
Aguentar o picante mais picante é um jogo irresistível, mas que todos acabam por perder. Arruína o ambiente de um jantar romântico, pelo que só quem está habituado deve atrever-se. Curiosamente, quando mais se experimenta mais se aguenta.
Dia dos Namorados, os dois à mesa num restaurante indiano, tête-à-tête, mão na mão, na mesa ao lado servem um prato com malaguetas a um casalinho claramente habituado a estas andanças, deitando a mão a uma cada um. Sem perder o contacto visual, totalmente in love, levam-nas à boca dando uma valente trincadela. É então que o representante masculino do primeiro par decide pedir também malaguetas, com a namorada a dizer-lhe cuidado que isso deve ser fortíssimo. Ele, com um sorriso já de meia vitória, superconfiante, especialmente depois de ver a naturalidade com que os do lado cumpriram o programa, faz o mesmo.
Ainda tem tempo para sorrir mas logo a seguir instala-se-lhe o inferno dentro. A língua parece sair pela cabeça e tocar no teto e depois no chão, exatamente como nos desenhos animados que na infância o faziam soltar gargalhadas. Atira-se ao copo de água e é pior a emenda que o soneto. Então instala-se o desespero, até que os vizinhos improvisados vão em seu auxílio e dão-lhe um pedaço de naan com muita manteiga.
Tudo melhora, mas o clima está estragado para sempre, com a sua namorada a rir a bandeiras despregadas, pela sequência ciclópica de acontecimentos a que assistiu.
O que é interessante é que se repetisse a graça no dia seguinte claro que ia acontecer de novo, mas com menos intensidade.
O picante tem um aspeto interessante de habituação que, vencida uma primeira barreira, nos ajuda a intensificar sabores num prato, dispensando condimentos como por exemplo o sal. A impressão calórica permitiu e permite disfarçar a fome, ou satisfazer-se com menos, instrumental outrora, nos tempos de míngua que marcaram sobretudo as nossas terras mais a sul. Acaba por marcar o próprio sabor das coisas e a intensidade de tudo e assim aumentar também o prazer de comer certas maravilhas.
Há todo um mundo à espera de quem se decide pelo mundo das malaguetas e pimentos picantes. Em primeiro lugar, é preciso humildade e paciência, para não saltar etapas, e logo a seguir é fundamental fazer os seus próprios molhos picantes.
Há muitas receitas disponíveis e o importante é controlar os ingredientes que utiliza. O restaurante lisboeta Comida de Santo, especializado em cozinha baiana, começou agora a comercializar o seu picante em frasquinhos de 50 centímetros cúbicos (7,50 euros). Sobre a dureza e punição de um picante na boca, pode ter a certeza de que, mesmo quando doer muito, há outros centenas ou milhares de vezes mais fortes.
Aliás, há uma escala para medir isso mesmo. Foi inventada por um boticário americano, Wilbur Scoville no início do século xx e fixa valores numéricos para o grau de picante. Basicamente trata-se de um teste organolético, que é definir a quantidade de água com açúcar que é precisa para anular o efeito de determinado picante. Uma malagueta vermelha relativamente forte tem quinhentas unidades e já dá muito trabalho a quem não está habituado. As de Moçambique são mais fortes, podendo rondar as duas mil unidades. Neste momento, o máximo que se conhece já está acima de dois milhões de unidades, o que só é possível com manipulação e mistura de sementes para concentrar o poder picante. Cada pessoa tem a sua medida ideal e deve cautelosamente treinar em patamares sucessivos até a encontrar. Vamos começar?