
Denis Villeneuve, o realizador canadiano da moda, adapta O Homem Duplicado, de Saramago, ao cinema. A estreia é a 18 de junho, quatro anos exatos sobre a morte do nobel português. Apesar de ser um filme espanhol e canadiano, a estrela é de Hollywood: Jake Gyllenhaal
acha que Saramago ia gostar disto.
Saramago no cinema. A ideia mete medo depois de no passado, com Jangada de Pedra, Embargo e Ensaio sobre a Cegueira, meio mundo ter ficado de pé atrás. Há razões para isso? Não, o filme é uma adaptação livre que tem qualquer coisa intrínseca de Saramago.
Um professor de História em Toronto, a atravessar uma fase de exaustão psicológica, descobre acidentalmente que existe um ator secundário de cinema, que é a sua cara chapada. Um duplo de si mesmo. Fica obcecado e começa a procurá-lo de forma incessante.
O filme de Denis Villeneuve, responsável por Raptadas, acentua a carga kafkiana do romance de Saramago e explora um pendor existencialista mais perto da ficção científica.
Jake Gyllenhaal aproveitou a oferenda e aceitou ser os dois homens de Saramago. Em Madrid, a estrela de Hollywood recebeu-nos com um ar pesado: barba longa e cabelo ainda mais longo e apanhado, look a que não pode fugir nem na folga das filmagens de um dos filmes mais esperados do próximo ano: Everest, sobre montanhistas presos numa tempestade de neve. Alguns jornalistas espanhóis comentam com o tradutor que o chico se tornou hipster. Nada disso, embora Jake seja um caso difícil de catalogar. É dos poucos que conseguem ter o carisma necessário para protagonizar filmes conquistadores de bilheteiras como O Dia Depois de Amanhã ou O Príncipe da Pérsia e, ao mesmo tempo, manter a aura de figura de culto em trabalhos como O Segredo de Brokeback Mountain, Donnie Darko ou Fim de Turno. Tudo enquanto é considerado um dos homens mais sensuais de Hollywood.
«Admiro Saramago, mas tenho de confessar que não li O Homem Duplicado. Era importante para mim não ter lido o livro, não queria estar influenciado… Senti que isso seria essencial!» Todos sabem que adaptar um livro ao cinema é complicado e Jake confessa a sua tendência para «sobreintelectualizar tudo». Mais do que inspirar-se no livro, tentou inspirar-se em si próprio, na sua vida. «Foi assumida a intenção de descolar o guião do romance, daí que eu quisesse ter liberdade total para criar as duas personagens. Tive e tenho a sensação de que é assim que Saramago gostaria… Tudo está baseado numa ideia, não no livro. Como é um autor tão extraordinário, poderíamos ir pelos mais variados caminhos. Esta é apenas uma das vias. Procurámos que o espetador experimentasse este filme como se estivesse a ler um livro: cheio de experiências. Queremos que seja diferente para cada pessoa. Numa das primeiras reuniões da equipa falámos da elasticidade da história. O Denis Villeneuve contou-me que por muito que se afastassem do livro voltavam sempre a ele… A verdade é que admiro muito o senhor Saramago», diz.
Sem tiques de vedetismo e querendo fazer-nos acreditar que está cansado de tantas filmagens, Jake jura que tentou vir a Portugal mas não conseguiu passar de Madrid. De facto, O Homem Duplicado tem dinheiro espanhol e canadiano, uma prova de que cada vez mais nuestros hermanos procuram um cinema para ser visto globalmente como aconteceu quando O Impossível, de J.A Bayona, se tornou um dos filmes mais vistos no mundo, em 2012. «Gostava imenso de ir a Portugal, mas confesso que preferia que fazê-lo como turista…», revela.
A verdade é que a distribuidora do filme, a NOS Audiovisuais, chegou a contemplar a vinda da estrela de cinema ao nosso país, mas não foi possível. Cá ou lá, a verdade é que Jake Gyllenhaal não para de falar de Saramago: «Tenho a sensação de que fizemos o que Saramago queria : não respeitar em demasia o livro mas sim a sua ideia. O que fizemos foi uma interpretação.»
A viúva do escritor, Pilar del Río, já veio a público dizer que sentiu o espírito de Saramago neste filme. «Ontem à noite, aqui em Madrid, conheci a Pilar. Foi uma honra! Que mulher tão efusiva! Estou muito contente por ela aprovar Enemy [título original do filme].»
Qual é, para o protagonista, a questão essencial neste projeto? Uma alegoria de uma sociedade cansada? A discussão sobre a falta de humanismo contemporâneo? Não, para Gyllenhaal o motor desta fantasia sombria de Saramago é outro: «O caminho sexual masculino. Tem tudo que ver com a simbologia de um homem a comprometer-se numa relação íntima. É um caminho masculino, embora as mulheres neste filme tenham um peso enorme. Elas é que definem aqueles dois homens. Sem elas, não seriam eles mesmos.» Dê por onde der, a estranheza desta obra dá para mil e uma interpretações. Esse é já um dos trunfos da adaptação de Villeneuve, que rodou quase simultaneamente com Gyllenhaal o filme Raptadas, estreado no ano passado em Portugal.
Na despedida, Jake coça a barba longa e faz um prognóstico: «Penso que os leitores de Saramago vão gostar deste filme, mas nunca se sabe. A literatura provoca interpretações diferentes em cada leitor… Tem que ver com a imaginação e as experiências de cada um. E com um autor tão extraordinário como ele, há uma série de caminhos para chegar lá… Tentámos mesmo que o espetador reagisse como se estivesse a ler um livro. Quero que este filme seja diferente para cada pessoa que o veja! Cada espetador vai ter a sua interpretação e todas serão válidas. Não é uma obra de cinema que se possa colocar numa caixa e compartimentar.» A aranha gigante que por aqui aparece só pode ser explicada pela cabeça de cada um. Chama-se a isto petisco para os neurónios…