A luz inextinta

Notícias Magazine

É tarde. O dia já arrumou as coisas e foi embora. Para trás fica o rebuliço das tarefas que se repetem e o vaivém dos corpos, enérgicos, que parecem esforçar-se por andar muito para não chegar a lado nenhum. Os trabalhos que suportam a vida já se fizeram e o corpo, cansado, pede agora descanso.

A noite põe-se, obedecendo. Quieta, como o meu pensamento, a princípio. Aqueles momentos em que a luz se dá por vencida e cai no horizonte, extenuada, deitando-se ao comprido, dormindo – esses momentos aquietam quem olha a dança que se repete desde o princípio do Verbo. Aquele movimento simples no qual a arte se inspirou, pondo o pano preto a cair depois da frenética representação da vida, como no teatro, finda a peça, acalma a mente.

Mas é sol de pouca dura. Quando o escuro acaba de pintar o dia e tudo se apaga lá fora, é cá dentro que as cores mais vivas se iluminam. É na quietude que o pensamento se excita. O meu, pelo menos. Não saberei dizer porquê, não mo perguntem, pois.

Esta podia ser uma crónica sobre nada. Provavelmente, sê-lo-á. Mas o nada tem muito que se lhe diga. Podemos temê-lo, se a nossa ideia de morte a fizer equivaler ao vazio. Mas se considerarmos que o vazio é pleno – se na morte o pensamento se extingue, nunca poderemos reconhecer o vazio, que se transforma assim num todo, porque tudo absorve, até mesmo a consciência – como dizia, se considerarmos que o vazio é pleno, total, totalitário, então interessa-me falar sobre ele. Interessa-me a ideia de poder dar-lhe lugar, à espera de ver o que acontece.

O que tem acontecido, logo após o dia se deitar, é que a alma se agita. Não sei se acontecerá o mesmo com a morte. Shakespeare diria que o sono é o prenúncio da morte, mas se do sono nasce o sonho, haverá esperança. Depois de feitos os trabalhos que suportam a vida, começam os trabalhos que suportam a alma. A latência que fica do ruído que a vida faz precisa da noite para se transformar em música. Precisa de um tempo que não sente o tempo a passar.

Com a luz, percebemos que andamos, mesmo que estejamos parados. A tímida luz que tremelica no começo da manhã, o clarão que rasga o céu do meio-dia e nos cega, a claridade que permanece à tarde e os primeiros sinais de cansaço, ao cair do dia. O tempo não pára de correr, mesmo que não tenha onde ir.

No escuro não adivinhamos o tempo que corre. É como se parasse para descansar, também ele. Dormindo o tempo, as ideias que nos rondaram nas horas de luz podem agora espreguiçar-se e atingir a maturidade, incubadas pela languidez da noite.

A noite pode ser fértil, sim. Tal como o cinema e a música e a dança precisam do escuro para se mostrar, também o pensamento precisa da noite para se iluminar. O escuro potencia a luz e os seus efeitos. Se as duas pulsões de onde tudo deriva são Eros e Thanatos, então o contrário de morte não é vida, mas amor. E a noite é dos amantes, conforme nos canta Patti Smith. Do amor nasce a vida, que será a luz, rompendo o escuro da noite que lhe foi fértil.

Quem não espera pacientemente por aquilo que a noite lhe pode sussurrar aos ouvidos perde uma outra vida, ou tantas vidas que acontecem a coberto da noite, na nossa mente. Quando a luz do horizonte se extingue, sobra-nos a única luz que resiste à extinção total. É nossa, não é emprestada pelo sol. Percebo a força que tenho quando venço o escuro e o encandeio.

Há uma luz que nunca se extingue. Quem mo disse não foram os Smiths. Foi a noite.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
4-10-2015