Um dia descubro-me célebre

Notícias Magazine

Há meses, estive na Coreia do Sul com um grupo de jornalistas de vários países. Reparei que a minha intérprete, depois de fazer-nos uma fotografia, era por vezes assediada pelo ecrã do seu Samsung. Estranhos carateres assinalavam um dos fotografados do grupo. Que era aquilo? A sul-coreana explicou-me: «O ecrã es­tá a perguntar-me se esta pessoa da foto é Fulano e eu digo sim ou não.» Espantei-me: a omnipotente nuvem que guarda tudo, onde o meu nome aparece, agora também me guarda a imagem! Algu­res, um deus ex machina vai acumulando imagens minhas, define o que é essencial nos meus traços e mete-me na pasta «Cara do Sicrano«. Talvez, até, já me tenha apanhado a postura das mãos, a inclinação dos ombros, os tiques.

Até agora, se queria saber de mim na net, ia ao Google e es­crevia o meu nome. Mas com esta nova aplicação, alguém põe uma foto minha e descobre-me, em segundo plano, a passar por uma desconhecida Marília, na Meia Praia, em Lagos, que posa para o namorado: a Marília postara a foto no Facebook… Não viria daí mal ao mundo não fosse eu ter telefonado ao patrão a dizer estar acamado com gripe. Resumindo, o cerco aperta-se. E nem é preciso andarmos por lugares onde os turistas clicam. Nas cidades, os nossos passos são seguidos por câmaras de vigi­lância. Por função, caçam infratores; por arrasto, agarram-nos também.

Nesta semana, um atirador andou por Paris com uma ca­rabina. No jornal Libération feriu gravemente um jovem e as ima­gens do atirador maluco espalharam-se por uma Paris aterrori­zada. Eis a função das câmaras de vigilância justificada, talvez à hora em que o leitor me lê o maluco já tenha sido detido. Mas reparem como o mundo ficou a saber dos momentos fantásticos do velhinho que, por acaso (viria a saber-se mais tarde que era um padre), estava no átrio de um canal televisivo também ata­cado pelo atirador. Uma câmara de vigilância filmou e corre no YouTube o vídeo do velhote a sair do balcão.

O velhote agarra-se à bengala e apresta-se a subir os poucos de­graus que o levam à saída. Aí, pela porta giratória, vê-se a entrar um vulto que tira uma espingarda do saco. O velho padre, que certa­mente o viu, estranha (porque para), mas os seus reflexos já não são o que eram e ainda não o relacionou com perigo. Continua  a mar­cha, enquanto o da espingarda desce a escada. Cruzam-se e o velho­te ainda vai a magicar no estranho que é, ali, um homem de espin­garda. Quando põe o pé  no primeiro degrau, o da espingarda dá dois tiros para o balcão. O velhote olha para trás, agora já convenci­do de que há mesmo qualquer coisa errada: a bengala e as pernas arranjam maior velocidade, embora não muita, subindo as escadas. O atirador passa pelo velhote, sempre sem lhe ligar, e foge pela por­ta… E o nosso velho, figura involuntária e felizmente incólume num drama que correu mundo, desaparece das nossas vidas.

O que eu gostaria de ter assistido às conversas do velho, mais tarde, com os seus, à volta do vídeo: «Padre, como não viu lo­go a espingarda do homem?» Mas não, não saberei disso, a intru­são das câmaras ainda é só voyeurista, sem profundidade. Ainda só nos desenham o corpo e a cara, não nos contam como pessoas. Porém, a que mudança radical assistimos!

Só há pouco, graças a reconstituição feita por cientistas, co­nhecemos as feições de Ricardo III, o último rei inglês morto num campo de batalha. Pode ser-se personagem de uma peça de Shakespeare e passar quinhentos anos sem que lhe conheçam a cara… No último filme de João César Monteiro, Vai e Vem (2003), há uma cena nas escadarias da Assembleia da República. Sob os leões de pedra, o iconoclasta João César Monteiro, que também faz de ator, explica a uma atriz uma determinada posição sexual. Entretanto, ao fundo, a câmara fixa capta o trânsito da cidade, o elétrico da Estrela, o 28, que sobe a calçada… Ora, há dez anos, eu andava naquele elétrico. Amanhã, procuro imagens minhas no Google e apareço – nítido pelas técnicas modernas e sentadinho à janela do 28 – metido numa obra de arte.

[24-11-2013]