Porque somos cada vez menos?

O Instituto Nacional de Estatística revelou recentemente que o país perdeu 60 mil pessoas em 2013. Com o aumento da esperança de vida, a diminuição dos nascimentos diminuem e a emigração a levar do país grande parte dos seus ativos, Portugal atravessa uma crise demográfica. O que fazer?As respostas de Jorge Malheiros, geógrafo, professor universitário do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa e vice-presidente da Associação Portuguesa de Demografia.

Portugal está a atravessar uma crise demográfica. Isto quer dizer exatamente o quê?
Que estamos a passar por um processo de regressão populacional, que tende a acelerar, e por um processo de envelhecimento, que tem vindo a intensificar–se bastante e que resulta da conjugação de um saldo migratório negativo, nos últimos três ou quatro anos, e de um saldo natural também negativo em virtude de uma diminuição da fecundidade e da natalidade que, embora já seja antiga, se acentuou recentemente. O grande crescimento do fluxo emigratório ou os desequilíbrios demográficos internos, com a concentração da população no litoral e nas duas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, são também expressões dessa crise.

Os últimos três a quatro anos de que fala foram marcados pela crise económica e pelas políticas de austeridade. Pode dizer-se que isso agravou a crise demográfica?
Embora a curva da natalidade venha a decrescer em termos estruturais há muito tempo, cerca de 40 anos – tivemos o último crescimento visível logo a seguir ao 25 de Abril e depois um outro, menos significativo, nos anos 1990 –, nestes últimos três a quatro anos, de facto, esta diminuição acentuou-se bastante. Andávamos próximos dos cem mil nascimentos anuais e passámos para os oitenta a noventa mil. Mais do que a crise económica, foi o tipo de resposta adotado que ajudou a acentuar alguns destes processos. Uma resposta muito tardia e deficitária nas estratégias de crescimento e/ou de criação de emprego contribui claramente para que a emigração aumente e o número de nascimentos diminua.

O convite à emigração, feito pelo primeiro–ministro no início do seu mandato, parece ter sido aceite.
Sim, e isso leva-nos a pensar que país queremos. Se Portugal continuar a perder a população mais jovem e a envelhecer de forma substancial, daqui a trinta ou quarenta anos estará, provavelmente, nos sete/oito milhões de habitantes. Ora, a regressão demográfica significa normalmente declínio e perda de dinâmica económica. Em países com níveis de desenvolvimento médio ou elevado, à componente económica está associada, em regra, estabilidade demográfica e não regressão, muito menos forte. Estamos a falar de um país com dez milhões e meio que em trinta ou quarenta anos poderá ter, se nada for feito, menos dois ou três milhões de pessoas. Imagine um país com um conjunto de população idosa nacional e estrangeira – porque pode dar-se o caso de a seguir aos golden visa para quem investe em imobiliário caro, termos o golden visa II para idosos que venham passar a sua reforma a Portugal – assistida pelos poucos mais jovens que restam. Seria um país francamente triste. E estranho.

Diz que nenhum país consegue ter crescimento económico com regressão demográfica. É uma pescadinha de rabo na boca?
Repare, o envelhecimento em si não é mau, a velocidade a que está a acontecer é que é problemática. O desequilíbrio entre jovens e idosos, e sobretudo entre ativos e não ativos idosos, é que pode pôr em causa muitos aspetos da sustentabilidade social. Uma sociedade precisa da experiência dos mais velhos, mas também de população jovem para arriscar e inovar. A questão central é a do equilíbrio entre gerações, fundamental para a sustentabilidade social. Se acreditamos num modelo de Estado social, temos de ter uma população ativa que seja suficiente para cobrir as despesas relacionadas com os não ativos. Um desequilíbrio neste domínio terá custos elevados. E não se trata apenas da sustentabilidade da Segurança Social, está em causa o próprio funcionamento do Estado e da economia, para os quais a população ativa contribui através dos seus impostos, diretos e indiretos, dos seus rendimentos e da sua produtividade. E, além disso, creio que há outro aspeto importante, que é de ordem mais simbólica, e que tem que ver com o nosso «estado de alma» enquanto nação e povo, que transpõe para a geração seguinte a ideia de futuro, de progresso, de mudança, o que é bem mais difícil de fazer com uma população muito envelhecida.

A crise demográfica em Portugal tem paralelo na Europa?
Tão extrema não. Mas a Europa atravessa, toda ela, com exceções como a França e a Irlanda, uma situação demográfica muito complicada, sobretudo nos países do Sul e do Leste, que têm natalidade e fecundidade mais baixas e perdem população por via dos saldos migratórios negativos. Mas em Portugal o problema é mais grave ainda, e daí falar-se em crise demográfica. Temos as taxas de fecundidade mais baixas do mundo, somos um dos dez países mais envelhecidos do mundo e fizemos uma transição muito rápida em direção a este envelhecimento. Não obstante a necessidade de a Europa criar políticas comuns em matéria de demografia, Portugal tem de ter uma política própria.

Como se inverte, então, esta tendência?
Acredito que é possível, em cerca de dez anos, retomar uma natalidade próxima dos cem mil nados-vivos anuais. Para isso, é necessária uma política amiga das pessoas. O discurso de que «as pessoas não estão melhor, mas o país está» tem de acabar. O país são as pessoas, os cidadãos. Dito isto, apesar de se verificar uma componente estrutural de diminuição da natalidade, há níveis mínimos que estão em sintonia com o desejo que muitos casais jovens têm de ter, pelo menos, dois filhos. Tendo em conta esse desejo e o volume de população portuguesa que ainda não o realizou e tem idade para o fazer, creio que seria possível voltar aos cem mil nascimentos, o que já permitiria um equilíbrio entre nascimentos e óbitos, aproximando-nos da reposição das gerações. Não é preciso crescer, nem crescer muito, estes valores já atenuariam o processo de envelhecimento.

E em que consistiria essa política amiga das pessoas?
Para inverter a tendência de crise demográfica, tem de haver no domínio económico uma clara política de criação de emprego e de melhoria do quadro das relações laborais. É preciso estabilidade para se ter filhos. Não se pode pedir às pessoas que os tenham num quadro de precariedade e vulnerabilidade, porque os filhos são para muito tempo, não são para seis meses, como os contratos de trabalho precários. Depois, complementarmente, podem criar-se incentivos diretos à natalidade: subsídios, melhoria dos sistemas de apoio às crianças, como a rede de creches, aumento das licenças parentais, reformas mais cedo para quem tem filhos… há uma série de medidas de compensação que podem ser criadas. É essencial ainda equilibrar o fenómeno migratório de forma a que, por exemplo, os portugueses que emigram não sintam a necessidade de ter os filhos fora do país. Nasce um número significativo de crianças de pais portugueses no estrangeiro. Se os juntássemos cá, tínhamos um saldo natural positivo.

A imigração, nos anos noventa, em Portugal, adiou de alguma forma esta crise demográfica?
Sobretudo na segunda metade dos anos noventa e no início deste século, a imigração foi um fenómeno importante. Alguém disse, a determinada altura, que os imigrantes eram uma boa notícia para o país. E foram, de facto. Os países que têm economias mais dinâmicas são os mais atrativos em termos de imigração, atraem população mais do que a repelem. O que aconteceu em Portugal nesses dez-quinze anos felizes – simbolicamente felizes para todos nós porque há uma série de eventos que no imaginário nacional se traduzem na ideia de um Portugal moderno, que caminhava a passos largos para a convergência com os países mais avançados da União Europeia – teve na imigração um dos seus elementos representativos, sobretudo na oriunda do Brasil e, mais ainda, do Leste da Europa, porque menos tradicional e foi, à época, uma novidade.

E que impacte teve em termos demográficos?
Muito positivo. Por um lado, direto, porque a sua chegada originou um saldo migratório positivo, e, por outro, indireto, porque, por via do reagrupamento familiar, tivemos um nascimento grande de filhos de casais estrangeiros ou «mistos». Até há muito pouco tempo cerca de dez por cento dos nascimentos em território nacional (e em regiões como o Algarve isto multiplicava-se por mais de dois) eram filhos de mãe estrangeira. De resto, estas deram um contributo importante para o superavit que tínhamos em termos de nascimentos relativamente aos óbitos que prevaleceu até 2007-2008. Este foi-se tornando progressivamente mais pequeno e se não fossem os nascimentos de mãe estrangeira, seria já negativo na primeira metade do decénio inicial deste século e não apenas em 2009. E há um outro factor a realçar: a noção de cosmopolitismo. Não é um chavão, traduz uma sociedade mais ajustada a estes novos tempos de globalização e interação entre povos. Vários estudos associam a competitividade à ideia de diversidade, em diferentes domínios. A presença de imigrantes é sinal de diversidade e o desenvolvimento da tolerância, aspeto fundamental nessa ideia da competitividade urbana, também se manifesta na forma como nos relacionamos com o outro. Uma presença muito forte deste outro, seja ele africano, brasileiro ou europeu de leste, ajudou-nos a abrir horizontes e, certamente, a inovar mais.

Nas últimas eleições europeias, assistimos à ascensão de partidos de extrema direita, com um discurso xenófobo e racista, que venceram em França e na Dinamarca e tiveram uma votação expressiva, por exemplo, na Grécia. Em Portugal o risco de isto vir a acontecer não existe?
Risco existe sempre, mas é pouco provável, sobretudo se formos capazes de prolongar as condições que caraterizam o contexto atual. Parece-me que houve na sociedade portuguesa um razoável consenso nacional em torno de uma política de integração dos imigrantes, embora a gestão dos fluxos migratórios não tenha corrido tão bem, ou não teríamos tido que fazer tantas regularizações extraordinárias. Mas a ideia de que as pessoas vêm para trabalhar e têm de ter direitos porque dão um contributo para a sociedade nacional parece-me estar bem assente. Para a maioria dos portugueses, a xenofobia e o racismo não são aceitáveis, até porque há um paralelismo com a emigração, que é uma experiência coletiva nacional que ajuda a compreender e a gerar empatia com os imigrantes. Mas se isto explica que não tenhamos partidos de pendor xenófobo e anti-imigração relevantes, não quer dizer que o perigo não exista. Basta que, no contexto europeu, ganhe força e se difunda este discurso e a tendência, terrível a meu ver, para a reposição das fronteiras externas e o controlo da circulação interna num quadro de exaltação dos nacionalismos, para que possamos assistir, dentro de portas, ao crescimento de forças políticas como as que ganharam as eleições em França. Há que trabalhar a nível europeu no sentido de impedir estes processos. Se não o fizermos, os riscos são grandes, não só para os imigrantes de países terceiros, mas também para os designados concidadãos europeus, colocando mesmo em causa todo o ideário que permitiu a edificação da União Europeia.