Porque precisamos das feministas?

Existirão poucos movimentos que tenham despertado tantas paixões e ódios, divisões e preconceitos. Num tempo em que a igualdade de género persiste em não sair do papel, o feminismo volta a fazer sentido? A investigadora Anne Cova acha que sim.

Cerca de 150 anos depois, os movimentos feministas e de luta pelos direitos das mu­lheres obtiveram grandes vitórias, mas não conseguiram a igualdade, que existe na lei, mas persiste em não existir na realidade, no­meadamente no acesso aos lugares de topo e na equidade salarial por trabalho igual entre homens e mulheres. O que tem falhado?
_Os movimentos feministas organiza­dos existem desde o fim do século XIX e co­nheceram o seu apogeu antes do desencadear da Primeira Grande Guerra, mas hou­ve sempre ações isoladas de feministas como Christine de Pizan com Le Livre de la Cité des Dames (1405), Olympe de Gou­ges com a Déclaration des Droits de la Fem­me et de la Citoyenne (1791) ou Mary Wolls­tonecraft com A Vindication of the Rights of Woman (1792). Na viragem do século XIX para o século XX, nascem organizações como o International Council of Women (ICW), fundado em 1888, em Washington, nos EUA, com o objetivo de federar as vá­rias associações de mulheres no mundo, criando em cada país um chamado con­selho nacional das mulheres. Conseguiu desenvolver-se e em 1939 existiam 36 con­selhos filiados. Em Portugal, nasceu em 1914 o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, filiado neste ICW. Agora, res­pondendo à sua pergunta, há várias razões que explicam isso e uma delas é a dificul­dade de mudar as mentalidades. As leis são muito importantes, mas temos de ter ou­tros mecanismos para garantir a sua boa aplicação. Falando de equidade salarial com os mesmos diplomas constatamos que as mulheres ganham quase menos trinta por cento do que os homens. Esta percen­tagem aumenta quando subimos na hierar­quia. Mais: existe o chamado «teto de vi­dro», expressão utilizada para descrever a barreira invisível que impede as mulheres de avançar em posições de nível executi­vo. Assim, o que tem falhado, na minha opi­nião, são medidas que assegurem uma boa aplicação das leis. As feministas do sécu­lo XIX e do início do século XX lutavam não só para implementar uma legislação que protegesse as mulheres como zelavam pe­la sua aplicação. Estudei as leis de proteção da maternidade em França e isso é patente.

Um dos paradoxos nesta matéria está pre­cisamente relacionado com o justo direito à proteção da maternidade, mas que muitas vezes acaba por criar obstáculos a nível pro­fissional e no acesso aos lugares de topo. Na verdade, parece que a maioria das mulheres continuam a ter de escolher entre ser mães ou apostar na carreira profissional. Porque é que é assim?
_Apesar dos esforços da maioria das femi­nistas para obter leis de proteção da ma­ternidade que permitam às mães conciliar melhor o trabalho fora e dentro de casa, continua a não haver uma repartição equi­tativa da divisão das tarefas domésticas entre homens e mulheres. Hoje, as mulhe­res que escolhem ser mães estão confron­tadas com a dupla jornada ou seja com o trabalho profissional e o trabalho domés­tico. Se é verdade que os homens ajudam mais do que no passado, a palavra «ajuda» é por si significativa. Voltamos à primei­ra questão: leva tempo a mudar as menta­lidades. Podemos esperar que com as no­vas gerações se crie um maior equilíbrio, mas isto implica um trabalho de tomada de consciência logo desde da escola (por exemplo, as imagens e os textos veicula­dos pelos manuais escolares), medidas lo­gísticas adequadas (creches); horários de trabalho compatíveis com a escola das crianças, etc.

Como é que este paradoxo afetou e se refle­tiu nos movimentos feministas ao longo da história?
_Um ponto importante que está bem su­blinhado na sua pergunta é falar sempre de feminismos no plural. Não existe um movimento feminista mas vários. O que carateriza os feminismos ao longo da his­tória é a sua pluralidade e heterogenei­dade. Sendo assim, houve feministas que perceberam a importância de pedir leis a favor da proteção da maternidade e que fo­ram, como já mencionei, uma maioria mas houve também feministas que rejeitaram estas medidas de proteção. Convém insis­tir sobre a riqueza de ideias no seio dos fe­minismos.

Durante muito tempo, o feminismo foi asso­ciado a radicalismo e a uma luta contra os homens, o que levava muitas mulheres que defendiam igualdade de género a resistirem dizer-se feministas. Este fenómeno parece estar a mudar. O que é o feminismo hoje?
_Esta resistência tem que ver com a cono­tação pejorativa associada à palavra femi­nista e que tem raízes históricas. Acho óti­mo que isto esteja a mudar porque preci­samos das feministas. Na sua maioria são mulheres, mas existem também homens. Dito isto, é impossível responder à sua per­gunta sobre o que é o feminismo hoje, dada a já referida pluralidade de posições. Sim­plificando, podemos dizer, citando a histo­riadora americana Karen Offen, que «ser feminista é necessariamente ser contrário à dominação masculina na cultura e na so­ciedade, qualquer que seja o local geográ­fico ou a situação histórica.»

E o que tem sido o feminismo ao longo da sua história?
_Os movimentos feministas foram sem­pre constituídos por uma minoria de mu­lheres e dentro dessa minoria havia tam­bém alguns homens. Não são movimentos de massas. É uma vanguarda progressis­ta que quer mudar as relações entre os ho­mens e as mulheres de forma a eliminar a subordinação das mulheres.

«Só em 1971 ou 72 encontrei as jovens femi­nistas, que me contactaram a propósito dos problemas do aborto. Comecei a trabalhar com elas porque a sua luta não passava por quererem tomar o lugar dos homens, mas por mudar o mundo feito por eles. Esta é uma ideia muito interessante, aos meus olhos», disse Simone de Beauvoir, numa entrevista ao Le Monde, nos anos setenta. É esta a ideia subjacente ao feminismo moderno?
_Acho que sim. Como vimos, as feminis­tas podem ser identificadas como quaisquer pessoas, mulher ou homem, e a ideia não é de querer tomar o lugar dos homens mas de fac­to mudar o mundo feito por eles de forma a que possamos viver num mundo mais justo.

«Não nascemos mulheres, tornamo-nos mu­lheres.» Esta frase que sintetiza as mais de mil páginas de O Segundo Sexo, obra maior de Beauvoir. Pode dizer-se que é estruturan­te do feminismo ou, pelo contrário, recusa-o?
_Não há dúvida de que o livro O Segundo Sexo publicado em 1949 teve um impacte internacional enorme, especialmente nos Estados Unidos. Foi um marco importan­te para a construção da chamada segunda onda dos feminismos, aquela que nasceu nos anos sessenta e setenta do século XX.

«A verdadeira emancipação da mulher situa–se no plano do trabalho e da independência económica.» Mais uma frase de Simone de Beauvoir, que sintetiza aquilo que, em Portu­gal, Maria Lamas concluiu no livro As Mulhe­res do Meu País. Considera que os movimentos feministas tomaram consciência disto? Aque­la ideia, sempre defendida e na qual se insiste de cada vez que se fala de igualdade de géne­ro – mudança de mentalidades e conciliação da vida privada e profissional entre homens e mulheres, que aliás tem supostamente norteado as políticas públicas nesta matéria, persegue esse objetivo ou de alguma forma escamoteia-o?
_A independência económica é funda­mental nas reivindicações das feminis­tas ao longo da história. Às vezes, temos a ideia de que as feministas apenas se con­centraram no acesso ao direito de voto mas é errado: as reivindicações eram di­versificadas e o voto era visto como um meio para obter outras reformas em todos os domínios.

Portugal é um dos países da Europa com mais mulheres a trabalhar fora de casa. Pelas boas ou más razões?
_Na minha opinião, o importante é dar as condições: trabalhos fora de casa com horários que permitem conciliar o traba­lho dentro de casa. Estamos no século xxi e a maioria das mulheres continuam a efetuar uma dupla jornada.

O género feminino está em maioria nas uni­versidades, mas quase ausente dos lugares de topo, seja no meio empresarial seja no meio público e político. Há quem defenda o sistema de quotas, já aplicadas em outros países europeus, como um mal necessário, há quem o considere uma menorização. Esta é outra matéria que divide as feministas?
_Continua a ser difícil para as mulheres acederem aos lugares de topo nos vários meios que menciona. Daí a necessidade de implementar medidas que permitam este acesso. Existem claro, como já foi sublinha­do, várias posições no seio dos movimentos feministas. Fala-se das quotas, mas mais importante, na minha opinião, é a parida­de. Esse parece-me o objetivo a atingir.

QUEM É ANNE COVA?
Doutorada em História pelo Instituto Universitário Europeu de Florença, é investigadora auxiliar no Instituto de Ciências Socais da Universidade de Lisboa e vice-presidente da Associação Portuguesa de Investigação Histórica sobre as Mulheres, filiada na International Federation for Research in Women’s History. É autora de diversos artigos e livros sobre História das Mulheres.