«Somos mais do que sardinhas»

Uma das mais reputadas chefs em Montreal, no Canadá, a portuguesa Helena Loureiro sente-se embaixadora dos sabores lusitanos. Esteve nos Açores para o festival gastronómico 10 Fest e garante que a comida portuguesa está na moda.

Foram as cebolas que levaram Helena Loureiro a primeira vez à cozinha do restaurante da sua avó e da sua tia, em Serra de Santo António, no Ribatejo, tinha ela 11 anos. Descascar cebolas foi o seu primeiro trabalho e foi também o início de uma história que, 37 anos depois, a levou a ser considerada uma das mais reputadas chefs de Montreal, onde é proprietária de dois restaurantes de alta cozinha portuguesa, Portus Calle e Helena, de uma loja de produtos gourmet portugueses, o Cantinho de Lisboa, e está prestes a abrir uma cervejaria tipicamente portuguesa no próximo ano.

Com 48 anos, a chef portuguesa vê-se como uma embaixadora dos sabores portugueses, da história lusitana. «Tenho muito orgulho em ser portuguesa e em levar os produtos maravilhosos que nós temos aos canadianos, ao nível do vinho, do azeite, do nosso queijo de São Jorge. Aliás, recebo peixe duas vezes por semana dos Açores», explica, numa pausa na preparação do jantar que confecionou para a segunda noite do 10 Fest 2014, o festival de gastronomia de Ponta Delgada que trouxe Helena até São Miguel.

Desde o momento em que entrou na cozinha do restaurante da família – «que, para nossa tristeza, encerrou no ano passado por causa da crise», conta –, Helena Loureiro soube o que queria fazer da sua vida: logo mal entrou na escola secundária passou a ir aos fins de semana ajudar para o restaurante. Mas, aos 22 anos, quando acabou o curso, na Escola de Hotelaria de Lisboa, em vez de cumprir esse destino que lhe parecia marcado, resolveu perseguir outro sonho: o de ir trabalhar para o estrangeiro.

Foi para Nova Iorque, apenas para fazer umas férias, depois do curso. «Mas tinha esse sonho de ir para lá – acho que todos os jovens têm esse sonho. Eu vivia numa pequena aldeia no Ribatejo e sabia que, apesar de adorar a minha aldeia – e é para lá que eu vou quando preciso de recuperar forças –, não chegava para mim. Tinha muitos sonhos e precisava de fazer alguma coisa», conta.

O sonho de ir para a cidade que nunca dorme concretizou-se, mas a aura europeia de Montreal – e o facto de ter família a residir na cidade canadiana – levou-a a decidir fixar-se ali, onde tinha essa grande vantagem para alguém que queria dedicar-se à cozinha: uma enorme comunidade de portugueses. «O que eu encontrei em Montreal foi um pedaço da Europa na América do Norte. A cultura francesa que existe na cidade, com toda a night life, aproxima a cidade da Europa, mais do que em qualquer outro local na América do Norte. E, 26 anos mais tarde, continuo em Montreal.»

Foi na segunda maior cidade do Canadá que Helena deu os primeiros passos na cozinha profissional. Mãe de dois filhos, com 11 meses de diferença, começa por trabalhar no restaurante Vintage, mas acaba por tomar conta da cozinha de um infantário. Admite que foi «um pouco complicado». Mas, hoje, não tem dúvidas, foi o que a fez chegar mais longe: «Os sacrifícios da vida de emigrante, porque só quem sai do país é que sabe as barreiras que encontramos, seja da língua seja da cultura.»

Da cozinha do infantário, Helena Loureiro decidiu arriscar e abrir o seu próprio restaurante, que não podia deixar de ser português – uma aposta praticamente ganha tendo em conta a enorme comunidade na cidade. E, em 2003, abre o Portus Calle, na zona portuguesa de Montreal, mesmo em frente à Caixa de Economia dos Portugueses, ao lado do Parque Portugal e da Igreja de Santa Cruz. Foi um sucesso. Um sucesso tal que a levou, dez anos depois, a inaugurar outro espaço, mais personalizado – Helena – na parte velha da cidade. Embora este seja um espaço mais cosmopolita, em comum ambos têm os sabores portugueses.

O sucesso continuou, o que leva Helena a dizer que «a cozinha portuguesa está na moda no Canadá». A sua comida inspira-se nas tradições portuguesas, com o twist de luxo que a alta gastronomia lhes dá. Querem um exemplo? Um dos pratos que Helena inventou no festival gastronómico dos Açores – o 10 Fest, onde esteve esta semana como convidada. Elaborou um escabeche de cavala com mousse de alface-do-mar e meloa de Santa Maria, presunto e pérola de xarope de plátano. Tradicional nos produtos e inovador na forma…

«Já houve alturas em que a tendência era a comida italiana com as pizzas, os espanhóis com as tapas, os gregos com os grelhados. Agora chegou a nossa hora e temos de ser inteligentes e mostrar como fazemos, bem feito. Não podemos ser um país só de sardinha e frango assado. Somos muito mais do que isso e temos matéria-prima de qualidade. Costumo dizer que nós não somos mágicos, somos chefs e se a matéria-prima é boa, 25% do nosso trabalho está feito», defende a arreigada chef.

A inovação é, precisamente, um dos aspetos que Helena Loureiro mais tem apreciado na recente cozinha portuguesa. Assistiu à grande mudança «nos últimos cinco, dez anos», com jovens cozinheiros com enorme potencial. «E estou muito surpreendida com a quantidade de mulheres na cozinha. A maioria ainda são homens mas temos várias raparigas na cozinha, sem medo e com muito caráter para ser chef profissional», conta.

O QUE É O 10 FEST

O festival 10 Fest surgiu em 2012, altura em que a Escola de Formação Turística e Hoteleira (EFTH) de Ponta Delgada celebrou o seu 10.º ano de atividade. A edição inaugural pretendia não só celebrar isso mas também possibilitar a ida a São Miguel de vários chefs de renome, possibilitando dez jantares diferentes sempre com os produtos açorianos em foco, bem como permitir que os alunos da EFTH tivessem contacto com outras cozinhas. O sucesso do festival fez que a escola repetisse a experiência no ano seguinte e novamente em 2014. Pelo 10 Fest já passaram vários chefs detentores de estrelas Michelin, como Aimé Barroyer, David Fauré e Vítor Matos e nomes muito conhecidos da gastronomia portuguesa, como Ljubomir Stanisic, Paulo Morais e Ana Lins, entre outros.

Ementa DA CHEF NO 10 FEST

A CHEGADA. Azeitonas temperadas com manteiga e chouriço.
ENTRADA FRIA. Mousse de alface-do-mar com meloa de Santa Maria, presunto, pérola de xarope de plátano.
MAR. Caldo de ervilhas com linguiça e hortelã, molho vilão, amêijoas e pimenta da terra.
ENTRADA QUENTE. Lagostim com goraz e molho bisque. Puré de inhame com salada de coentros e poejo.
TERRA. Novilho estufado a baixa temperatura, creme de morcela com espuma de batata com ervas aromáticas e ananás fumado.
QUEIJOS. Queijo da ilha curado, doce de amoras com frutos secos.
SOBREMESA. Suspiros de frutos vermelhos e chocolate