Um chef português no luxo americano

Anthony Gonçalves nunca entrou numa escola de cozinha, mas pelo seu restaurante de influência portuguesa, no 42.º andar do luxuoso hotel Ritz-Carlton, em Nova Iorque, já passaram Michael Jordan, Leonardo DiCaprio ou Michael Douglas.

No caminho escuro para o elevador, anuncia-se apenas o nome do res­taurante, «42», com nú­meros luminosos, ver­melhos. Quando o ele­vador começa a subir, as paredes de vidro reve­lam uma vista assombrosa, que só é possí­vel porque esta torre do Hotel Ritz-Carlton, em White Plains, a meia hora de Manhat­tan, é o edifício mais alto entre as cidades de Boston e Nova Iorque. No quadragési­mo segundo andar, as enormes janelas do restaurante iluminam cada pormenor de uma decoração sofisticada. Ao fundo, jun­to ao bar, o chef Anthony Gonçalves. Botas e calças de ganga justas e escuras, T-shirt dos Beatles, braços tatuados, cabelo apara­do dos lados, mais longo em cima, pentea­do para trás com gel. Aos 42 anos, o luso-americano é uma estrela rock numa das co­zinhas de maior sucesso em Nova Iorque. As frases que servem de lema para o restau­rante – «Aperta o cinto. Estás na viagem da tua vida.» –  já tinham servido de aviso.

Antes de o The New York Times atribuir ao 42 a classificação máxima por três anos consecutivos, antes de a revista Esqui­re considerar que o luso-americano é um dos chefs a ter em vista e antes de a revista Time o incluir na série «Chefs do Futuro», Anthony, filho de António e Beatriz Gon­çalves, crescia nos campos de futebol da ci­dade de Yonkers, no estado de Nova Iorque, onde sonhava com o dia em que jogaria de forma profissional e, talvez, vestir a cami­sola do seu clube português, o Benfica.

Mas, na universidade, uma lesão no joe­lho obrigou-o a desistir do sonho. Duran­te a licenciatura em Marketing, começou a servir às mesas no restaurante de um ami­go. «Percebi que tinha uma paixão por res­taurantes e bem receber. Comecei a sonhar com o meu espaço, onde servia as receitas de que gostava e as pessoas se sentiam bem, mas nunca pensei em cozinhar.»

Durante alguns anos trabalhou como promotor de festas e DJ, mas, aos 26 anos, decidiu abrir um espaço seu. Em socieda­de com os pais, que tinham emigrado para os EUA no início da década de 1960, trans­formou o bar Trotters Tavern, em White Plains, num pequeno restaurante. «Criá­mos uma ementa, mas não conseguíamos um chef que a fizesse bem», lembra. Os co­zinheiros sucederam-se durante vários me­ses. Numa semana, Anthony despediu dois. Foi nessa altura que decidiu avan­çar. «Eu e os meus pais tínhamos muito di­nheiro investido. Não sabia cozinhar, mas sabia que não podia continuar a arriscar. Saltei para a cozinha.»
Com o pai a tratar do serviço e a mãe res­ponsável pela gestão, Anthony concen­trou-se na cozinha. «Não sabia nada. Ti­ve de abrir a cabeça e concentrar-me num pensamento: “Este é o negócio que eu que­ro e, se nunca aprender, nunca vai correr bem.” Foram dois anos de trabalho muito duro, a cometer muitos erros e a continuar a tentar.» Mas, passado esse tempo, o Trot­ters Tavern era um sucesso. O menu tinha–se tornado uma homenagem às tascas e adegas que conhecera nos verões em Por­tugal. É que Anthony tomou também outra decisão arriscada: tinha decidido não ir pa­ra uma escola de culinária, confiando an­tes nos ensinamentos do pai e da avó Gló­ria. Até completar 18 anos, o chef, que até ir para a escola só falava português, pas­sou todas as férias de verão deste lado do Atlântico. E, mesmo nos Estados Unidos, viu a família fazer linguiças e vinho a cada setembro. «Cresci a comer caracóis, cama­rão, rissóis de bacalhau, cabrito, carne de porco à alentejana, linguiça. A comida ti­nha uma importância enorme na nossa ca­sa, era a nossa riqueza. Ao pequeno-almo­ço falávamos do almoço, ao almoço faláva­mos do jantar e ao jantar começávamos a planear as refeições do dia seguinte.»

Em 2004, o nome do português era co­nhecido em Manhattan. «Nessa altura co­mecei à procura de oportunidades na cida­de.» Quando o conhecido restaurante Le Cirque deixou o New York Palace Hotel, An­thony foi um dos dois finalistas para liderar a cozinha do restaurante substituto, o Gilt. Na prova final, acabou por não ser o escolhido, mas uma segunda porta abriu-se para Gon­çalves. Um dos clientes habituais no Trot­ters estava presente na prova e falou-lhe de uma oportunidade: o empresário era um dos responsáveis pela construção do novo Hotel Ritz-Carlton e tinha um espaço de 2200 me­tros quadrados, a 150 metros de altura, dis­ponível para construir um restaurante de sonho. Queria Anthony ser o seu sócio?

«Claro que sim!» O português nem he­sitou quando pensou na mudança que se­ria passar do pequenino Trotters para um gigante onde teria de servir mais de 1500 pessoas por semana e dirigir uma equi­pa de 87 pessoas a tempo inteiro. Durante 12 meses, planeou o espaço com o sócio e um arquiteto, no ano seguinte aconteceu a construção e em 2007 abriram portas. No início, trabalhava entre 15 e 18 horas por dia. «Foram sete dias por semana duran­te vários meses. Lembro-me do primei­ro dezembro, em que trabalhei 23 dias se­guidos.» Os filhos, gémeos, tinham 2 anos. «Perdi os primeiros cinco anos da vida de­les e perdi o meu casamento, divorciei-me.» E perdeu também a mãe. «Foi um grande desafio. Muito sacrifício e, uma vez mais, muito trabalho, mas foi o necessário para percebermos como tudo funciona e para tornar o negócio rentável.»

Anthony diz que não o teria consegui­do sem a ajuda do pai, do sócio e de oito funcionários que estão com ele desde o início no Trotters, há 14 anos. «Tornei-os pequenos parceiros do negócio, porque trabalham tanto. Eu sou apenas uma pes­soa com muitas ideias, eles tornam-nas realidade.»

Nos últimos anos, no entanto, percebeu que tinha de encontrar algum equilíbrio. Hoje ainda trabalha cerca de 70 horas por semana, mas joga futebol todas as semanas, vai à praia com os filhos, pesca com o pai. Vi­sita Portugal três ou quatro vezes por ano. Neste verão passou três semanas no país com os filhos, que têm dupla nacionalidade e es­tão a aprender português. «Quero expô-los a Portugal, levá-los aos Açores e à Madeira e, se tiver oportunidade, Moçambique, Bra­sil, Macau e Goa. Quero que eles conheçam o mundo português e a nossa cozinha.» Os gémeos querem ser jogadores de futebol e torceram por Portugal no Cam­peo­nato do mundo, mas também sonham ser cozinhei­ros como o pai. Anthony deu-lhes a primei­ra faca de chef quando tinham 7 anos e ago­ra  diverte-se quando tem convidados em casa e os filhos gostam de os surpreender, limpando ananases, cozinhando massa ou pão, partindo ovos como profissionais.

Entretanto, o restaurante 42 tornou-se popular entre várias celebridades. Despor­tistas como Vanessa Williams ou Michael Jordan, a equipa de basquetebol dos New York Knicks e de hóquei dos New York Ran­gers e atores como Michael Douglas, Ca­therine Zeta Jones e Leonardo DiCaprio costumam passar por lá.
E a influência portuguesa na cozinha mantém-se, claro. «A minha culinária é mo­derna, é portuguesa e é americana. Os nossos ingredientes são portugueses. Cresci a comer assim, mas pego nessa base sólida e transformo-a. É algo diferente, mas de­pois provas e pensas: “Espera aí, eu lem­bro-me disto.”» O restaurante tem uma grande lista de vinhos portugueses, que está sempre a expandir, e Anthony cos­tuma convidar alguns amigos, chefs na­cionais, para cozinhar consigo, como fez em 2012 com Marco Gomes, do restauran­te Foz Velha, no Porto.  «Trazer a cozinha portuguesa para os EUA é aquilo em que trabalho todos os dias.».

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