Há famílias pobres em Cascais que comem diariamente uma refeição porque existe uma Cozinha com Alma. O projeto nasceu da boa vontade de duas amigas que há dois anos juntaram um grupo de voluntários, parceiros e clientes para a causa. Hoje, os que mais têm contribuem para os que mais precisam. Seja em tempo ou dinheiro.
Qual a receita para uma cozinha com alma? Muito simples. Juntam-se duas amigas com vontade de ajudar quem está a passar por uma situação difícil, um chef conhecido, um grupo de empresas e instituições parceiras e uma equipa de voluntários. Colocam-se todos no lugar certo, neste caso na cozinha do centro social da Pampilheira, em Cascais, e acrescenta-se uma dose de compromisso.
Foi deste modo que nasceu e cresceu o projeto idealizado por Cristina de Botton e Joana Castela para combater a «pobreza envergonhada» que afeta muitas pessoas de classe média da zona de Cascais a quem a crise bateu à porta e deixou sem rendimentos. O resultado, dois anos depois, é gratificante: neste momento, há cem famílias que todos os dias podem ir buscar uma refeição à loja da Cozinha com Alma, pagando um preço simbólico – entre 30 e 90 cêntimos – porque há duzentos clientes que diariamente vão ao mesmo estabelecimento e pagam entre seis e dez euros pela mesma refeição.
«Sinto uma enorme alegria por ver como todas as pessoas aderiram a esta causa, sejam elas voluntárias, parceiras ou clientes», diz Cristina de Botton, que descreve o projeto como algo muito parecido à história do Robin dos Bosques: «Todos os que podem contribuem para aqueles que neste momento estão mais fragilizados. Existe uma maior consciência social e os cerca de setenta voluntários que aqui temos, e que são a grande força de trabalho da Cozinha com Alma, assumiram o compromisso de vir todos os dias às horas que lhes são indicadas.»
É como uma grande família, composta na sua maioria por mulheres mais velhas, mais novas, reformadas, trabalhadoras, ou domésticas, com filhos, netos ou até bisnetos, que dão parte do seu tempo disponível a esta missão e fazem que tudo funcione às mil maravilhas. Trata-se de uma cadeia solidária em que nenhum dos elos pode falhar.
Todos os dias, a azáfama no centro social começa bem cedo. O chef residente, Nuno Simões, entra por volta das sete horas e, juntamente com o Fábio, a Ana e o Samuel, tem de orientar a produção dos menus para a loja… e também para as setenta crianças da creche. É que um dos parceiros do projeto é a Santa Casa da Misericórdia, que cedeu a cozinha do centro da Pampilheira, em troca desse compromisso. Usam o espaço gratuitamente, mas têm de providenciar a alimentação dos mais pequenos.
O «pico» de venda na loja acontece entre as 12h00 e as 13h00 e, da parte da tarde, entre as 18h00 e as 19h30. Existe uma boa variedade de escolha, mas os pratos com mais saída são o bacalhau com natas, as tartes de frango, as empadas, o arroz de pato e o crumble de legumes. Tudo em doses individuais ou familiares, sendo apenas preciso colocar no micro-ondas ou no forno durante uns minutos, e está pronto a comer.
Para pôr este comboio solidário em marcha foi precisa «muita lata», persistência e coragem. A ideia de Cristina de Botton e de Joana Castela (que entretanto se dedicou a outro projeto) foi a de criar um negócio em que o público paga o preço total da refeição e o lucro vai contribuir a cem por cento para uma bolsa social. E a família que beneficia dessa bolsa paga sempre um valor simbólico pela mesma.
A seleção dos que recebem esta ajuda é feita pela comissão social de freguesia, de acordo com os rendimentos de cada agregado familiar. Cada bolsa dura seis meses e só pode ser renovável por uma única vez. Mulheres, solteiras ou divorciadas, com dois ou mais filhos, que perderam o emprego e não têm apoio alimentar ou rede familiar – este é, maioritariamente, o perfil das famílias típicas da bolsa social. As vendas na loja alcançaram no ano passado os 327 898 euros, o que significou um crescimento de 104 por cento em relação a 2012, altura em que o projeto arrancou.
O objetivo agora é dinamizar e estender a Cozinha com Alma a outras cidades, sendo o Porto uma das que está na lista. Para isso, é preciso encontrar um voluntário que esteja disposto a abraçar este projeto e a concretizá-lo, tal como funciona na Pampilheira. É fundamental cativar empresas, amigos e «padrinhos» para obter financiamentos, parcerias e apoios pro bono. «Ainda agora pedi ao arquiteto Frederico Valsassina para projetar a nova cozinha e ele aceitou.Vai fazê-lo por dedicação à causa», diz Cristina. O mesmo acontece com a sociedade de advogados Vasconcelos e Arruda, «que presta apoio legal sem cobrar um euro, e a empresa Century, por exemplo, que faz a nossa contabilidade completamente à borla». Apoio financeiro muito relevante tem sido o de mecenas como a EDP e o BPI e, ainda, da SIC, que ofereceu a carrinha para o transporte dos alimentos.
A formação dos beneficiários das bolsas sociais, que se encontram desempregados, e dos voluntários, foi igualmente uma preocupação e, nesse sentido, a Cozinha com Alma tem realizado vários workshops de valorização pessoal e de empreendedorismo. No caso dos voluntários, o coaching também permite que possam olhar para estas situações de pobreza envergonhada com outros olhos. «Sobretudo, aquilo que nunca devemos fazer é julgar ou comentar. Esse é um princípio básico para uma sã convivência entre todos e, muitas vezes, é fundamental fazer formação para que todos saibam enfrentar as novas realidades.»
Na semana passada, a Cozinha com Alma fez dois anos. À volta do bolo de aniversário gigantesco estava muita gente. Conhecidos e anónimos.Todos cumprimentavam efusivamente Cristina de Botton, que é uma mulher feliz, com três filhos, arquiteta paisagista, e que decidiu um dia olhar para os que mais precisam, tal como o fizeram os pais e irmão, fundadores da empresa Logoplaste, onde funciona o Cadin, centro de apoio a crianças com problemas de aprendizagem.
«A educação que recebi foi fundamental para não desistir à primeira dificuldade. Este projeto é a prova disso», conta. É essa atitude de perseverança que a faz seguir em frente e ser «um grande pilar» das «famílias» que vai criando. E em que cada um sabe que só pode dar a alma que tem para alimentar e equilibrar a vida dos outros.
A EQUIPA
Na cozinha quem manda é o chef Nuno, que tem como ajudantes o Fábio, a Ana e o Samuel e os voluntários que fazem os turnos da manhã, da tarde e da noite para preparar as trezentas refeições que todos os dias ali são confecionadas. «Começo às sete ou oito da manhã e acordo sempre com muita vontade de vir trabalhar porque sei que a única coisa que o “patrão” quer é ajudar quem precisa.» Este é o espírito de Nuno Simões, um dos primeiros alunos da Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril a fazer o curso de cozinha e pastelaria, que já teve dois restaurantes, trabalhou em outros tantos e até estagiou a bordo do Expresso do Oriente. Experiências que lhe serviram para perceber que há incompatibilidades na vida que levam a tomar opções. «Tenho uma família, mulher e duas filhas, com quem quero estar. Os horários que tinha antes eram muito complicados, hoje em dia consigo conjugar tudo e ser mais feliz.» A ideia de abraçar a Cozinha com Alma surgiu através de uma ex-cliente. «Gostei muito das pessoas que estavam envolvidas e disse que sim. Adaptei a boa cozinha portuguesa ao take-away e o resultado é muito satisfatório.»
Fábio, mais conhecido como Alface, é o braço direito de Nuno. Tem 25 anos, é licenciado em Produção Alimentar e Restauração, e agarrou esta oportunidade porque sempre foi «muito voluntarioso». Com um percurso de dedicação aos outros – foi presidente da associação de estudantes ou representante dos alunos nas escolas que frequentou –, este jovem cozinheiro aprecia, sobretudo, o ambiente em que trabalha: «Aqui não há atritos e todos os dias são diferentes. Sei que estou a ajudar e, isso, é para mim mais importante do que trabalhar num hotel ou num restaurante.»
[Texto originalmente publicado na edição de 23 de fevereiro de 2104]