridades achassem normal negligenciar ostensivamente estes bairros onde vivem os imigrantes africanos, do Magreb ou do Zaire e do Senegal. E como é visível, óbvio, o contraste com o esmero de outros bairros da capital da Europa. Como se a cidade estivesse sempre a dizer: não queremos saber de vocês.

Volto a Nápoles e a Elena Ferrante, a escritora que se define como uma mulher que anda sempre com um livro e um bloco de notas, e que tem páginas terríveis de violência e de dor, personagens que estão sempre em causa, porque nada é linear nem amável na vida de todos os dias, e nada é apenas aquilo que cada um pensa que é. Mais do que a história de Lena e Lila, é aquilo que somos que é posto a nu, as hesitações, os grandes projetos afinal desinteressantes e inúteis, o esforço e a desistência. Lena é aclamada porque escreve e chega a um patamar diferente daquele de que partiu, e desprezada porque escreve e chega a um patamar diferente daquele de que partiu. Lila cerra os dentes e vai‑se destruindo e ao mesmo tempo reforçando, percebendo sempre mais do que deixa saber. É o esplendor da vida das pessoas comuns que procuram um caminho para a mudança ou se acolhem ao conforto de não mexer em nada. Uma leitura empolgante, esta que a italiana misteriosa nos oferece.

[Publicado originalmente na edição de 22 de novembro de 2015]