Três palavras finais

Notícias Magazine

Numa tarde de dezembro de 1980, Romain Gary, de 66 anos, deitou-se no seu apartamento na Rue du Bac, no Quartier Latin, pegou no revólver e matou-se. Era um bom escritor, um herói e um mitómano, e como esta semana faria 100 anos é uma boa oca­sião para falar dele. A única bala disparada matou não só Gary mas também Émile Ajar, o escritor que assinava o romance La Vie De­vant Soi, uma obra-prima que ganhara, cinco anos antes, o prémio literário Goncourt. Já se suspeitava que Ajar era um pseudónimo de Gary, mas só depois do tiro tudo ficou claro. Entretanto, a con­fusão de nomes foi um dos maiores escândalos literários moder­nos – fútil questão quando comparada com a beleza comovedora do livro (que chegou tarde a Portugal, publicado só em 2011, com o título Uma Vida à Nossa Frente, na Sextante Editora).

No começo, Roman Kacew, judeu russo nascido em 1914. No romance autobiográfico La Promesse de l’Aube, de 1960, já escritor famoso e com nome francês, Romain Gary iria dizer que o seu pai era Ivan Mosjoukine, o mais célebre ator russo do tem­po do cinema mudo. Mas é com a mãe e sem qualquer pai, oficial ou putativo, que Roman chega a França em 1928, encontrando a pátria. Dirá mais tarde: «Nas minhas veias não tenho nenhum sangue francês, mas corre a França.» Não é só frase, é ação. Em 1940, Roman/Romain Kacew/Gary junta-se em Londres ao gene­ral De Gaulle, para libertar a pátria ocupada. Capitão de esquadri­lha, vai combater nos céus, ganha a Cruz de Guerra e a de Compagnon de la Libération… Roman, já definitivamente Romain (enfim, até ver), faz da sua vida um romance.

Torna-se diplomata, consagra-se escritor. Em 1956, o seu romance As Raízes do Céu, com precursor tema ecologista, sobre um defensor de elefantes em África, ganha o prémio Goncourt. Cônsul em Los Angeles, Romain Gary, 46 anos, homem de mulhe­res, conhece a mulher da sua vida, a atriz Jean Seberg, 22 anos. União tumultuosa, que vai acabar dez anos depois, em 1968, mas mantida intensa até à morte da atriz (julga-se que por suicídio), meses antes do tiro que o escritor se deu. Mas o bilhete deixado por Gary abria assim: «Nada a ver com Jean Seberg…» Aos mirones, porque contar tudo?

Jogo de enigmas que Romain Gary levou para a literatura. Em 1975, ele era um escritor consagrado, gaulliano, quase oficial. Ofereceu-se, então, um segundo fôlego, um estilo novo, outro nome e uma provocação enorme: escreve La Vie Devant Soi, assina Émile Ajar e concorre ao Goncourt e ganha, o que não podia porque já o ganhara uma vez. É uma manigância programada, sem que os edi­tores saibam e com um familiar distante, Paul Pavlovitch, a assumir ser Ajar. Um dia, perante o Questionário de Proust, à pergunta «o que gostaria de ser?», Gary respondeu: «Romain Gary, mas é im­possível.» Pois vai ser, aos 61 anos, mais do que isso: escreve a sua obra-prima, um sucesso imenso – e esconde-se de uma e de outro! Só depois do suicídio, Pavlovitch confessou a mistificação de Gary.

Fitas à parte, com Uma Vida à Nossa Frente ele partiu para o essencial. Em Belleville, bairro parisiense de emigrados, Momo, o narrador, tem 10 anos e «durante muito tempo não soube que era árabe porque ninguém me insultava». Ele conta-se e ao amor da sua vida, a velha Madame Rosa que «com todos os quilos que ela trazia consigo e só duas pernas, era uma verdadeira fonte de vida quotidiana», pudera, moravam num sexto andar sem eleva­dor. À Madame Rosa, antiga prostituta judia e sobrevivente de Auschwitz, as prostitutas do bairro deixam os seus filhos, como Momo, com promessa de renda que logo é esquecida como, aliás, os miúdos. Esse o mundo de Momo, que já não é ingénuo: «Deixei de ignorar aos 3, 4 anos e isso às vezes faz-me falta.» Ele quer sal­var Madame Rosa, de corpo decadente e que já não se lembra, do fim abjeto. Livro duro como uma reportagem sobre a Faixa de Gaza. Depois, muito mais, com Momo levando Madame Rosa pela mão, em cada página, até ao fim. As últimas três palavras do livro são «(…) é preciso amar.» Releio este livro há mais de trinta anos e, não me curando, dá-me esperança.

[Publicado originalmente na edição de 11 de maio de 2014]