Sempre pude dizer aquilo que me apetecia, dentro dos limites do bom senso e da boa educação. À minha volta, quer em família quer com amigos, vi e participei em discussões sobre tudo e sobre nada. O exercício da minha visão crítica do mundo e a construção da minha voz cívica e mesmo humana foram sendo construídos assim, falando, debatendo e, até, às vezes, discutindo ideias e ideais. Durante esses encontros, nunca me passou pela cabeça que pudesse vir a ter problemas por discutir abertamente qualquer que fosse o tema.
Não consigo, pois, conceber uma sociedade onde não se possa falar de tudo o que se queira e defenderei sempre essa liberdade primordial que é a liberdade de acção, de discurso e de pensamento. No fundo, a liberdade de existirmos e sermos quem somos. Foi assim que as escolas por onde passei me ensinaram. À medida que fui crescendo, nunca tive dúvidas de que o meu destino não se regia pela sina dos meus pais, ou seja, de que, independentemente daquilo que os meus pais haviam alcançado na vida, o meu destino profissional e social dependia apenas de mim. A ascensão ou descensão social estavam presas somente aos meus méritos intelectuais, profissionais, humanos e não eram predeterminadas por aquilo que os meus pais ou família haviam alcançado antes de mim. Era nisto que acreditava sem hesitações e foi assim que encarei os meus estudos, as minhas funções profissionais, a forma como me comporto em sociedade e perante os outros.
Faço parte da geração que não conheceu o país quando nada disto era possível. Quando não se podia falar de certas coisas, porque se podia ir preso, quando, por se nascer em berço pobre, se tinha o destino selado e a pobreza perpetuada, porque o ensino estava desenhado para dele usufruírem apenas aqueles cujas famílias podiam pagá-lo. Quando não havia Serviço Nacional de Saúde ou pensões de reforma. O conceito do acesso universal à saúde, habitação e educação era perigoso e proibido. Um mundo tão diferente que parece surreal a quem só viveu a partir de 1978.
Talvez por isso, por ser tudo já tão diferente quando nasci, não se achou importante vincar bem as diferenças entre 24 de Abril de 1974 e 25 de Abril de 1974. Nos manuais de História, extensos, exaustivos na análise histórica mundial, a Revolução dos Cravos ficava sempre guardada para o final, como todas as coisas boas. Mas, com Junho a aproximar-se e os exames prestes a começar, a matéria mais importante do século xx português, aquela que ajudava a explicar o país que éramos em vista do país que fôramos, ficava sempre por dar. Porventura, fruto de algum excessivo optimismo, de um achar-se que nunca se voltaria atrás, as gerações que se foram sucedendo e mesmo até uma parte das gerações anteriores foram perdendo contacto com esse momento histórico tão importante para a vida que temos, em termos abstractos, mas, acima de tudo, em termos práticos.
Aquelas coisas comezinhas, do dia-a-dia, em que não pensamos duas vezes e que tomamos como garantidas. Acender um isqueiro na rua é um acto irreflectido e livre apenas há 40 anos. Alguém garantiu que assim fosse. É importante que saibamos isso. É importante que saibamos tudo acerca disso. Para que não haja dúvidas. Nem indiferença. Acima de tudo, para que não haja a dúvida sobre se estaremos melhor. Estamos. Quanto mais não seja porque o 25 de Abril de 1974 foi o dia que tornou possível estarmos aqui a discuti-lo. Que saibamos preservar a liberdade que esse dia nos trouxe e que lutemos para que os agentes que a queiram liquidar sejam sempre derrotados.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[Publicado originalmente na edição de 27 de abril de 2014]