Ana Moura

Cantou com os Rolling Stones, volta e meia passa uns dias na casa-estúdio de Prince, viaja pelo mundo… e continua a ser a menina tímida que fecha os olhos para cantar fado. Entre os concertos na Austrália e na Estónia, está a lançar um CD, com sonoridade nova e amigos lá dentro. Ao lado dela, sempre, o manager, Paulo Marques, a resolver problemas. Atrás de tudo, os pais que a rodearam de música desde miúda.

Uma miúda, é isso que parece, com a voz doce e baixa sempre rápida a responder. Não puxa dos galões de quem frequenta os meios top do show business, é preciso perguntar, tornear a questão para chegar lá. Fala muito da mãe, «a maior amiga», e não se gaba de ter uma casa enorme, diz apenas que mora perto dos pais. Fala com sinceridade, a mesma que usa em cima do palco e que desarma os públicos. As fragilidades estão lá mas guarda-as para os momentos pesados. Está divertida e conta os 36 anos de vida, como se fosse normal fazer o que fez em apenas oito anos.

O que traz de diferente este disco, Moura, na sua maneira de estar em relação ao fado?
_A grande diferença tem que ver com o som. Os arranjos são muito mais elaborados. O Desfado era mais cru, mas já então fizemos experiências musicais e agora explorámos mais. A guitarra portuguesa tem um tratamento bastante elétrico e isso nunca tinha acontecido, soar com estes efeitos. Foi gravado normalmente, em Los Angeles, e depois a guitarra portuguesa foi gravada com os efeitos de pedal. Isso é visível no Tens os Olhos de Deus, do Pedro Abrunhosa. O solo da guitarra, no final, aqueles efeitos…

Aquilo é uma guitarra portuguesa!?
_Pois! Este disco tem tantos arranjos e sonoridades diferentes que as pessoas não percebem que instrumento está a tocar. Mas aquilo é uma guitarra portuguesa, e isso é incrível. Gostava de fazer isso em palco, usar uma loop station… Esse vai ser o grande desafio.

Tem cantado muita coisa, mas o fado continua a ser o principal?
_Eu sinto‑me fadista. Houve um momento na minha vida, que foi o Desfado, em que tive de quebrar zonas de conforto, barreiras, relacionamentos. Só tinha gravado com um produtor e tocado sempre com os mesmos músicos. Mais velhos do que eu e que são extraordinários, que me ensinaram muito, mas sentia‑me dependente deles. E resolvi mudar tudo. Tomar o passo foi desconfortável. Mas depois tive uma sensação incrível de liberdade e de segurança.

Porque tomou conta do assunto?
_Sim. Foi o primeiro disco em que participei mais na produção. É bastante libertador. Quando estamos associados ao trabalho de outros, as pessoas que nos rodeiam dizem: «No dia em que se separarem, aquilo não vai dar certo.» E, para mim, foi… Incomodava‑me que as pessoas achassem que não conseguia seguir o meu caminho. Daí a minha vontade de quebrar tudo ao mesmo tempo. E agora vou para a frente.

Isso correspondeu também a uma mudança na maneira de viver?
_Sem dúvida. Deu‑me uma segurança de que precisava. Sou tímida, e essa timidez, aliada à insegurança, não me permitia aproveitar as oportunidades. Hoje aceito a timidez, é uma característica minha. No início da carreira, diziam‑me: «Ana, os artistas não podem ser tímidos! Tu tens de…» E davam‑me o exemplo de outras artistas da minha área que eram seguríssimas. Mas eu acreditava que se podia ser tímido, porque aquilo que sempre procurei na música era o que o artista me fazia sentir. Sentia‑me um patinho fora de água quando entrei neste meio. Porque as pessoas pediam‑me aquilo e eu não conseguia dar.

E não tinha de dar, não é?
_Sinto‑me feliz também por isso, por ter descoberto que, de facto, não tinha de dar. Eu posso ser tímida, posso ter estes estados de caráter na mesma. Ainda por cima no fado, que vive daquilo que transmitimos, da alma. Senão, somos umas marionetas.

Na sua voz transparece doçura e firmeza, mas não transparece essa timidez.
_Sempre me disseram que esse lado um bocadinho mais frágil desaparecia a cantar.

E não sente isso?
_Sinto.

Cantar numa casa de fado ou no Carnegie Hall é muito diferente?
_É diferente porque um espetáculo pede um alinhamento, uma coisa mais cuidada. Na casa de fados, eu nem sequer sabia o que ia cantar. Cantava o que me apetecia, uma coisa do momento, espontânea. Há beleza nas duas coisas. E aquela proximidade, a luz, o facto de não haver microfones e aparelhagens que nos distanciem… Quem cantou muitos anos em casas de fados habitua‑se àquele som. Foi tão difícil aprender a ouvir a minha voz através de um microfone e encontrar o microfone certo, que fosse o mais fiel possível ao meu timbre. Não tenho um canto muito virtuoso, vive mais daquilo que transmito, daquilo que eu sinto e do timbre da minha voz, que tem algumas frequências. E há microfones que não são fiéis.

Vi‑a subir ao palco com os Rolling Stones e pensei no que estaria a sentir diante de um público tão diferente do seu, ao lado daqueles monstros. E depois cantou ao lado do Prince. É preciso coragem ou é «seja o que Deus quiser»?
_Eu estava nervosíssima. Já tinha cantado aquela música no projeto deles, mas sozinha, num tom arranjado para mim e em estúdio. O Mick Jagger convidou‑me no próprio dia. Eles tinham estado na noite anterior na Casa de Linhares e convidaram‑me para assistir ao concerto e para jantar antes com eles no backstage. Estava eu a chegar quando o Tim Ries me liga a dizer: «Eles estão a convidar‑te mesmo para tu cantares.» E depois o Mick Jagger disse‑me que cantava seis notas acima da minha. Ou seja, era impossível, para mim, cantar naquela nota. É possível quando nós improvisamos, quando dentro daquela melodia criamos outra melodia que caiba naquela estrutura musical. Ou seja, nervosa, não ensaiando, como é que eu ia ali, em frente àqueles milhares de pessoas, de repente, improvisar? Não podia. Foi muito complicado. Passámos duas vezes a música, mas isso não é ensaiar. À noite, já me tinha esquecido do que tínhamos feito duas horas antes. Pensei: «Não vou estar preocupada em provar nada a ninguém, vou tentar usufruir ao máximo deste momento.» Entrei – o palco era enorme – e estava o Keith Richards logo ali, aquela figura: «Hey, Ana.» Comecei logo a rir-me e a andar ao encontro do Mick Jagger, e pronto. O público começou a gritar pelo meu nome e ele disse: «Ana Moura!» E eu, aquilo, ai, custou‑me tanto!

Ouvia as músicas dos Rolling Stones desde miúda?
_Eu ouvia, os meus pais ouviam. Quem é que iria imaginar!

Canta desde pequenina, ouve música desde pequenina, tudo começou muito cedo?
_Muito cedo porque os meus pais são amantes de música. Nenhum deles seguiu a música como profissão. O meu pai, antes de se casar, tinha uma banda e tocava bateria, guitarra, teclados. Mas o instrumento dele é a guitarra. Quando era pequenina, eles eram novíssimos e os nossos fins de semana eram sempre passados com os amigos. Havia um pub perto de nossa casa, o meu pai levava a guitarra e havia cantoria até às tantas. E paravam para me ouvir cantar. Eu tinha 4 anos e havia sempre um momentinho em que o meu pai tocava e eu cantava. Não era aquela coisa do «Que engraçado! A criancinha…» Eles repararam cedo que eu era afinada e tinha jeito. Para mim sempre foi natural. Via as minhas amiguinhas, que tinham jeito para outras coisas, e eu era para aquilo que tinha jeito, pronto.

E pensou que isso ia ser a sua vida? Ou queria ser bombeira, cabeleireira ou professora primária?
_Eu achava que ia ser veterinária, porque adorava animais e queria estar junto deles. Estudei até ao 12º ano, na área de Saúde. A partir do 10.º comecei a ter aulas particulares de canto, e quando depois fui estudar Música na Academia, no Chiado, mas não terminei porque comecei a trabalhar nas casas de fado e a viajar, antes mesmo de ter o meu primeiro disco. Não é como noutras universidades, não dá para faltar.

Como percebeu que queria cantar fado?
_A vida foi‑me dando sinais. Antes, aos 18 anos, gravei um disco de pop rock, fui escolhida num casting, mas não tinha a atitude roqueira, de me chegar à frente. Era muito tímida. E então o produtor pediu‑me para cantar um fado. E eu fechei os olhos e comecei a cantar. E ele disse‑me que queria que eu cantasse rock com a mesma segurança, a mesma atitude que tinha no fado.

E era possível, cantar rock assim?
_Era, mas era um meio onde não estava à vontade. Era a primeira vez que estava em estúdio, a trabalhar com um produtor. Em casa, a cantar aquelas músicas, era toda roqueira. Mas ia para ali e sentia‑me tímida. Mas desde miúda que canto fado… A minha mãe diz: «Ana, cantas bem muita coisa, mas tu és é fadista.»

E sente‑se assim?
_Sinto. Por brincadeira, fui cantar a uma casa de fados e começaram a andar atrás de mim. Mas eu só queria cantar, não queria estar fixa em casa de fados nenhuma. Tinha o disco de rock e os meus sonhos estavam direcionados para ali. Queria lançar o disco e começar os concertos. Mas acabei mesmo por ficar no fado.

E o que é o fado? É uma coisa intuitiva?
_É uma coisa intuitiva e indescritível. Ouvia as pessoas a discutir: «Aquilo é fado. Aquilo não é fado.» Discussões incríveis, baseadas em teorias bastante distintas. Cheguei à conclusão de que é algo que se sente. Não dá para explicar. «O que diferencia uma fadista são os trinados.» E não é verdade, houve fadistas que nunca fizeram trinados, como a Lucília do Carmo, que é fadista por todos os lados. Ou a Aldina Duarte. É uma questão de alma. Mas isso também é discutível porque a soul music também é uma música de alma. Só que é a alma portuguesa. Para mim, o fado é a música que melhor define a alma portuguesa. Se eu ouvir a Amália a cantar o Summertime, eu sinto‑o como fado.

Na sua casa ouvia‑se muito fado?
_Os meus pais cantam fado os dois. A minha mãe estava sempre a cantar fado em casa. Todas as minhas tias cantam fado. Da Amália, essencialmente. O fado que a minha mãe mais cantava era O Xaile de Minha Mãe, tão antigo que não sei de quem é. Mas também ouvíamos música portuguesa de todo o género. O meu pai é fã do Fausto, ouvíamos Rui Veloso também. Aliás, as primeiras músicas que comecei a cantar eram do Rui. Ouvíamos música brasileira, música africana, porque a minha mãe é angolana e o meu pai cantava muito a música angolana antiga, do Rui Mingas, do André Mingas. Aliás, eu canto em quimbundo e umbundo porque adoro.

Já gravou alguma vez?
_Nunca, mas gostava. A música angolana antiga também vive muito da alma. E o semba tradicional tem esse swing e essa coisa da alma do cantor. O Rui Mingas vive muito aquele timbrão, aquela voz encorpada. A minha voz tem determinadas características porque fui buscar coisas ao meu pai mas também ao meu lado africano.

Quando ouvi no Moura a música da Sara Tavares e do Kalaf, pensei que seria africana, mas afinal…
_… é um fado incrível, lindo. Também pensei isso.

O Prince começou por assistir a um concerto seu, em Paris. Sabia que ele estava lá?
_Sabia. Era suposto ele assistir ao sound check mas não veio e fiquei tristíssima. Chegou minutos antes de eu entrar em palco e foi cumprimentar‑me. É uma pessoa muito particular. É tímido, não parece mas é. Tem aquela atitude que aparenta ser muito severa, mas é um doce. É uma pessoa muito dedicada à música, um workaholic, vive no estúdio. Todos os dias há música. Já fui passar, várias vezes, alguns dias ao estúdio dele. Os quartos são em cima, as pessoas descem quando acordam, há vários estúdios com várias pessoas a fazer várias coisas. A banda dele está sempre a ensaiar no palco principal, na sala de espetáculos – porque ele também tem uma sala de espetáculos dentro do estúdio lá em Minneapolis. Alguns dormem lá porque vêm de outros sítios.

Uma pessoa vai tomar o pequeno-almoço já com música?
_Sim. Pensei que me fosse cansar, mas não me cansei nada, adorei. É até à noite, e é lindo! Não sei se depois de um ano, sempre, todos os dias… Eu também cantava, mas mesmo que não cantasse, só estando ali a assistir era feliz. Ele, como está sempre a viver neste ambiente, tem de se defender. Tem uma figura miudinha, pequenina, e os músicos são enormes, grandalhões, e ele tem de impor algum respeito. E quer que as coisas sejam feitas da maneira que idealizou. É multi‑instrumentista, é produtor, é arranjador, ou seja, ele faz tudo e mais alguma coisa. Ele tem dos melhores músicos mundiais ali, a tocar com ele. E vai para a bateria e faz: «Não. Isto é assim.» E se alguma coisa corre fora do que… Já o vi a despedir um técnico de palco a meio de um concerto. «You, out!» Mas é uma pessoa que ajuda imensa gente.

Quando cantou ao lado do Gilberto Gil, deve ter‑se sentido outra vez ao lado dos amigos dos pais, não?
_Sim, e meus amigos. Quando era pequenina, via o Pica‑Pau Amarelo com as músicas do Gilberto Gil e cantava. Tanto que a Novidade foi uma das músicas que escolhi. Ele tem um repertório muito mais interessante, mas, já que ia cantar com ele, pelo menos que cantasse uma das músicas que fazem parte da minha playlist emocional.

Anda sempre em tournées pelo mundo fora. Faz quantos espetáculos por ano?
_Cem ou 120.

Gosta de viver assim?
_Gosto. Percebo que faça confusão a muitas pessoas. Sinto vontade de fazer outras coisas. Só que não tenho o tempo – vou começando a ter – que a maior parte das pessoas tem para se dedicar a coisas fora disto. Eu sou uma pessoa apaixonada, preciso de paixões para andar estimulada. Senão, entro na apatia, e é horrível. Se eu estou a fazer isto é porque consigo ir buscar a algum lado. E faz‑me feliz, sinto‑me realizada. Quando vou cantar a um festival, vou sempre um dia antes, vou ver quem está a cantar, mesmo que não conheça. E já me aconteceu descobrir, de repente. Há artistas que se conhecem em palco e não em disco. Às vezes o disco não tem nada que ver e, depois, em palco são uma coisa completamente diferente.

Lembra‑se de algum que a tenha levado a sentir isso?
_O Tony Allen, baterista do Fela Kuti. Inventou uma forma nova de tocar bateria. Incrível. Provavelmente, não escolheria um disco do Tony Allen para ouvir no avião, no aeroporto. Em palco aquilo é maravilhoso.

Já viajou pelo mundo inteiro, consegue ver as cidades?
_Às vezes. Preciso de dormir oito horas para as cordas vocais poderem recuperar. São dois músculos e somos atletas de alta competição. Com a quantidade de concertos que temos, as entrevistas, a voz precisa de descanso e eu aproveito todas as horinhas para dormir. Nós temos o concerto e não jantamos antes. Não faz bem ir para o palco de barriga cheia. Já tive paragens de digestão por estar a trabalhar com o abdominal, a seguir a ter comido. Aconteceu‑me eu sair do palco, vomitar e voltar para o palco.

Jantam depois do espetáculo? E devem estar cheios de adrenalina.
_Jantamos depois e não posso ir deitar‑me logo a seguir, porque o refluxo sobe‑me para as cordas vocais… Normalmente, vamos andar um bocadinho, à volta do hotel, e depois dormimos. No outro dia, de manhã, temos de acordar para seguir para outro sítio. É uma vida um bocadinho dura para gerir. As pessoas não fazem ideia do pouco tempo que tenho.

Como isso se articula com a família?
_É complicado. Não sou casada, mas sou muito ligada à minha mãe, é a minha melhor amiga. Os meus pais vivem perto de mim. Isso é o que me salva. Tenho dois gatinhos, que eu adoro. E tenho uma sobrinha com quem gostava de estar mais tempo. Se um dia tiver filhos, tenho de acalmar.

Quando está em palco e tem uma sala cheia, sente‑se feliz ou preocupada? Consegue soltar‑se?
_Consigo soltar‑me. Há uns anos não conseguia, foi um processo que demorou. Eu não queria vestir‑me de uma personagem e escudar‑me nela, queria que fosse um processo natural, queria sentir‑me eu, inteira, verdadeira, no palco. E consegui. Hoje, fico um bocadinho receosa: «Há gente na sala?» Gozam muito comigo, porque eu acho sempre que não vou ter a sala cheia.

E no estrangeiro não percebem português, o que acha que eles sentem?
_Não percebem mas sentem. É incrível porque as pessoas choram, emocionam‑se. Não estão a perceber a letra mas entra‑lhes qualquer coisa. Conseguem sentir a emoção, a alma.

Porque a sua atitude é genuína?
_É nisso que eu acredito na música. Há artistas que são muito mais performers e há público que procura aquele espetáculo. Mas as pessoas que me procuram, procuram este meu lado. Dizem‑me muitas vezes que se emocionam. Perguntou se me sinto feliz no palco, se sinto o público. Eu vou passando por vários estágios. Quando a música termina, existem as palmas, muitas vezes até demoro algum tempo a aterrar. Mas quando aterro agradeço, e aí tomo consciência de que existe o público. Ou naquelas músicas mais leves, aí há a consciência de que há o público e há uma interação visível. Nas músicas mais profundas, vou para outro sítio que não sei explicar onde é. Por isso é que não consigo usar in-ears. Hoje, todos os cantores usam. É tudo muito perfeitinho, fica tudo muito afinadinho e tudo não sei quê. Só que eu, isso, guardo para o estúdio. Sou da velha guarda e também não gosto nada de ouvir a minha voz de frente. Gosto de ouvir como se estivesse numa casa de fados. Lá está! Estou sempre a procurar aquele ambiente. Uma vez experimentei e não consegui, sentia‑me uma palhacinha. Preciso de sentir a música no meu corpo. E gosto de olhar para os meus músicos, gosto de lhes dizer uma palavra.

E quando um concerto corre mal? O público percebe?
_Às vezes há coisas pequenas que correm mal. Esqueço‑me de letras, por exemplo, mas tenho um teleponto espetacular, o meu guitarrista. Ele sabe quase tudo. E outras vezes eu assumo mesmo e digo.

As pessoas gostam dessa sinceridade?
_Exatamente, veem que é a minha entrega. Faço cada concerto sempre como se fosse o último. Quase tudo na minha vida, faço como se fosse a última vez. Isto é um defeito, porque sofro com isso, mas também pode ser bom. Se amanhã tenho um concerto no Carnegie Hall e hoje tenho um concerto aqui, numa sala de 300 pessoas, não me vou poupar aqui. Eu não me poupo.

Não entra em exaustão?
_Às vezes, fico emocionalmente desgastada, mas consigo sempre. Não sei explicar. Cheguei há pouco tempo, de gravar o disco em Los Angeles. Foi uma viagem dura, cheguei emocionalmente cansada e fui fazer o Caixa Alfama. Entrei em palco e a carga emocional estava lá toda. Não sei como. Não consigo separar a vida profissional da vida pessoal. Esta é a minha vida pessoal. Nem todos temos de ter vidas iguais. A minha vida passou a ser esta, pronto, é esta.

Neste disco tem músicos portugueses, mas também tem estrangeiros.
_Na guitarra portuguesa, tenho o Ângelo Freire e na viola de fado o Pedro Soares. Todos os outros são americanos. Queria muito trabalhar com o Vinnie Colaiuta, é um dos bateristas mais especiais à face da Terra. E tenho um pianista extraordinário a fazer vários teclados. O mais presente é o [órgão elétrico] Hammond. Por isso é que o disco tem este lado tão espiritual. Não é à toa que o Hammond é usado nas igrejas, dá‑nos um ambiente, entramos noutra dimensão.

Como é que os músicos americanos reagiram ao fado?
_Foi tão giro! O produtor Larry Klein tem tudo escrito e, antes gravarmos cada música, ele dá uma pauta a cada um. Depois, ele diz o que pretende de cada um. Parece uma película de cinema, ele dá imensa importância à palavra, quer que a tradução seja o mais fiel possível, e ele constrói os arranjos, a história, de acordo com as letras. É um disco para se ir descobrindo à medida que se vai ouvindo, tem tantos pormenores… Houve momentos muito engraçados que demonstram essa descoberta dos músicos connosco. O Larry queria que uma das músicas fosse num andamento mais lento e eu não sentia aquilo assim. «Tem de ser mais para a frente». Pedi umas dez vezes, porque era, realmente, uma grande diferença. E então chamei o Ângelo e o Pedro, comecei a cantar e eles foram logo atrás de mim. Os músicos que estavam na regie, tudo de volta de nós: «Wow! Amazing!»

Isso foi em que música?
_Dia de Folga. Eu via‑ o como um fado corrido. E ele com outro swing. E eu estava a ver aquilo mesmo como uma coisa superfadista. Ele gosta sempre de ouvir a versão original dos compositores. E, de facto, a original era bem mais lenta.

O dueto com a Omara Portuondo foi gravado com ela ou separadas?
_Tenho muita pena, mas foi depois. Os Buena Vista Social Club convidaram‑me para cantar com eles no Cool Jazz Fest. Gostei imenso de conhecer a Omara Portuondo. E aquela música estava com um sabor tão latino, que eu perguntei: «E se esta música fosse a versão de uma voz mais madura com uma voz mais imatura do mesmo sentimento e convidávamos a Omara Portuondo?» E ela aceitou. Só que estava em tournée e gravou num estúdio em Nova Iorque. Quando cantámos juntas, criámos logo cumplicidade. Tanto que ela disse que ia gravar um disco de duetos e que queria que eu gravasse com ela.

Com quem é que a Ana gostava ainda de fazer um dueto que ainda não fez?
_Há muita gente hipertalentosa com quem eu gostava. Mas há um homem, que vem desde criança, que eu adorava: o Stevie Wonder. Por acaso, temos amigos comuns. O Prince é amigo dele.

E já disse isso ao Prince?
_Por acaso, não disse. Mas uma vez eu não pude. O Prince fez‑me um convite para ir a Los Angeles, e eu estava noutro sítio. Volta e meia convida‑me para jam sessions. E era com o Stevie Wonder. Queria morrer! Tenho esta coisa com os meus compromissos. A minha mãe diz‑me às vezes: «Tu tens tantos concertos! Se queres muito ir ver alguma coisa, não dês o concerto. Vai.» A minha mãe! E eu vejo a minha mãe como uma pessoa supercerta e que me educou. Só que eu não consigo fazer isso, não consigo.

Mesmo que seja o concerto pequeno?
_Uma vez eu ia fazer um concerto privado horroroso. Não tinha as condições certas, eu estava mal da voz e ia partilhar o placo com um entertainer que não tem nada que ver comigo. A Amy Winehouse estava a tocar numa sala muito perto e eu ainda não tinha conseguido ir vê‑la. E queria tanto! Porque eu identifiquei‑me muito com ela. Ainda hoje me custa ouvi‑la. Precisei de um tempo para voltar a ouvi‑ la. E a minha mãe disse‑me: «Ana, tu estás mal da voz, vais fazer um concerto que não tem nada que ver contigo, porque é que não vais ver a Amy?» E eu não fui e nunca mais vou poder ir. Ela era especial… vem de cá de dentro.

O que gostava de fazer agora?
_Custa‑me responder porque fui vivendo ao sabor das coisas que a vida me ia oferecendo e viciei‑me um bocadinho em não projetar, para ser surpreendida, isso dá‑me outra forma de saborear.

Em tão pouco tempo chegou a um ponto tão alto.
_A minha carreira começou a descolar a partir do Para Além da Saudade, que deve ter sido para aí há uns oito anos.

Parece um sonho?
_A Sophia de Mello Breyner tem um poema que se chama «Pudesse eu». E aqui há uma coisa que nos sugere uma dúvida, o «pudesse». Mas diz muito da minha forma de estar na música: «Pudesse eu/ Ó vidas de mil faces transbordantes/ Poder responder aos teus convites/ Suspensos na surpresa dos instantes.» Eu identifico‑me com isto, quando li pensei: «Isto é para mim.» E, neste momento, é como eu estou. Estou ao dispor de ser livre e de viver na surpresa dos instantes

O NOVO ÁLBUM
Moura é o sétimo álbum de Ana Moura. O quíntuplo platina e álbum mais vendido dos últimos cinco anos, Desfado, ainda ocupa os concertos das tournées. A capa do novo é de Ignasi, artista digital de Barcelona e radicado em Londres. Produzido por Larry Klein, o meticuloso músico que trabalha com Joni Mitchell, Herbie Hancock ou Tracy Chapman, tem os músicos portugueses Angelo Freire (guitarra portuguesa) e Pedro Soares (guitarra clássica), e Dan Lutz (baixo), Dean Parks (guitarra), Pete Korpela (percussão), Pete Kuzman (teclas) e Vinni Coaliuta (bateria).

PARABÉNS NO CANADÁ
Estavam no Canadá, depois de uma tournée glamorosa nos Estados Unidos, em grandes salas e com muito rigor. O último concerto era numa associação de portugueses, numa festa tão popular que a meio do concerto foi feito um leilão. Saíram do palco e andaram pelos corredores. Encontraram um frigorífico onde havia um bolo fora de prazo. Aquilo abria muitas possibilidades. Voltaram ao palco, luzes apagadas, entraram com o bolo. Ana anunciou que o técnico de som fazia anos, puseram toda a gente a cantar parabéns. O técnico de som estava pasmado, não era dia de aniversário. E quando o concerto terminou, ficaram muito tempo nos bastidores à espera dele: todas as pessoas presentes na sala fizeram questão de lhe dar os parabéns pessoalmente. «Se não brincamos de vez tem quando, não aguentamos tanto cansaço e tanta tensão.»

UM VESTIDO DE RESERVA
Nem para cima nem para baixo. O fecho do vestido de Ana não mexia. Sala cheia, é preciso óleo para isto deslizar. Paulo Marques, o road manager, arranjou um óleo de cheiro atroz: na Noruega, óleo de bacalhau. Puxaram e repuxaram até que a coisa rebentou, rasgou-se o vestido. Plano B, inventado à pressa: Ana entrou no palco de blusa e calças, quando o público já estava zangado. O que faz a artista numa noite assim? Pois bem, explica o que aconteceu. O público aplaudiu, identificou-se com o desastre. Agora, Ana leva sempre dois vestidos. E Paulo leva outro na mala, à cautela. E um ferro de engomar, e um secador de cabelo, e ganchos, e alfinetes, um sem-número de objetos que podem fazer falta. Ele é o meu pilar, diz ela. Ele fica envergonhado, não gosta de ser o foco da conversa.