«Posso mudar a vida das pessoas»

Diz que ser feminista não é nada de extravagante, defende a adoção de crianças por casais do mesmo sexo, gosta do estilo do Papa Francisco, indigna-se com a pobreza e com a injustiça. Maria Clara Sottomayor, 48 anos, é a juíza mais nova na história do Supremo Tribunal de Justiça, uma instituição com sessenta juízes, dos quais só cinco são mulheres. A conselheira tem conta no Facebook e diz que os magistrados devem abrir-se ao mundo e às pessoas.

É mulher, é jovem e chegou ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) como jurista de mérito. Foi bem recebida pelos seus colegas, juízes de carreira?
_ Sim. Foram cordiais e simpáticos comigo.

E quando começou a trabalhar, a analisar processos e a tomar decisões?
_ Também houve espírito de colaboração. Os colegas ajudaram-me e eu também os ajudei a eles.

Nomeada aos 46 anos, é a juíza mais nova na história do STJ. Pensa que trouxe algum rejuvenescimento a uma casa onde a média de ida­des dos conselheiros está acima dos 60 anos?
_ Não sei, os meus colegas é que poderão dizer se houve alguma diferença. Mas creio que sim.

Por altura da sua tomada de posse, em setembro de 2012, li que não ter experiência para julgar dificulta a tomada de decisão. É verdade?
_ Eu não penso assim. O STJ só conhece de questões de direito e como eu fui professora universitária e investigadora, discutir questões de direito e pensar sobre elas foi o que fiz durante 23 anos.

Chegou ao STJ por concurso público e ao abrigo de uma lei que determina que uma em cada cinco vagas será preenchida obrigatoriamente por um/a jurista de mérito. Percebe que os juízes de carreira não gostem desta lei?
_ Não sei se podemos generalizar. Sei que a Associação Sindical dos Juízes e alguns magistrados questionaram publicamente a figura do jurista de mérito, invocando a falta de experiência pa­ra julgar e a pouca idade. Mas não considero estes argumentos relevantes, pois a intenção do legislador e da Constituição com a criação da figura foi provocar uma inovação na aplicação do direito e uma complementaridade entre as experiências espe­cíficas das várias profissões jurídicas. E sinto que tenho contribuído para isso. A razão da crítica à entrada de juristas de mé­rito é outra, e essa eu compreendo: a magistratura é uma car­reira onde se trabalha muito e é normal que os juízes tenham a aspiração de chegar ao topo. São muitos os juízes que se candi­datam e como há poucos lugares no STJ é inevitável que muitos juízes competentes acabem por ficar de fora. Mas o trabalho de um juiz ou juíza tem a mesma dignidade e valor qualquer que seja a instância.

Podemos dizer que o legislador não quis que o STJ fosse um tribunal de carreira?
_ Sim, o STJ não é um tribunal de carreira. É assim que está con­cebido na lei e na Constituição. No STJ devem estar representa­das as várias profissões, maioritariamente magistrados judiciais, mas também magistrados do Ministério Público (MP) e juristas de reconhecido mérito e idoneidade cívica, da academia ou da ad­vocacia. Isto em benefício de uma melhor justiça para os cida­dãos. Eu acredito neste modelo. Mas todos somos juízes. Há uma igualdade essencial entre todos os juízes conselheiros e conse­lheiras porque temos a nosso cargo a mesma função: administrar a justiça em nome do povo.

A possibilidade de juristas de mérito se candidatarem a juízes do STJ é antiga mas, até agora, só houve três: o seu caso, o da atual conselheira Maria dos Prazeres Beleza e o do Dr. Menéres Pimentel, recentemente falecido. Porquê tão poucos?
_ Tanto quanto sei, havia a ideia de que a magistratura era muito fechada e não via com bons olhos a entrada de pessoas vindas de outras profissões. Nos debates parlamentares, por altura da revi­são da  Constituição, afirma-se ser necessário, para vencer a resis­tência à entrada de juristas de mérito, consagrar a figura na Cons­tituição, o que aconteceu na revisão de 1982. Mas só em 2008 é que foi criada vaga específica para juristas de mérito: uma em ca­da cinco. Quanto às restantes, três são para os juízes ou juízas da Relação e uma para o MP.

A outra questão é que dos cerca de 60 juízes do STJ, só cinco são mulhe­res. A desigualdade de género que existe no país também se reflete aqui?
_ De facto só há cinco juízas. Durante a ditadura, a lei proibia as mulheres de exercerem funções de autoridade e de ingres­sarem na magistratura e na diplomacia alegadamente porque eram muito emotivas. Mas já passaram quarenta anos e, apesar da igualdade no acesso se refletir nas outras instâncias, ainda não se faz sentir no Supremo. Há quem diga que não passou tempo su­ficiente para garantir a plena igualdade. A desigualdade projeta–se durante muitos anos, pois os homens estavam mais adianta­dos na carreira, mas o facto é que as mulheres têm sempre mais dificuldade em progredir porque são as principais cuidadoras dos filhos e da família.

Neste ano e meio no STJ, já se sentiu discriminada por ser mulher?
_ As discriminações mais óbvias têm que ver com a minha idade e com o facto de não ser juíza de carreira, e essas foram assumidas pu­blicamente. Quanto à discriminação de género essa é mais subtil e in­consciente, mas sabe-se que existe em todas as instituições.

O que é que já aprendeu com os seus colegas? E o que é que eles po­dem aprender consigo?
_ Aprendi muito de direito processual, técnicas de argumenta­ção jurídica e de fundamentação das decisões. E de direito, em geral. No STJ, vive-se um ambiente de muito trabalho. Sobre o que os meus colegas podem aprender comigo, serão eles as pes­soas indicadas para responder. Mas creio que a minha capacida­de de estudo e de investigação, que toda a vida treinei na Univer­sidade, é útil e apreciada. Também, por ser jovem e mulher, tra­go uma experiência de vida e sensibilidade diferentes, que podem ser úteis para o conhecimento da realidade social, fator sempre necessário quando se decide.

No passado defendia-se o isolamento dos juízes como uma espécie de garante de independência, mas o mundo mudou. Para os juízes também?
_ Não me revejo messe modelo de juiz nem acho que seja forma de garantir a independência. Acho que um juiz ou juíza tem de es­tar no mundo, relacionar-se com os outros, perceber as pessoas e ter intervenção cívica e social. A independência vem da retidão da consciência.

Fala com algum dos seus colegas do STJ no Facebook?
_
Que eu saiba, além de mim, só dois conselheiros têm conta aberta no Facebook. São dois colegas de outras secções. Mas há muitos magistrados e magistradas de outras instâncias que estão na minha página.

E já trocaram opiniões sobre os assuntos comentados nas redes sociais?
_Já puseram «gosto» em textos que publiquei e deixaram co­mentários.

«Acredito que quando as mulheres ocuparem o espaço público tanto quanto os homens o mundo será melhor», escreveu ontem (dia an­tes da entrevista) no Facebook. Continua a sentir-se livre para dizer o que pensa?
_ Como qualquer cidadão ou cidadã, sou titular do direito fundamen­tal que é a liberdade de expressão e exerço-o em favor dos direitos hu­manos, das mulheres, das crianças e, em geral, dos mais frágeis.

Porque é que decidiu concorrer ao STJ?
_ Fui professora universitária durante 23 anos e tive oportunida­de de me dedicar ao ensino e à investigação. Mas nos últimos tem­pos e em virtude das mudanças que ocorreram nas universida­des, os professores passaram a ficar sobrecarregados com tarefas burocráticas e deixaram de ter tempo para a investigação cientí­fica e para a reflexão, para escrever um artigo ou um livro. Neste contexto, não me sentia realizada. Deixei de ter o mesmo interes­se pela academia. A atividade judicial é mais criativa e estimulan­te. E, sobretudo, permite mudar a vida das pessoas, enquanto na faculdade só podia defender o que é justo em teoria.

E aqui, sente-se realizada?
_ Muito. Analisar um caso, decidir e fundamentar é sempre um de­safio intelectual fascinante e uma oportunidade para fazer justiça.

Quando entrou no STJ, foi colocada na 4.ª secção social mas alguns meses mais tarde mudou. Porquê?
_ Porque o direito civil está mais ligado à área que foi a da minha investigação da Universidade. Embora o direito laboral seja uma área muito interessante. Basta pensar que, ao longo da história, os direitos dos trabalhadores foram conquistados com muitas lutas e revoluções, que continuam a ser necessárias hoje.

Estive a pesquisar sumários de acórdãos da secção social e encontrei  seis em que votou vencida. Pareceu-me que esteve sempre do lado mais fraco, neste caso dos trabalhadores.
_ Na maioria sim, mas houve um caso em que o voto foi a favor da tese da empregadora. Não posso comentar processos, mas uma das minhas declarações de voto de vencida está publicada e pa­ra lá remeto.

E na 1.ª secção cível, está a gostar?
_ Muito. O direito civil tem muito que ver com direitos das pessoas, a boa fé e com a proteção dos mais fracos.

A tomada de decisão no STJ é muito diferente da decisão tomada na primeira instância. O que é preciso para decidir bem?
_ É fundamental a distinção entre matéria de facto e matéria de direito. A primeira instância é que fixa os factos provados e os não provados. O Tribunal da Relação tem poderes para alterar a maté­ria de facto, mas o STJ, em regra, não. Só conhece questões de direi­to. Há uma grande diferença na tomada de decisão nos tribunais de primeira instância e no Supremo. Para decidir bem, é preciso ana­lisar o processo com muita atenção e estudar as questões de direi­to. Cada processo é decidido por três juízes, mas é o juiz relator, ou a juíza relatora, que redige o projeto de acórdão, elabora a funda­mentação e propõe uma solução para o caso. Depois segue-se a dis­cussão entre os membros do coletivo e dessa discussão podem sur­gir mudanças. Há coletivos que discutem muito a decisão, outros fazem-no menos. Eu gosto do debate e de esgrimir argumentos.

E quando os juízes não estão de acordo?
_ Conversamos, debatemos os pontos em causa, ponderamos os vários argumentos e tentamos chegar a um consenso. Por vezes há votos de vencido, o que significa que as questões são discuti­das e que é normal haver divergências nalgumas questões. É as­sim em democracia.

Foi a relatora de um acórdão que teve grande repercussão mediática já este ano e que obrigou uma seguradora a pagar o crédito à habitação de um homem de 63 anos, que teve um cancro e ficou com invalidez to­tal e permanente. A seguradora dizia que esse risco só estava coberto até aos 60 anos. Foi um processo marcante?
_ Sim, foi uma questão que me deu muito prazer estudar e deci­dir. Esse acórdão foi aprovado por unanimidade. O STJ entendeu que foi violado o dever de informação do segurado.

No discurso da tomada de posse disse que sempre se preocupou em perceber que interesses estão a ser protegidos ou lesados por detrás da aparente neutralidade das decisões judiciais. A justiça não é cega?
_ Eu privilegio a justiça substancial aos formalismos. É a minha maneira de ser juíza. Tanto nas universidades como na magis­tratura há, por vezes, a tendência de fazer o debate jurídico com argumentos exclusivamente técnicos. Mas a verdade é que, sob uma capa de aparente neutralidade, se escondem argumentos morais e sociais que devem ser trazidos ao debate. Para obter uma maior democracia na administração da justiça, defendo que esses argumentos devem ser usados de forma transparente, até porque as decisões judiciais também têm uma finalidade pedagógica.

A administração da justiça deve ter em conta a desigualdade social e económica e a defesa dos mais vulneráveis?
_ Seguramente que sim. O princípio da proteção dos mais fracos é um princípio do direito civil que tem tanta legitimidade e tanto peso como o princípio da autonomia privada e da liberdade con­tratual, entre outros.

A jurisprudência reflete esse princípio?
_ Nuns casos sim, noutros não. Mas há uma preocupação cres­cente na sua aplicação.

O Estado Português é frequentemente condenado no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) por demora nas decisões e por falta de respeito pela liberdade de imprensa. O que lhe parece?
_ O principal problema da nossa justiça é a demora e a lentidão. A maioria das decisões são corretas e sensatas mas, quando são tomadas muitos anos depois, corre-se o risco de não resolverem o problema da parte a favor de quem se decidiu. No que diz respei­to à comunicação social, acho que a jurisprudência portuguesa tem evoluído muito no sentido de dar um espaço mais amplo à liberdade de expressão. Nesta área, as condenações do TEDH têm tido efeitos práticos.

Sempre teve grande intervenção cívica e muitos portugueses re­cordar-se-ão de si se falarmos no caso Esmeralda – a menina que foi entregue pela mãe biológica a um sargento do exército e à sua mulher quando tinha 3 meses e que, aos 6 anos, foi entregue pelo Tribunal Judicial de Torres Novas ao pai biológico. Costuma pensar na Esmeralda?
_ Penso nela e penso em todas as crianças que têm a sua vida a ser decidida pelos tribunais. É um tema que sempre me preocupou e que não deixou de me preocupar.

Foi uma das subscritoras do habeas corpus que pedia a libertação do sargento Luís Gomes, que foi condenado e preso por se recusar a en­tregar Esmeralda ao pai biológico. Se fosse hoje e se não fosse juíza, voltava a fazer tudo o que fez?
_ Não posso comentar casos. Mas sobre a questão do biologismo/relação afetiva, continuo a pensar que as relações afetivas devem prevalecer sobre as relações estritamente biológicas ou genéti­cas, independentemente das vicissitudes pelas quais os proces­sos tenham passado, porque não é justo que seja a criança a pagar o preço dos erros dos adultos e das instituições.

Foi aos 14 anos que decidiu que queria estudar Direito e, na tomada de posse, disse que foi esta a sua resposta ao absurdo do mundo. O que é que a preocupava nessa altura?
_ Fui sempre muito sensível à injustiça. E estar no mundo, mes­mo quando se tem pouca idade, implica observar e refletir. Tudo o que vi e ouvi, na terra onde passei a infância e nas escolas que fre­quentei, ficou gravado no meu cérebro. Nunca ficava indiferente e cultivei o hábito de me posicionar a favor de quem está a ser le­sado. Tive sempre este impulso.

Nas aulas, tinha o hábito de recorrer aos acórdãos dos tribunais da Re­lação e do STJ para ensinar Direito. Porque é que o fazia?
_ Para estudar Direito é necessário conhecer o direito legislado mas também o direito aplicado.

O que diziam os seus alunos dos acórdãos?
_ Em geral, achavam que os acórdãos são textos difíceis de ler, mas diziam que aprendiam muito com eles e que eram uma boa forma de estudar as matérias. Mas nos acórdãos que envolviam crimes violentos contra crianças, sobretudo abuso sexual, aquilo que veri­ficava era que se exprimiam negativamente em relação às atenua­ções de penas dos condenados.

Acha que os tribunais continuam a dar pouca importância à opinião das crianças?
_ Hoje as crianças são mais ouvidas do que há uns anos. Creio mesmo que a partir dos 11, 12 anos geralmente são ouvidas.

Há quem diga que pode ser adverso ouvir as crianças muito pequenas…
_ Mais adverso é ter uma criança maltratada e não se conseguir fazer prova em tribunal. As crianças têm de ser ouvidas. É indis­pensável que haja formação especializada em entrevistas a crian­ças. As perguntas devem ser abertas e deixar-se a criança falar espontaneamente, em relato livre e não dirigido. Por exemplo, preo­cupam-me muito os arquivamentos por falta de prova nos casos de abuso sexual de crianças pequenas, em que não há ves­tígios biológicos. O sistema não está preparado para que se pos­sa fazer a prova com declarações de crianças pequeninas. Um estudo feito por uma investigadora da Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto demonstra que mais de 60 por cento destes casos são logo arquivados pelo MP, o que não significa, na maior parte das situações, que o abuso não tenha sucedido, mas apenas que não reuniu prova suficiente.

Tem chamado a atenção para alguns aspetos do novo regime jurídico do divórcio. O que está em causa?
_ O Código Civil passou a prever o exercício conjunto das res­ponsabilidades parentais, em relação às questões importan­tes da vida da criança, sem acautelar as situações de violência doméstica. Mas a Convenção de Istambul impõe aos Estados que as necessidades de segurança das vítimas sejam garan­tidas nas questões de guarda e de visitas depois do divórcio. A lei civil tem de ser alterada, pois as medidas de coação nos processos penais são insuficientes. Muitas mulheres perdem a casa de morada de família e têm de ser desenraizadas do seu ambiente em centros de abrigo.

E concorda que os tribunais prejudicam os pais, perante as mães, na atribuição da guarda dos filhos?
_ Não. A maioria dos casos de regulação das responsabilidades paren­tais é decidida por acordo, sendo os homens os primeiros a não quere­rem ficar com a guarda dos filhos. Mas quando querem e a pedem em tribunal, num processo litigioso, não há indício nenhum de que este­jam a ser prejudicados nas decisões. Pelo contrário, as mulheres, so­bretudo as vítimas de violência doméstica, é que correm o risco de per­der a guarda por não cumprirem o regime de visitas estipulado pelo tribunal, situações sempre muito traumáticas para as crianças.

E a síndrome de alienação parental (SAP), porque é que diz que é um mito?
_ Não está reconhecido como doença mental pelas entidades interna­cionais competentes. A academia norte-americana afirma que a SAP não tem validade científica  e que os estudos que a defendem foram fei­tos sem amostras populacionais e sem peer review. É perigoso que os tribunais sigam conceitos da psicologia e da psiquiatria, aos quais não é reconhecida validade científica.

Defende a coadoção e a adoção de crianças por casais do mesmo sexo?
_ Sim. Compreendo que as pessoas tenham reservas e receiem novas formas de família. Afinal todos gostamos de ver confirma­das as nossas crenças. Mas ser pai ou ser mãe é algo muito profun­do. Tem que ver com valores morais, afetivos e emocionais que tanto têm os casais de sexo diferente como os do mesmo sexo. E a ciência confirma que as crianças que vivem com pais do mesmo sexo estão tão bem como as outras.

Foi juíza social no Tribunal de Família e Menores do Porto durante vá­rios anos. Do que é que se lembra desse período?
_ Lembro-me de muitos casos, mas o que mais me marcou foi o de uma menina de 12 anos que vivia numa instituição e que nos veio pedir para voltar para casa da mãe. O juiz do processo disse-lhe que não podia, porque a mãe estava com uma doen­ça contagiosa, tuberculose, e ela disse que sabia, mas que pen­sava que de tanto pedir para ir para casa da mãe, um dia iria mesmo. Por isso pedia sempre. Contou-nos também que ti­nha sido abusada pelo avô, com 4 anos, e que a avó e a mãe a de­fenderam. Saíram todas de casa, para viverem em muito más condições. Não é verdade que as mulheres sejam coniventes com os abusos sexuais das crianças. Pelo menos, estas não fo­ram, e acho que a mentalidade está a mudar em relação a este crime. Denuncia-se mais.

Nasceu em Braga, cresceu em Ílhavo e no Porto. Que memórias guar­da da infância?
_ A minha mãe e os meus avós maternos são de Braga, e os meus pais viveram lá algum tempo. Quando eu tinha 6 meses, o meu pai foi tra­balhar para a Fábrica da Vista Alegre, em Ílhavo, Aveiro. Foi aí que vivi até aos 14 anos e sinto que a Vista Alegre é a minha terra.

Na sua tese de doutoramento, a dedicatória é para os seus irmãos: «Às minhas irmãs e ao meu irmão, com quem aprendi o valor da fraterni­dade.» Davam-se bem?
_ Sim, muito bem. Sou a terceira filha, de quatro irmãos, temos um ou dois anos de diferença uns dos outros. As crianças apren­dem muito com outras crianças, com os seus irmãos e irmãs e com os seus pares na escola. São um grupo, uma tribo. E eu tenho bem viva essa memória. Revejo hoje essa relação nos meus sete sobri­nhos e sobrinhas.

Em pequena, já era determinada e reivindicativa?
_ Era um misto, como sou ainda hoje. Sou lutadora e reivindica­tiva, mas não fui sempre assim. No meu cérebro, mesmo em silên­cio, fui sempre lutadora, porque nunca deixei que ninguém tives­se pretensões a mandar «na raiz do meu pensamento».

Na faculdade esteve ligada a movimentos juvenis da Igreja. Porque é que se afastou?
_ Integrei movimentos ligados aos jesuítas e gostei muito. Co­nheci pessoas muito boas, de quem continuo a ser muito amiga, mas acabei por me afastar. A Igreja tem resposta para tudo, mas não para as perguntas que eu fazia.

Crê em Deus?
_ Não é uma pergunta que faça a mim própria. O que pergun­to constantemente é: porque há tanto sofrimento no mundo, tanta violência, pobreza, tráfico de pessoas, trabalho infan­til, exploração sexual de crianças? Vivo num mundo onde mi­lhões de pessoas morrem de fome e outras tantas são explora­das e maltratadas. Isto é o que está no meu coração e nas mi­nhas preocupações.

O que acha do Papa Francisco?
_ Gosto do estilo dele. E gostei de algumas atitudes pelo seu valor simbólico. O Papa terá telefonado a uma mulher vítima de viola­ção para a confortar, tem tido um discurso simpático com os ho­mossexuais, tem revelado vontade de lutar contra o abuso se­xual de crianças por padres da Igreja católica. Vamos ver se é conse­quente. Sei que não mudou nada na posição oficial da Igreja, mas revela uma solidariedade que eu aprecio.

Dizem que é feminista…
_ Ser feminista não é nada de extravagante, como erradamente se pensa, por preconceito. É ser defensora da igualdade de género e da igualdade de oportunidades para todas as pessoas, em prol de uma sociedade melhor. O movimento feminista tem lutado em todo o mundo pelas causas mais nobres que conheço: o direito de voto das mulheres, o acesso à educação, a igualdade de direitos e deveres no casamento, a autonomia da mulher casada e a independência econó­mica das mulheres, a proteção das vítimas de violência e das crian­ças, só para citar alguns. Em Portugal, a igualdade só foi consagra­da na Constituição de 1976 e, passados quase quarenta anos, verifica­mos que a desigualdade permanece nas práticas sociais, nas crenças e nas representações. Uma coisa é a igualdade formal, que temos; ou­tra é a igualdade de facto, que não existe. Os salários das mulheres são mais baixos, os homens é que estão maioritariamente em car­gos de responsabilidade e na política, as mulheres são as principais vítimas de violência e são silenciadas. A desigualdade não é um pro­blema que se resolva só com as leis, mas sim no plano social.

É uma mulher de causas?
_ Os meus amigos e as pessoas que me conhecem dizem que sim. Luto por aquilo que acho justo e em que acredito. Vê-se no Face­book, só tenho lá causas.

Emociona-se facilmente. Ao decidir um caso também, ou é só razão?
_ Na aplicação do Direito, acho importante que os juízes conhe­çam a realidade a que se dirigem e que compreendam a posição de cada uma das partes. Num processo estão sempre pessoas e não podemos esquecer isso. Por exemplo, conhecer a realidade de uma vítima de um acidente de viação ou de trabalho passa por perceber o sofrimento do outro. Isto é uma emoção. A razão está sempre em diálogo com a emoção pois, como demonstrou o neu­rocientista António Damásio, a razão estrita e isolada é uma for­ma de loucura e é extremamente perigosa.

Alguns magistrados têm algum receio em lidar com jornalistas. Com­preende esse temor?
_ Creio que há uma certa incompreensão de parte a parte. Mas os juízes têm a vida das pessoas na mão e têm de saber lidar e acei­tar o escrutínio da imprensa. É fundamental em democracia. Mas também a imprensa deve ter jornalistas com preparação jurídica para explicar as decisões judiciais mais complexas, sem deturpações.

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Dos sessenta juízes do STJ, só cinco são mulheres. E destes, só duas conselheiras não provêm das magis­traturas. Maria Clara Sottomayor, 48 anos, a juíza mais nova na história daquele tribunal, é uma delas. E é a única que entrou ao abrigo de uma lei de 2008, que determina que uma em cada cinco vagas tem obriga­toriamente de ser preenchida por um jurista de mérito. Antes de chegar ao mais alto tribunal da nação – começou na 4.ª secção social, em setembro de 2012, e transitou para a 1.ª secção cível em maio de 2013 –, Clara Sottomayor já era conhecida dos portugueses pelas causas que há muito abraçou, principalmente a defesa dos direitos das crianças e das mulheres. Também foi nessas áreas do Direito que mais se destacou como professora universitária (deu aulas na Universidade Católica Portuguesa, na Escola de Direito do Porto, durante 23 anos) e jurista (é autora de livros, artigos e pareceres amplamente citados na jurisprudência e nas universidades). Até hoje, deixou marcas por todos os sítios onde passou e a história ameaça repetir-se. A conselheira vive no Porto e todas as semanas se desloca a Lisboa para as sessões da sua secção.