“Quando morrer vou deitada, quando morrer vou deitada”, penso, para comigo e repito-o, incessantemente, como um mantra. Podia ser o lema de qualquer aspirante a yuppie. Para subir a escada que alguém lhe disse que existia até um suposto céu cheio de bens materiais e sucesso profissional, é preciso trabalhar, trabalhar, até à exaustão. Ou, então, a crença protestante que dita aos seus fiéis que é através do trabalho que encontram a salvação. Poderá ser também que por desorganização ou por excessivo amor ao trabalho, não consigamos encontrar um tempo de pausa na nossa vida e repitamos para nós, como um mantra que nos dá força para continuar, que quando morrermos, descansamos.
Como a cenoura que se coloca frente aos olhos do burro, que corre, com todas as suas forças, para a tentar apanhar e comer, assim são os que precisam de acreditar que a sua interminável labuta terá fim um dia. O problema é que, segundo o que nos diz a afirmação, o fim acaba com a morte. Não se consegue descansar antes. Talvez se morra de cansaço. Quer-se trabalhar tanto, construir tanto, deixar tamanha obra para trás, que morremos de cansaço. Deixamos marca à custa da nossa força vital. Mas, também, viver sem fazer mossa não parece ser algo que valha muito a pena. Parece mais uma oportunidade desperdiçada. Andar por aqui em bicos de pés, a pedir desculpa por existir e sem querer incomodar ninguém não joga cá com as minhas ideias.
Pior do que morrer jovem e deixar um corpo bonito para trás, é morrer muito velho e deixar um corpo imaculado para trás. Não direi que devamos abusar dele até que pareça pronto para ir para a sucata. Tão-pouco teria moral para isso. Tenho aversão a substâncias químicas que causam adição e, por isso, nem café bebo. Tenho os cuidados básicos com a pele e o cabelo, ponho sempre um creme hidratante no corpo e vou ao ginásio com alguma regularidade. Não professo que se tenha mau aspecto. Professo que se deixe marcas na vida e que a vida deixe marcas em nós. Uma simbiose, um jogo de sedução.
A relação com a vida é um trabalho em progresso. Um processo maior, dentro do qual se encadeiam outros processos. Um movimento contínuo. Se cansa? Cansa, pois. Há vezes em que parece que não se aguenta este ritmo, imparável, implacável. Sentimos que precisamos de pausas. Na música, as pausas são essenciais. Ajudam a caracterizar a própria música e moldam-na, como o seu contrário. A pausa, existindo, valoriza a música que se lhe segue. Na vida, às vezes, precisamos de parar um pouco. Só um pouco. Para se valorizar isto de estar vivo e de se trabalhar a vida. Trabalhar a vida é diferente de trabalhar na vida. A segunda significa que ao estarmos vivos, fazemos coisas para subsistir, a primeira significa que não somos sujeitos passivos na nossa própria vida e que nos ingerimos em todos os assuntos que a ela digam respeito. Paramos, mas por um milissegundo, para recuperar o fôlego, apenas.
“Quando morrer, vou deitada”. Entretanto, ainda há muita coisa a fazer. Por muitas razões. Por tantas razões. Para subsistir, para sentir, para experimentar, para aprender. No pouco tempo que temos, há que passar por tanta coisa. No final, sossegamos. Mas enquanto aqui estamos, o nosso dever é andar. Com verticalidade, sempre. Viver dobrado não conta. E a horizontalidade é para gente morta. “Quando morrer, vou deitada”, assim o dizia a minha avó. Mais uma das suas geniais e certeiras frases feitas, que me fazem pensar, mas, sobretudo, que me impelem a fazer. E a bem viver.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[08-12-2013]