
Quarenta e seis. Foram 46 anos de vida. Durante aquelas quase cinco décadas, ali passaram os bons e os maus momentos. Os que ficam para o álbum de fotografias e os que preferiam esquecer, mas fazem parte da história de uma família. Ali educaram três filhos – dois nasceram quando viviam naquela casa – e dois netos. Foi ali que lhes mudaram fraldas, que lhes seguraram as mãos nos primeiros passos, que os ajudaram a fazer os trabalhos de casa, que lhes levantaram a voz quando teve de ser. Foi ali que ficaram acordados enquanto o mais novo, único rapaz, não chegava das noites de copos. «Só consigo dormir quando já estás cá dentro e te ouço dar a última volta na chave, filho», dizia ela. Ali morreu um velho tio, de noite, durante o sono. Ali estiveram os avós, acamados, quando a doença obrigava aos cuidados da filha. Eram os pais dela, os sogros dele, a família cuida dos seus. Ali recuperou a mãe das dores dos vários pós-operatórios. Ali recuperou o pai, devagar, das poucas vezes que as maleitas o atiraram à cama.
Quarenta e seis anos depois de abrirem a porta daquele terceiro andar pela primeira vez, os meus pais mudaram de casa – agora para um rés-do-chão, que as pernas já pediam há muito. No fim-de-semana passado, em sete horas de caixas, montagens, mãos doridas e costas num oito, encerrou-se um capítulo das nossas vidas. Vários capítulos. Nos últimos cinco anos, mudei de casa quatro vezes, sei o que isso implica. Mas os meus pais… os meus pais não o faziam há cinquenta anos. E a cada prato protegido e acondicionado numa caixa, ou a cada livro separado para a pilha dos que vão para o centro de dia ou para o papelão, era uma história que o meu pai recordava.
A bancada da cozinha já não era a mesma, mas está no mesmo sítio. Era ali, jun-to à janela entreaberta, fosse verão ou inverno, que a minha irmã mais velha me dava o lanche enquanto contava histórias para me distrair e enfiar a Cérelac pela boca abaixo. Foi na sala, quando o velho sofá ainda estava encostado à parede grande, que eu vi a minha irmã do meio e o namorado comunicarem formalmente que iam casar. E foi na outra sala, sentada à mesa de onde caiu quando tinha 5 anos – e desta vez sem eu estar presente – que ela disse aos meus pais que ia divorciar-se. Vinte e um anos depois. Era no quarto pequeno – que fotografei depois de vazio, porque queria guardar a prova de como aquilo era antes de eu o colonizar – que eu ouvia música lamechas para esquecer as tampas das miúdas. Ou para me lembrar delas e armar-me em dramático. A cama agora é outra, mas foi ali que dei alguns dos primeiros amassos e cambalhotas da minha vida de quase-crescido (desculpa mãe, mas tu no fundo sabias, não sabias?).
Quanto dos nossos afetos é que depende do local onde os vivemos e sentimos? O que somos e aquilo que nos tornámos depende do ambiente em que crescemos, das paredes que riscámos e do canto onde arrumávamos os sapatos? Ou seríamos tudo o que somos, fosse num terceiro andar da Amadora, num rés-do-chão de Paredes ou numa casa com quintal em Faro? São os sítios que fazem parte de nós, ou somos nós que pertencemos a um sítio?
As casas dos pais serão sempre o mais fiel e seguro depósito das nossas memórias, onde podemos voltar sempre que apetece. Alguma memorabilia aproveita-se, outra nem por isso. No sábado, desfiz-me de muita coisa que ocupa demasiado espaço físico dentro de uma caixa, se tiver de ser arrumada na nova geografia. Mas guardei o bilhete de cinema de A Minha Madrasta É Um Extraterrestre, a cassete BASF gravada com músicas dos Dire Straits (Jesus!), o papel de rebuçado que foi dividido, o horário dos barcos para Cacilhas e a caneta com várias cores.
[15-12-2013]