Se eu vivesse num país em guerra e tivesse diamantes suficientes para encher uma mala, enchia mesmo a mala, pagava a preço de ouro um bilhete para atravessar o mar numa casca de noz e, em caso de sobreviver e sempre sem largar a valise, deixava-me ficar num campo de refugiados com a minha família e as famílias de outros, em tendas improvisadas, ao frio e à chuva, desejando com todas as minhas forças que a Dinamarca me acolhesse e gastasse comigo, em subsídios e outros privilégios extraordinários, o dinheiro destinado à Segurança Social. Dava cabo das economias deles. Garanto que fazia isso, não havia nada que pudesse tornar-me mais feliz nem mais rica.
Infelizmente, a Dinamarca é muito mais perspicaz do que eu e incumbiu os polícias de revistar as minhas malas e mochilas e outros meios de transporte de diamantes para confiscar tudo que seja valioso. Que diabo, alguém tem de pagar as despesas dos refugiados que não têm malas cheias de diamantes e arrecadas de ouro de Viana. Eu já devia ter imaginado isto, porque eles puseram anúncios em jornais: não venham para cá. Mas pensei que não era comigo, que era só para os que não têm malas cheias de rolexes e que a mim haviam de receber-me de braços abertos, e haviam mesmo de subsidiar-me para me estabelecer como negociante de diamantes e cristais da boémia. Puseram-me de lado e agora já não tenho a certeza de querer ir para a Dinamarca. Com a minha mala cheia de ouros e marfins vou procurar um outro país que não me receba suspeitando de que: a) sou terrorista; b) sou milionária; c) podia muito bem ter ficado na minha terra.
Vá lá saber-se porquê, foram mal recebidas pelo mundo fora as 34 medidas internas dos dinamarqueses para a crise dos refugiados, entre as quais o confisco pela polícia de todos os bens com valor superior a 3000 coroas, o que pode parecer uma coisa extraordinária mas são 400 euros, mais coisa menos coisa. Isto porque, disse um ministro, podem aparecer pessoas que vêm a pé pela fronteira com uma mala cheia de diamantes e não seria justo estar a pagar-lhes alojamento e comida. Entre reminiscências dos dentes de ouro arrancados nos campos de concentração nazis e caixotes de obras de arte dos museus e coleções, por um lado, e o ligeiro incómodo de deparar com uma decisão de mau gosto, por outro, as reações de quem parou pelo menos 30 segundos para pensar nisto não deixaram a Dinamarca bem-vista. Talvez até algumas pessoas se tenham lembrado daquele dia 2 de setembro, quando nos fixámos na imagem de Aylan a ser tocado levemente pelas ondas da ilha de Cós. Estava sol, naquele dia, e toda a gente ficou de lagriminha ao canto do olho, ai que grande tragédia esta. Mas agora o que é preciso saber é se há malas cheias de diamantes a cruzar a Europa.
As minhas malas de diamantes (mais do que uma, o que pensam?) ninguém vai apanhá-las, muito menos confiscá-las. Um dia que eu as tenha (e até é altura de pensar nisso porque na passagem de ano há que tomar decisões), levo-as para outro lugar. Não gosto de gente que vê pessoas em desespero, tem meios para ajudá-las e prefere fechar-lhes a porta na cara, deitando para o lado umas frases de humor macabro. Por exemplo: «Tudo bem, se forem alianças de casamento ou telemóveis, coisas com valor sentimental, podem guardá-las, mas ficamos com as peças de valor.»
Há 400 anos, Shakespeare fez do reino da Dinamarca um lugar de toda a humanidade. Ser ou não ser, eis a pergunta de Hamlet.
[Publicado originalmente na edição de 27 de dezembro de 2015]