Jerry, numa célebre canção americana, é uma mula que carrega água, leva vergastadas do capataz, dá coices mas trabalha, trabalha, trabalha… A canção, puro jazz, pertencia ao repertório do sexteto de Louis Armstrong que passeou pelo mundo, na última década do trompetista. Armstrong morreu em 1971, logo a seguir às lutas dos direitos cívicos dos negros e dos radicais Panteras Negras. Raramente ele tomava posições políticas públicas e o seu sorriso largo, oh quanto!, com que obsequiava o público dos seus espetáculos, geralmente rico e branco, deu‑lhe uma reputação de «Uncle Tom». O Pai Tomás, do romance A Cabana do Pai Tomás, velho escravo negro, ficou marcado com o ferrete de doce e complacente para com os donos dele.
Na década de 1960, Paris, Berlim, África e Ásia, as digressões mundiais de Louis Armstrong eram patrocinadas pelo Departamento de Estado. Os seus grandes momentos de instrumentista talvez já tivessem ficado atrás, quando tocava com Duke Ellington e acompanhava ou cantava com Bessie Smith ou Ella Fitzgerald… Agora, trompete ao longo da coxa, lenço branco a limpar o suor da face, ele estava doente, cansado, velho (tinha 60 e poucos), e podia apresentar os seus companheiros com displicência: “(…) e Danny Barcelona, o pequeno rapaz filipino na bateria…” Não era desprezo, claro, porque acabava a apresentação consigo próprio, chamando‑se pela alcunha: “(…) e o pequeno rapaz árabe, Satchmo!”
Poderiam parecer o canto longo do cisne, aqueles anos. Sabemos que não, até pelo argumento de autoridade. Nessa década, Satchmo bateu recordes de venda com duas gravações: Hello Dolly!, e What a Wonderful World. O mundo convencia‑se de vez da hipertrofia das suas duas falsas cordas vocais que lhe permitiam o som grave duma sirene como a dos barcos de roda a rasgar o Mississipi. O escritor argentino Julio Cortázar viu Louis Armstrong no Théâtre des Champs‑Elysees, em Paris, e criou uma figura mítica, os «cronopios», para o definir – fez um livro inteiro só com isso, Historias de Cronopios y de Famas. Os «famas» são rígidos e focados, já os «cronopios» iluminam como quem não quer a coisa – se forem um poema, não rimam; se forem um desenho, são feitos nas margens dos livros. Diz‑se que Louis Armstrong, nos intervalos dos espetáculos nas salas finas, saía pela porta das cozinhas e ia para o beco das traseiras, solitário, fumar uma ganza, inspirar‑se. Entrava para nos convencer de quão maravilhoso era o mundo.
Foram os últimos dez anos assim. Se não houvesse o YouTube, eu diria, sem história. Um dia destes, eu estava a ouvi‑lo tocar mais um When the Saints Go Marching In – e a pensar, como sempre, que os mortos são felizes a caminho dos cemitérios de Nova Orleães. A coisa era instrumental, o lenço branco pendia agora ao lado do trompete levado à boca, quando Satchmo nos pediu para cantar, «come on, folks», vamos lá, malta, e saltou para o palco um vestido com grandes hibiscos a apertar uma negra. Jewel Brown foi fazer contraponto, cantando com as mãos, o colear do corpo, os olhos e com o que trazia da garganta. Não a conhecia e fui ouvir Jerry, a canção da mula.
Jewel Brown acompanhou Louis Armstrong naqueles anos. A letra de Jerry, a da mula trabalhadora, ela inventava e servia até para apresentar os companheiros. Sempre a cantar, dizia: «Querem saber quem é Jerry?», a mula que trabalha é o pianista Billy Kyle… «Sabem alguma coisa do meu Jerry?», trabalha oito horas na oficina, já ouviram falar do clarinetista Joe Darensbourg?… E assim por diante, acabando no grande Satchmo. Todos mulas, carregadores de água e de toros de madeira… Não conheço hino proletário mais belo.
Louis Armstrong morreu, em 1971. Jewel Brown voltou para a sua cidade natal, Houston, Texas, e abriu um salão de cabeleireiro.
[Publicado originalmente na edição de 13 de dezembro de 2015]