A vida de Filipa

Natasha Cardoso/Global Imagens

Filipa Vacondeus morreu no início desta semana. Em 2010, aquando do lançamento de Os Truques da Filipa, a jornalista Sónia Morais Santos passou algum tempo com a cozinheira e daí resultou este perfil, que republicamos.

Filipa Vacondeus é mais do que a supertia da culinária, viciada em paprica, que Herman José imortalizou. É uma mulher de garra que nasceu rica mas trabalhou sempre, casou tarde e deu a volta ao destino que a sua família lhe destinaria. Quase aos 80 anos, mantém uma participação semanal na RTP. E acaba de lançar mais um livro.

Ai, a nossa cozinheira! A nossa Filipinha… Está boazinha? Ai, que eu gosto tanto de si.» Dois passos depois, mais do mesmo: «Olá, senhora dona Filipa. Tenho-a visto na televisão, sempre tão bonita. E as coisas que me ensina! Não tem ideia! No outro dia fiz aquele seu prato, sabe, aquele que leva pão e alho e coentros e…» Filipa Vacondeus pára de cinco em cinco minutos, sorri e acena, conversa com quem se mete com ela, deposita aqui e ali mais um segredo da sua cozinha, torna a sorrir e a acenar, à esquerda e à direita, qual membro da realeza no mercado de Campo de Ourique. As senhoras esquecem a vez na fila para o peixe, pedem conselhos, partilham experiências culinárias e saúdam-na com uma alegria genuína. Filipa retribui. Sempre. Filipa Vacondeus tem 78 anos e mais genica do que muita miúda de 20. A sua agenda não tem espaços em branco, o telemóvel não se cala por mais de dez minutos, e ela atende e exclama «Olá, meu amor!» e não há um pingo de exagero ou de falsidade no tom ou nas palavras. Além dos compromissos às dúzias, onde se incluem os programas de televisão em que participa (Praça da Alegria e Portugal no Coração, ambos da RTP), Filipa acaba de lançar mais um livro: Os Truques da Filipa (Matéria-Prima Edições), um livro de receitas económicas (cada receita custa menos de dois euros por pessoa) e com segredos que lhes dão outra graça. «É o meu mais novo. Está bonito, não está?», pergunta com orgulho, pegando-lhe cuidadosamente. Cada nova obra sua é um novo sucesso. O último (As Grandes Receitas das Famílias Portuguesas) vendeu vinte mil exemplares.
Às vezes, Filipa surpreende-se com tanta solicitação: «Quando vejo os jovens tão aflitos, sem emprego, penso assim: “Como é que um monstro de uma velha destas anda sempre de um lado para o outro?” [gargalhada] Palavra de honra que penso! E agradeço a Deus todos os dias.»

No mercado de Campo de Ourique, seja no talho seja junto às bancas do peixe, Filipa nunca esquece o factor poupança. A preocupação com a carteira não faz parte da personagem da televisão, faz parte da vida de todos os dias: «Olá, bom dia. Quanto custa as línguas? Pois, é barato. Está a ver, fígado, rins… as pessoas hoje em dia não gostam, e no entanto fazem-se coisas deliciosas e muito em conta. Outra coisa: asas de frango. Fritinhas são uma delícia. Dá uma entrada fabulosa. » Uma freguesa, atenta, escuta a sugestão e sugere: «Olhe, podia levar a receita ao Portugal no Coração!» Filipa sorri e concorda: «Está a dar-me agora uma bela ideia!»
Mais adiante, novos cumprimentos: «Olá senhor Jorge, está bom?»; «Bom dia, como está, passou bem? A chaputinha é a 5,5 euros mas faço a cinco por ser para si.», «Então, dona Filipa, não quer nada meu hoje?», «Oh, minha querida, hoje fugiu-me o olho ali para a xaputa, mas diga lá o que é que tem?», «Tenho aqui carapau, linguado e um pregado muito fresquinho, dona Filipa.» «Venho cá logo, buscar o linguado, está bem, meu amor? Agora não trouxe dinheiro que chegue.» A peixeira faz um gesto com a mão, «fica a dever e depois logo paga». «Deus me livre! Não fico a dever a ninguém. Ainda morro ali atropelada e depois? Venho cá logo, meu amor. Venho cá logo!»

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Família feliz com (algumas) lágrimas
Maria Filipa Carneiro de Mendonça Côrte-Real nasceu a 12 de Maio de 1933, na Rua da Lapa, em Lisboa, no seio de uma família tradicional, monárquica e católica. Foi a primeira filha de Filipe e Alice Côrte-Real, e nasceu antes de tempo, fosse por ter pressa de viver (que é o mais certo), ou então por culpa de uma altercação que a mãe teria tido com António, um criado de mesa lá de casa, e que a deixou arreliada até mais não. «Certo é que nasci uns 15 dias antes, feia de meter dó. Medonha. Parecia um peixe, um pargo, com uma boca e uns olhos enormes, um bebé horroroso. Só o meu avô é que olhou para mim e disse que eu ia ser muito bonita. De resto, as pessoas ou não diziam nada ou, se eram sinceras, diziam que eu era um pargo (risos).»

A infância não podia ter sido mais feliz. Rodeada de rapazes (o seu irmão António Filipe, quatro anos mais novo, e mais quatro filhos do irmão do pai, que só teve a menina já Filipa tinha 33 anos), passava uma parte do ano na casa da Lapa, outra parte numa casa na Costa de Caparica, com piscina, cavalos e liberdade a rodos. «Na altura da guerra e do pós-guerra, havia racionamento e os carros não podiam andar todos os dias, por causa da gasolina. Então, vínhamos a cavalo da Costa, eu, o meu pai e o meu irmão. Deixávamos os cavalos no picadeiro do Mota, nas Amoreiras, e lá íamos para os colégios.»

Ter crescido no meio de tanto homem teve alguns inconvenientes: «Tudo dava sentenças sobre se eu já podia usar meias altas, se já podia sair com as amigas, se já podia isto e aquilo. Talvez fosse muito protegida, mas nunca precisei ou deixei que me atabafassem. Sempre fui muito independente, voluntariosa. Sempre soube muito bem o que queria, sempre decidi a minha vida.»

A família do lado da mãe era muito, muito rica. O avô de Filipa detinha cerca de dois terços da parte cultivável da ilha de Príncipe (a ilha mais pequena do arquipélago de São Tomé e Príncipe). Do lado do pai não havia essas riquezas, «só a riqueza de alma e coração», e a riqueza de se dar o valor ao trabalho, que o pai de Filipa herdou. «O meu pai era a pessoa que eu conheci com maior capacidade de trabalho e empreendedorismo. Além dele, só o meu marido, que também tem uma capacidade de trabalho absolutamente extraordinária. Mas o meu pai começou por ter uma fábrica de ampolas-seringas, só com vidro Zeiss. A primeira penicilina que apareceu era um pó e um frasquinho de líquido e o meu pai teve a patente de uma ampola que misturava o pó com o líquido, uma espécie de dois-em-um. Depois, com a guerra, veio o corte de relações com a Alemanha e a fábrica foi à vida.

Mas o meu pai não se deixava abater. Foi ele quem fundou a primeira fábrica de congelados do país, a Gelmar. E depois foi director-geral da Fina. Era um homem de trabalho, sem dúvida. Mesmo quando houve períodos difíceis, sempre soube dar a volta. Tenho muito orgulho da família onde nasci. Uma família que em vez de transformar as vicissitudes da vida em tragédias sempre as transformou em arranques para uma batalha. E que mesmo quando perdia uma batalha, conseguia no fim ganhar a guerra.»

E já foram várias as batalhas da família Côrte-Real. O irmão, António Filipe, nasceu aos seis meses de gestação. Um grande prematuro, numa altura em que não havia os meios que hoje existem. «De maneira que era a morte de um lado, a minha mãe do outro e o meu irmão no meio a ver para que lado pendia. Coitadinho. Lembro-me de a minha mãe usar um colchão dos meus bonecos para o deitar. Era minúsculo. Mas venceu. E sem sequelas nenhumas. Tornou-se um homem inteligentíssimo, disputado por várias empresas, um homem cheio de amigos de todas as camadas sociais. Faz-me muita falta. Tenho umas saudades dele de morrer! Sempre foi o meu menino.» António Filipe, mais conhecido por Tunas, morreu no dia 11 de Dezembro de 1999, ainda não tinha 60 anos, vítima de cancro do pulmão. «Costumo dizer que sinto mais a falta dele do que a da minha mãe. Porque ele partiu muito cedo, enquanto a minha mãe já morreu muito velhinha, doente, cega, sem nenhuma qualidade de vida nem qualquer vontade de viver. O meu irmão não! Na véspera de ele morrer chamou- me a casa da minha mãe, onde estava a viver, para lhe fazer um lanchinho. Passei-lhe a mão pela cabeça e vieram-me bocados de cabelos agarrados. Quando me ia embora pediu: “Não vás…” Achei-o muito triste, naquele dia. E no dia seguinte ligou-me a Arlete [empregada que ainda hoje trabalha na sua casa] a dizer que fosse depressa que ele estava caído no chão. Quando lá cheguei, estava morto. O meu menino…»

Os casos de cancro na família, de resto, são tantos que daria para assustar não fosse Filipa a mulher que é, pouco dada a temores dessa ou de outra natureza. E nem quando o bicho lhe bateu à porta, já por duas vezes, se acobardou achando que tinha chegado a sua vez. Nada disso. Meteu na cabeça que havia de dar cabo dele. E deu. «Da primeira vez fui operada a uma quarta e no sábado, quando tive alta, fui logo para as Amoreiras fazer compras e comer empadas. Três meses depois, fui fazer um exame de rotina e o doutor Joshua Ruah descobriu-me mais de cinquenta tumores na bexiga, pareciam amoras, todas penduradas. Veio ter comigo, com um ar preocupado, e eu só lhe respondi: “Ó filho, mas tiras-me isto, não tiras? É que não me dá jeito nenhum morrer.” [risos] E ele tirou. Tive sorte. Eram tumores de fraca malignidade. De maneira que é isto, cá ando.»

Natasha Cardoso/Global Imagens
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Dia-a-dia
Com os sacos do mercado na mão, Filipa vai passeando pelas ruas de Campo de Ourique distribuindo cumprimentos e simpatia. Entra na loja gourmet e wine bar Aromas & Sabores, na Rua Tomás da Anunciação, e delicia-se a ver a selecção de queijos e presuntos, as bolachinhas e os azeites, diz que se perdia por ali, mas acaba por só levar pão. Segue para o seu cafezinho preferido, o Momentvm, na Rua 4 da Infantaria, onde encontra a actriz Maria Guida. «Olá! Podemos sentar-nos aqui ao pé de si?» Guida Maria, sentada na esplanada, diz que sim, claro, e a conversa solta-se, muita pancada no governo e no estado do país, e depois aparece Pedro Chaves Lopes, um dos donos do bistrot, que a trata carinhosamente por «tia»: «Já estava com saudades da tia! Nunca mais cá veio…» Filipa dá um longo suspiro, que não, realmente, mas sabe lá ele o que é a vida dela, uma correria, «ainda ontem me levantei às cinco da manhã para me meter no comboio e ir ao Porto, à Praça da Alegria, é uma loucura, uma loucura!»

No interior do café que também é restaurante e casa de chá está sentado José Vacondeus, marido de Filipa. «Olha, lá está ele, à volta dos seus poemas… Passa o dia naquilo, sempre a escrever. O Zé envelheceu muito desde que se reformou. Não quer sair, não quer fazer nada a não ser ficar de roda dos livros e ao computador. Quando trabalhava tinha em quem mandar. Agora que não tem, quer mandar em mim! Ai, é uma chatice! Eu digo e repito às mulheres: muito cuidado quando os vossos maridos se reformarem!»

Filipa e José Vacondeus estão casados há 43 anos. Parecem dois marretas. Ela resmunga com ele, ele rezinga com ela. Ela fuma às escondidas dele, não porque ele não saiba que ela fuma, mas porque há dias em que ela fuma mais do que diz que fuma. Às vezes, Filipa vai a correr despejar o cinzeiro para que o seu Zé não veja as beatas e não se ponha a mandar vir. «Fumo mais ou menos dez cigarros por dia. Às vezes ele chega ao pé de mim e vocifera: “Já fumaste dois?” E eu grito: “Ai, Zé, credo! Deixa-me! Não estou no colégio”.» Filipa solta uma gargalhada e acrescenta: «Além de não fumar, também não bebe álcool. Nem uma gota. É só aguinha! As pessoas fazem tudo para durar mais um ano ou dois, privam-se de tudo, e depois morrem na mesma! Diga lá de que é que vale?»

Para o almoço, Filipa Vacondeus prepara frango à Filipa, com a ajuda da empregada que está com ela há 26 anos, a cabo-verdiana Arlete. Uma empregada muito sui generis, que lhe responde torto e se recusa, amiúde, a fazer o que ela lhe pede. «Às vezes informa-me: “Amanhã não vem.” Ou: “Agora não pode fazer isso porque tem fome e vai comer.” Também costuma pôr-se ali junto à porta, de manhã, especada, à espera de que eu me arranje para irmos às compras. E eu pergunto: “O que estás aí a fazer especada, Arlete?” E ela responde: “À espera para ir rua.” E não tens nada para limpar, para lavar, nada? Responde ela: “Não. Já fez tudo.” Um dia, exasperada com ela, disse-lhe: “Ó Arlete, tu sabes que se fores para outra casa não é assim, não podes faltar ao trabalho sem que te descontem no ordenado!” Sabe o que ela me disse? “Por isso é que não vai para outra casa.” E pronto, é assim na nossa vida. No fundo, ela é que é minha patroa, e eu tenho de andar direitinha, que remédio! Sei que não estou lá muito bem servida mas ela já faz parte da família.»

O almoço é servido no jardim. Sim, no jardim. Que Filipa e José Vacondeus têm o privilégio de viver num apartamento na Rua Ferreira Borges com um jardim delicioso. Sempre que precisam de alguma coisa, tocam num botão que acciona uma campainha na cozinha. Mas não é certo que Arlete responda à chamada. Demora-se quase sempre porque anda devagar, devagarinho, quase parada. E ai de quem proteste com ela! Leva logo uma resposta pronta. À tarde, Filipa continua nas suas voltinhas, sempre com o telemóvel a tocar. Vai ao cabeleireiro Antonius, na Rua Ferreira Borges, e entrega-se nas mãos da Prazeres. «Eu tinha um cabelo que era uma maravilha! Agora estou a ficar careca, o que é uma pena.» Prazeres confirma: «Era uma maravilha, era! Mas ainda é um bom cabelo, dona Filipa. Ai, não fotografe agora, que está tudo no ar, por amor de Deus!» Do cabeleireiro, Filipa segue para a Igreja de Santo Condestável, onde dá catequese, mas pára antes num café onde compra chupa-chupas para levar aos seus meninos. Filipa sabe que nem sempre é fácil conquistar as crianças pelas palavras abstractas da fé. Mais vale adocicar-lhes a boca primeiro que o resto fica mais fácil a seguir. O resultado está à vista: as crianças abraçam-na, dão-lhe beijinhos e recebem-na com alegria. Tudo o que ela lhes disser, depois, será recebido com a doçura de um chupa.

Atrevimento em doses generosas
Se há coisa que se pode dizer de Filipa Vacondeus é que sempre soube o que queria da vida. E o que não queria. Aos 21 anos esteve para casar. No dia em que ia realizar- se o jantar do pedido da sua mão em casamento, ela chegou-se ao pé do pai e perguntou: «Ó pai, o pai rala-se que eu não me case?» O pai baixou o livro que estava a ler e respondeu: «Eu não. Vai ter com os pasteleiros e cozinheiros que estão a tratar de tudo, paga-lhes e manda-os embora. E tu, vais para onde?» Ela não
hesitou: «Para Madrid.» E assim foi. Tudo porque o noivo andava encandeado com uma bailarina do Casino Estoril e Filipa topou o encanto. «Hoje ele vive na Suíça, tem uma data de filhos e é podre de rico. Um dia, há uns anos, veio ter comigo a dizer que tinha uma espinha cravada na garganta, que tínhamos de falar sobre o sucedido… eu só lhe disse: “Ó filho, tira lá a espinha da garganta! Se tivesse casado contigo era uma estúpida cheia de cornos. E não me apetecia nada.»

Além da afronta de não casar, Filipa também trabalhou fora de casa toda a vida, tornando-se na primeira mulher da família a fazê-lo. O primeiro emprego foi na TAP, logo a seguir ao episódio da noiva rebelde: «Estávamos num período em que a família atravessava algumas dificuldades financeiras e eu achei que devia contribuir. Vi no jornal que havia um concurso para a TAP e inscrevi-me. Era preciso ter 1,65 metros, eu só tinha 1,60 metros, de maneira que fui ao BI, que na altura não era como hoje, e transformei o zero num seis. Fui chamada, mediram-me três vezes, fiz os testes que eram dificílimos e acabei por ficar. Fiz alguns voos, mas o ambiente em casa era maçador porque o meu pai não achava graça nenhuma a que eu dormisse fora, e depois havia os comandantes, e para ele era muita promiscuidade junta. A minha mãe também ficava numa ralação tão grande que eu despedia-me dela e quando voltava ela estava no mesmo sítio, com ar de quem não tinha dormido, nem comido, nem coisa nenhuma. Tive de desistir.»

Um dia, ia a descer a Avenida da Liberdade e viu o SNI (Secretariado Nacional de Informação, que funcionava no Palácio Foz, nos Restauradores). Chegou-se ao porteiro e perguntou: «Quem é que manda aqui?» O porteiro, com ar grave e desdenhoso, respondeu: «É o embaixador Eduardo Brazão.» Filipa torceu o nariz: «Ah, mas esse não, que é amigo dos meus pais. Diga-me lá outro que também mande.» O porteiro respirou fundo e disse: «Jorge Felner da Costa. Filipa ficou contente por não conhecer o nome e atirou: «Pois bem, quero falar com ele.» O homem nem queria acreditar em tamanha desfaçatez. Sem hora marcada, sem dizer o assunto, a rapariga não se ia embora e insistia em falar com o homem que mandava. Ouvindo a vozearia, o próprio Felner da Costa apareceu à porta: «Mas o que é que se passa aqui? O que é que você quer?» Filipa não hesitou: «Trabalho.» O distinto senhor mirou-a, com curiosidade, e inquiriu sobre o que saberia fazer. «Tudo», foi a resposta. Trocadas mais duas ou três frases, Jorge Felner da Costa estava convencido. Filipa tinha acabado de arranjar emprego como secretária.
Dois anos depois, ajudou a fundar a agência de viagens Tagus e um ano e pouco mais tarde foi para uma loja da Vista Alegre no Hotel Ritz. «Estive lá até abrir a loja da Vista Alegre no Chiado, mas sou franca: aquele horário de loja, de segunda a sábado, das nove da manhã às sete da tarde, não era para mim. Além disso, eles tinham lá uma máquina de renovação do ar que me fez apanhar sete broncopneumonias atípicas. Estive a morrer por causa de uma bactéria qualquer, um horror!»

O sítio onde esteve mais tempo foi na Barreiros, uma empresa de camionagem. Conheceu o dono da empresa, o espanhol Eduardo Barreiros, numa festa na Embaixada de Espanha. Quando ele percebeu que falava cinco línguas, sugeriu-lhe que fosse sua secretária e perguntou: «Cuanto quieres ganar? » Ela, afoita como sempre, replicou: «Más que un ministro!» E, com efeito, foi ganhar 22 500 escudos, que era, ao tempo, mais do que ganhava um ministro. Filipa ficou na Barreiros durante oito anos e meio.

Aos 34 conheceu José Vacondeus. Era director comercial da Fina, a empresa onde o pai dela era director-geral, e tinha uns olhos azuis magnéticos: «Eu costumo dizer que ele me hipnotizou, que tinha para aí um pacto com o diabo ou coisa assim, porque eu era absolutamente incasável! Era livre, tinha uma vida divertidíssima e veio este e caçou-me. Algum segredo ele tinha, que me domesticou. Creio que terei sentido que ele era alguém que me dominava, coisa que geralmente não acontecia. Sempre achei que quando eles ainda estavam a ir eu já tinha ido e vindo três vezes. Porque eu reconheço que não sou muito inteligente, mas sou horrivelmente esperta. E sempre dominei. Com o Zé foi diferente.»

Começaram por ser amigos e um dia, no regresso de uma viagem ao Algarve, ele disse: «Agora, você vai chegar a casa, vai dizer que vamos casar e eu vou começar à procura de casa.» E assim foi. A 30 de Março de 1968 casaram, numa cerimónia íntima, com poucos amigos e alguma família. «Às vezes zango-me comigo e penso: “Bolas! Nem sequer um casamento a sério tiveste!” Mas pronto. O meu pai já estava doente e eu achei que era assim que tinha de ser.

O pai, baluarte da sua vida, morreu nem um ano depois, a 31 de Janeiro de 1969, vítima de um linfoma de Hodgkin. Tinha 59 anos. «Quem me conhece sabe que tenho a maior dificuldade do mundo em chorar. Mas quando o meu pai morreu chorei 24 horas seguidas, se não mais. Não conseguia parar. Morreu muito cedo, morreu muito depressa. Foi um bastiãoque me tiraram. O meu pai era um homem com um aspecto severo mas que não correspondia de todo à verdade. Era divertidíssimo, com uma bondade sem limitese um coração de ouro. Quando nós, em crianças, lhe dizíamos, em jeito de pedido, “ó pai…” já sabíamos que estava tudo resolvido. Ao longo da vida, conversámos muito. O meu pai fez-me muita falta ao longo da vida.

Outra das infelicidades da vida de Filipa Vacondeus foi o facto de não ter tido filhos. Se bem que ela nunca tivesse feito disso um drama. «Olhe, não aconteceu. Casei com 35 anos, já não era uma criança. Como não veio logo pensei, “não calhou”. Não fiz nenhuma tragédia. Se tem vindo logo, era giro. Mas depois começou uma vida difícil, com muito trabalho e, olhe, ficámos os dois.» Mentira. Ficaram muitos, que os quatro filhos do irmão Tunas são como seus filhos e os 11 sobrinhos-netos são como seus netos. Trata todos por «piquenos», com o amorde uma mãe e a ternura de uma avó.

Natasha Cardoso/Global Imagens
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Nasce uma cozinheira
A paixão pela culinária talvez tenha nascido com ela. Desde sempre que se lembra de se enfiar na cozinha, com a Lailai, a cozinheira da casa da Lapa, e até de ser castigada, por diversas vezes, por estar metida na cozinha, sítio pouco próprio para as crianças. «Se o meu pai, os meus avós e os tios soubessem destas minhas aventuras pela culinária, decerto que morriam outra vez!», diz com uma gargalhada.

Mas a verdade é que o gosto já se adivinhava desde cedo. Na casa da Costa ajudava a cozinheira Maria a fazer os pratos que a Lailai (da casa da Lapa) sabia fazer e vice-versa, de modo que foi aprendendo receitas e metendo um ou outro ingrediente a ver como ficava. «A primeira coisa que fiz ensinada pela Lailai foi o chamado bolo podre. Hoje se quiser já nem o sei fazer. Aliás, odeio fazer bolos. Como não sou obediente, aquelas regras todas e os gramas certinhos não me entusiasmamnada. Eu gosto é de inventar.

Aos vinte e poucos, era frequente Filipa ir a casa das amigas cozinhar em ocasiões especiais. «Ai, vem cá a casa o chefe do meu marido, vem cá, por favor, fazer um dos teus pratos.» E lá ia a Filipa. Um dia até me vesti de criada, para o cenário ficar perfeito!»

Entre 1970 e 1975, as suas criações culinárias ganharam fama no restaurante Cota d’Armas, em Alfama, que foi considerado o melhor restaurante de luxo da capital. «Era um restaurante muito bonito, uma casa particular com três andares, com um bar em cima. Foi uma fase extraordinária mas muito cansativa. Eu sentava-me e adormecia, de cansaço. Depois veio o 25 de Abril e o restaurante foi à vida, claro está.

Logo a seguir, José Vacondeus fundou, com Nuno Rocha, o jornal Tempo, do qual foi director-adjunto, e um ano depois, sozinho, criou O País. Nessa altura, o casal passou a dar jantares todas as sextas-feiras, na casa de Campo de Ourique. «Vinha gente de todos os quadrantes, esquerda, direita, frente, trás», conta, divertida, Filipa Vacondeus, «e um dia a Maria Elisa, que era uma das convidadas, lançou-me o desafio de fazer um programa na televisão e assim nasceu Cozinhar
É Fácil, na RTP. Depois, foi o boom. Comecei a escrever em tudo o que era jornal e revista. Nem vale a pena perguntar-me onde é que eu escrevi, o melhor é perguntar onde é que eu não escrevi! Qualquer folha de couve tinha uma receita minha. E depois vieram 11 anos de programas semanais e livros e… nunca mais parei. Nunca mais parou nem há-de parar. Filipa Vacondeus não nasceu para estar parada.