A comida portuguesa é saborosa. Mas será bonita?

Açordas a sul e guisados a norte, caldeiradas no litoral e ensopados no interior. Não há cozinheiro que não elogie a diversidade da gastronomia nacional. São sabores temperados, mas têm dificuldade em afirmar-se no mundo. Uma parte do problema, dizem os chefs, está na apresentação dos pratos. Ideias para tirar a comida portuguesa do tacho.

No dia em que completou 50 anos, Luís Baena recebeu de José Avillez um livro de pintura com os principais trabalhos de Picasso. Visto de fora, seria menos surpreendente que dentro daquele embrulho estivesse uma edição de Cozinha Tradicional Portuguesa, de Maria de Lurdes Modesto. É a bíblia nacional da gastronomia e por isso seria uma troca previsível entre dois cozinheiros. Baena faz consultadoria aos restaurantes da cadeia Tivoli e tem um restaurante em Londres, Avillez chefia a cozinha do Belcanto, com duas estrelas Michelin, além de gerir cinco outros restaurantes. E, no entanto, para o aniversariante, aquele era um presente que fazia todo o sentido. «A cozinha pode não ser exatamente arte, mas é pelo menos uma forma artística», diz agora, seis anos depois. «Um chef tem de ter conceitos e colocar ideias no prato. A comida é sabor, mas também é uma expressão visual.»

O senso comum nacional oferece uma expressão que dá o ponto de partida a este texto: os olhos também comem. «Se pensarmos numa açorda de marisco, que é um prato delicioso, vemos que parecem papas de bebé», diz Luís Baena. «A parte estética não é definitivamente o forte da cozinha portuguesa. Claro que o sabor é o mais importante mas, se queremos reconhecimento internacional para a nossa gastronomia, é preciso dar-lhe uma volta na altura de servir o prato.»

Guisados e ensopados, comida de tacho, um cozido ou uma feijoada. São maravilhas da mesa portuguesa, «mas que em termos de aspeto são o paralelo de um prédio de época com janelas de alumínio e marquises nas varandas». As palavras são de José Avillez. O ano passado, trouxe para o seu Belcanto uma segunda estrela Michelin – e foi a primeira vez que um restaurante lisboeta alcançou tal feito (há dois restaurantes em Portugal com classificação semelhante, ambos no Algarve e ambos liderados por chefs austríacos). Uma boa parte do seu trabalho é reinventar a comida tradicional e, em 2014, começou a servir na ementa uma versão muito particular do cozido à portuguesa. «Foi um dos pratos mais difíceis que compus, porque mexe com as memórias de toda a gente.»

Avillez fez várias tentativas antes de conseguir o que queria. Tentou colocar os enchidos numa terrina, mas depois percebeu que a essência do prato estava no caldo. Então criou um puré de couves sobre o qual deitou um creme feito à base de mão de vitela, enchidos e uma ponta de mostarda. As carnes são representadas visualmente por uma papada de porco, mais duas pequenas cenouras e um pouco de nabo. É uma composição que podia muito bem ser uma pintura. Come-se em três colheradas, às vezes vem um empregado acrescentar um pouco de caldo ao prato, e concentra todo o sabor que nos restaurantes médios se serve em travessas de inox.

«Já tive clientes que saíram daqui e foram provar o cozido tradicional, coisa que de outro modo não fariam, porque não é um prato muito apelativo em termos visuais», diz o chef durante uma manhã de azáfama no Belcanto. «As pessoas não viajam pelo mundo propositadamente para visitar restaurantes típicos, por melhores que eles sejam. Mas fazem-no para visitar restaurantes de topo.» Assegura, aliás, que tem clientes que vêm de propósito a Lisboa para jantar na sua casa. «Por isso, há a responsabilidade dos melhores chefs mostrarem os valores nacionais, da forma o mais atrativa possível.»

Esse trabalho está a ser feito, na opinião de Miguel Pires, crítico gastronómico e um dos autores do Mesa Marcada, blogue de referência da área. «A tendência de todos os grandes chefs em Portugal é mostrarem a cozinha tradicional do país numa versão moderna. Mesmo os cozinheiros estrangeiros que estão no país tentam fazê-lo.» O problema, diz, está no miolo da restauração. «Os sítios típicos têm de ser típicos, mas a alguns hotéis ou restaurantes médios falta técnica na altura de apresentar os pratos.» Pires diz que é difícil dar a volta a algumas questões – «como é que se faz uma fotografia bonita de uns filetes de polvo com arroz do mesmo?». Ainda assim, acredita que não é apenas a atratividade que explica a fraca exportação da cozinha nacional. «É preciso certificar a qualidade dos produtos regionais específicos que temos, foi isso que os italianos ou os espanhóis fizeram nas últimas décadas.»

«As tapas espanholas têm uma grande apresentação», constata José Avillez, e estão por todo o lado. «As pizas são simples e bonitas», responde Luís Baena, e tem propriedade para fazê-lo. Foi um dos pioneiros a aplicar conceitos de food design nos seus pratos. Há vinte anos andava a apresentar migas com entrecosto, tipicamente alentejanas, como se fossem um maki japonês. Fez sushi com queijo de São Jorge, presunto de Barrancos e mel da Arrábida, o que lhe valeu críticas nos blogues da especialidade. «Disseram-me que não tinha direito a manipular assim produtos portugueses tão bons porque estava a desvirtuá-los.» Então respondeu com a sua versão de pastel de nata. O creme a compor as letras da NASA, a massa folhada a simular uma nota de dólar enrolada e um risco de açúcar branco a fazer lembrar cocaína, tudo servido sobre uma guitarra elétrica. Pura estética rock’n’roll.

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José Avillez diz que se pode encontrar beleza na cozinha tradicional portuguesa. A doçaria conventual, por exemplo, é de uma estética ímpar. «Em França qualquer bistrot de esquina emprata bem a comida, mas temos de ver que os franceses levam-nos 500 anos de avanço a compor os pratos. Portugal não apanhou a nova onda de food design que nasceu nos anos 1960, com o aparecimento da nouvelle cuisine.» Agora, para sobreviver, poderá ter de fazê-lo. A culpa é, muito provavelmente, do Instagram, rede social de partilha de fotografias, em que a comida é uma das grandes protagonistas.

A série de televisão Hannibal, cuja terceira temporada estreia no verão e que tem recebido o aplauso da crítica e do público, é toda uma ode ao food design. O ator Mads Mikkelsen dá corpo ao assassino canibal que o mundo descobriu no filme O Silêncio dos Inocentes, e é raro o episódio em que não o vemos a preparar uma refeição. Os pratos, supostamente feitos com carne humana, são de uma elegância imbatível. Rolo de carne recheado com espinafres e cogumelos, fígado tandoori, pulmões Bourgignon. Os pratos são verdadeiramente preparados por Janice Poon, uma artista visual. Ela criou um blogue chamado Feeding Hannibal (Alimentando
Hannibal, em tradução livre) que se revelou um sucesso tremendo. A forma de apresentação dos pratos que vão à mesa de uma personagem de ficção tornaram-na um caso sério de sucesso, na internet e nos convites que tem recebido para viajar por todo o mundo, fazendo jantares temáticos.

A sensibilidade para o design da comida é, cada vez mais, uma exigência de um cozinheiro. Avillez estudou Artes até decidir mudar-se para a cozinha. Baena lembra-se das sensações da primeira exposição que viu no Museu do Prado e tenta aplicar alguma dessa emoção no que confeciona. «Mas, enquanto na maior parte dos países os alunos das escolas de hotelaria e turismo têm aulas de food design, em Portugal ainda não o fazemos de forma sistemática. Estranho, num país de turismo.»

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É precisamente a pensar no desenho dos pratos que Cláudia Villax ganha a vida. Depois de fundar várias revistas de gastronomia, dedica grande parte do seu tempo a fazer livros de culinária, «onde não há sabor nem cheiro, por isso o sentido visual é tudo». Hoje propõe-se a cozinhar rancho, um prato que considera fantástico, mas muito pouco atraente. Carnes estufadas e enchidos com grão e couves podem fazer as delícias de palatos exigentes, mas é preciso dar uma volta ao prato se a ideia for torná-lo estético.

«A loiça onde servimos os pratos é essencial.» É, aliás, uma preocupação crescente nos restaurantes de alta cozinha, mas que facilmente pode ser mudada nos escalões inferiores. «Temos o barro no Sul, o cobre e o xisto no Norte e faz sentido servir os pratos nos materiais da zona.» Diz que o país está tomado por uma epidemia de tachos de alumínio e travessas de inox que em nada contribuem para a dignidade da cozinha portuguesa. E explica a sua ideia no rancho.

Numa primeira versão apresenta a comida como a costumamos encontrar: numa travessa, com todos os ingredientes misturados. Depois compõe um prato. Primeiro uma cama de grão, para dar volume. Os enchidos e as carnes a rodearem a pirâmide, mais umas folhas de couve. No fim um pedaço de hortelã, apontamento de frescura. «É muito importante dar visibilidade a todos os elementos que compõem o prato. Numa travessa estariam todos misturados e, por isso, escondidos.» Luís Baena reforçaria esta ideia uns dias depois, falando das cartas. «Temos de explicar o que estamos a servir, porque os pratos contam uma história. É difícil em Portugal encontrar boas ementas, e a fórmula é simples.» Identificar a proteína e a forma como foi cozinhada, especificar o acompanhamento e terminar com um pormenor. Um exemplo simples: bife de vaca cozinhado em azeite e alho na frigideira de barro, com batatas fritas caseiras e ovo a cavalo. Na verdade, um bitoque.

Vítor Claro, que batizou o seu restaurante em Oeiras com o apelido, tem dobrada na ementa – é aliás o único prato de vaca que serve no menu de degustação. Diz-se conservador, e por isso é apreciador da comida de tacho e travessa, mas também sabe que precisa de dar uma volta à apresentação se quer agradar a uma clientela internacional. «Não é preciso inventar muito, mas a um prato com aspeto pesado é preciso dar-lhe leveza.» Então ele fez isto: prensou o estômago da vaca com os enchidos e cortou-o em fatias muito finas, trocou o feijão branco pelo grão – e descascou-o. «Os sabores estão todos lá, mas o corte da carne dá-lhe elegância e retirar as cascas transmite leveza.» Na sua opinião, até uns pezinhos de coentrada podem ser transformados numa refeição bonita.

«É muito importante preservar a autenticidade e o conforto da gastronomia do país», avisa. «Mas jantar já não é só jantar, é toda uma experiência. A loiça, os copos de vinho, a decoração do espaço e o aspeto do prato – tudo são elementos de entretenimento.» Gastrotainment, podemos chamar-lhe assim. É cada vez mais isto que os clientes procuram. A comida, sim, mas também uma viagem num parque de diversões gastronómico.

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Um cozido à portuguesa, uma dobrada, um rancho ou umas migas com entrecosto podem ser pratos cativantes segundo os padrões internacionais. Provavelmente deviam, a bem da exportação de uma culinária rica que parece continuar envergonhada no mundo. «E isso é o mais fácil, porque o essencial já temos», diz José Avillez. «Os pratos que ainda nos fazem chorar são os que podemos comer de olhos fechados.»