Velho pavimento, novas estradas

Notícias Magazine

Fico suspensa no ar que ocupam aquelas palavras, a ou­vir o mundo ser construído pela experiência que mora nas histó­rias contadas, os olhos arregalados, ansiosos por mais. Mais his­tórias, mais mundo. E o meu pequeno mundo assim foi aumentan­do, à medida do que os mais velhos me iam contando acerca da família, dos amigos, da vida. Que riqueza tão grande que está con­tida em cada pessoa mais velha, que já passou por onde iremos in­falivelmente passar.

Queremos muitas vezes acreditar que não, que as expe­riências são diferentes, porque os tempos são outros. Só que não é bem assim. Ainda que o contexto possa mudar, os desafios e obs­táculos que a vida nos coloca não diferem em substância. Por isso, descartar alguém porque tem não sei quantos anos de vida e está ultrapassado é descartar o nosso próprio futuro, dizendo que está obsoleto. Não sei por que se considera que apenas a juven-tude pode carregar a inovação com que se relaciona a imagem de futuro. A experiência de uma vida que se encontra na sua fase final pode contribuir para um conhecimento enriquecido e uma visão mais alargada do mundo, o que gerará, por si, novas ideias.

Do velho não poder advir novo é uma máxima que não me cabe nas ideias. Para já, porque parte do princípio que as histórias de antanho que se contam servem apenas para entreter. Ora, pen­sar que a única função de uma história, ficcional ou factual, é lúdica, é menorizar o valor da literatura oral ou escrita na cons­trução do mundo em que vivemos. Depois, incomoda-me que se tenha em tão pouca conta outros seres humanos, só por causa do número de anos que já viveram e que se descarte a sua voz, porque se acha que não se consegue encontrar validade ou con­temporaneidade nas suas referências.

Pelo contrário, sinto que fico mais bem preparada para a vida, sempre que me sento a ouvir e a conversar com alguém mais velho que se mostra disponível para despender algumas horas do seu dia na minha companhia. Na profissão que escolhi ainda se deve aprender à antiga: com os mestres. Não me refiro apenas aos professores, mas também aos músicos que admiramos e com os quais nos cruzamos. Quando conseguimos ter a coragem de nos chegarmos ao pé deles e pedir-lhes que nos contem um pouco da sua arte, aprendemos tanta coisa importante para o nosso percurso. As horas de conversa que tivemos com os membros dos Gaiteiros de Lisboa, durante os ensaios para o concerto que fizemos em conjunto, em Novembro passado, foram preciosas para a nossa experiência musical. As histórias incríveis que nos contaram acerca de como se fazia música em Portugal antes e depois do 25 de Abril. A estrada, os palcos, os estúdios e gravações. As formas de trabalho, o companheirismo, as partidas que se faziam, a forma como esta ou aquela canção, tão importantes para nós, foram escritas, as histórias por detrás delas que nunca sonhámos, enquanto as ouvíamos. Percebemos melhor a pessoa que se esconde atrás do músico. Uma pessoa como nós, com vulnerabilidades, pecados e virtudes desconhecidas. Com histórias preciosas que, ao ficarem esquecidas no rasto de poeira de tudo o que já passou, não conseguem ajudar a pavimentar a estrada que ainda há a fazer. Tenho a sorte de poder contar na minha estrada com a ajuda de tanta gente cheia de história que ali deixou o seu contributo. Está lá marcado, como nas auto-estradas, ao quilómtero tal e tal, a sua importância e a certeza de que não teria conseguido avançar não fosse a sua disponibilidade. Por isso, sempre que alguém se disponibiliza a contar-me as suas histórias, fico assim, suspensa no ar que ocupam as suas palavras e que ajudam a pavimentar a minha estrada.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA

[09-03-2014]