Tudo o que se pode dizer com um silêncio

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NÃO ME LEMBRO DE QUANTAS VEZES ACONTECEU, mas foram as suficientes para quase se tornar um hábi­to. Ou, pelo menos, para eu já não estranhar quando ocorria. E até para achar alguma piada cada vez que ela o fazia. Durante vários meses, em várias ocasiões em que estava sozinho com a minha filha mais velha, ela olhava para mim e chamava-me. «Papá.» Eu, ine­vitavelmente, dava-lhe a mesma resposta. «Diz, filha. O que é?» E ela, que não respondia, voltava à carga passados uns minutos. «Pai.» Eu dava a mesma répli­ca. Ela, nada. Levantava a cara do que estava a fazer, olhava para mim durante uns segundos e continua­va a brincar. Por mais que eu insistisse, dali não saia mais nada. Fosse qual fosse a fórmula. «Chamaste o pai?» «Carolina, o que é?» «Precisas de alguma coisa, filha?» «Sim, chamaste?»

COMECEI A ACHAR GRAÇA àquilo que eu achava que era uma brincadeira. Fazia-lhe uma festa na cara ou pegava-lhe ao colo durante uns minutos ou sorria… E lá voltava eu ao que estava a fazer antes. A prepa­rar o jantar. A passar os olhos à pressa pelo noticiário na TV. A focar-me na condução… Uma das vantagens de ver os filhos crescer é vê-los ganhar autonomia suficiente para nos darem uns preciosos minutos em que não temos de lhes dedicar atenção exclusi­va. Acontece – e demorei algum tempo até entender isto  – que o que a minha filha queria era precisamente isso: atenção. No fundo, de cada vez que ela voltava para o que a en­tretia, estava, afinal, a dizer «Resposta errada, pai».

A FICHA SÓ ME CAIU no dia em que acrescentei uma coisa à resposta habitual. «O que foi, filha? Queres que o pai fale contigo?» Íamos a caminho da creche, a ir­mã quase a dormir, ela com os olhos na janela, eu com a cabeça em qualquer lado, menos no interior do car­ro – o trânsito, as horas, o tempo para chegar à reda­ção, o que tinha de fazer naquele dia…. Lá achei que era aquilo que precisava de dizer para justificar o si­lêncio. «Siiiiiiim», respondeu ela. Era isso mesmo.

HISTÓRIAS FOFINHAS DE FILHOS, daquelas em que to­dos os pais se podem rever, estão próximas do grau ze­ro de originalidade para crónicas. Mas esta… esta é di­ferente. Dois anos e dois meses depois de me ter tor­nado pai, cinco anos e meio depois de ter começado a namorar com a mãe das minhas filhas, 40 anos de vi­da, percebi, pela primeira vez, o que os meus silêncios podem fazer. E percebi, pela primeira vez, que às ve­zes preciso de abrir uma fresta para deixar entrar al­gum barulho. Ou ser eu próprio a fazê-lo. É que viver debaixo do mesmo teto com alguém que tantas vezes se encaixa num mundo próprio, só seu, pode ser com­plicado. E solitário.

ANTES DE TERMOS FILHAS, às vezes a minha mulher passava por mim em casa ou enfiava a cabeça pela por­ta do escritório e soltava um «Olá! Era só para saber se ainda cá estavas.» Não é que tenhamos uma casa grande, mas não raras vezes eu vivo nela como se es­tivesse dentro de uma bolha minha. Preciso disso. Do meu tempo e do meu espaço. Mas ter-me tornado pai e ter-me habituado a passar mais tempo em casa fez-me também passar a geri-lo melhor. E fez de mim um fulano melhor. Um marido melhor também, espero. Apesar de nem sempre ter a certeza. E eu só percebi verdadeiramente isso quando uma criança de 2 anos mo explicou. Com silêncios.

[Publicado originalmente na edição de 2 de novembro de 2014]