Há quem considere uma moda passageira, mas quem gosta chama-lhe vício. Agora que o tempo começa a estar bom, damos-lhe a conhecer quem que já não passa sem correr. Gente que não corria e agora precisa da corrida como de ar para os pulmões. Pense bem se quer ler este texto. É possível que provoque adição.
Por todo o lado se vê gente a correr. Nas principais artérias das cidades, junto ao rio ou em jardins. Gente nova, gente madura, gente que já passou os 65. Famílias inteiras. Gordos, magros e assim-assim. Com calções e T-shirts mal-amanhadas ou com outfits impecáveis. Vermelhos como um tomate, num esforço que se vê ser recente, ou frescos como uma alface, apesar da alta passada. Com relógios sofisticados ou arm bands que lhes controlam o ritmo, o percurso, a frequência cardíaca. Mesmo em casa, podemos vê-los correr quando, no Facebook, aparece a informação: «Fulano acaba de iniciar uma corrida.» Ou: «Fulano acaba de terminar uma corrida.» E lá vemos o tempo que fizeram, a distância que percorreram, como se sentem, como gostavam de se sentir.
Correr está na moda. Tão na moda que acaba de abrir em Lisboa a primeira loja exclusivamente dedicada à corrida (Pro Runner, no Parque das Nações). Há provas para todos os gostos, de dia, de noite, com fogueiras, em cima de pontes. Há quem diga que se deve também à crise. Por um lado, deixou de haver dinheiro para ginásios. Por outro, passou a haver muita necessidade de combater stresses diversos.
TROCAR O SOFÁ PELA ESTRADA
Se há seis anos lhe dissessem que iria correr maratonas, não acreditaria. António, hoje com 40 anos, pesava então 90 quilos e o sofá parecia exercer nele algum magnetismo. Gostava de desporto mas mais na teoria do que na prática. Até que teve uma espécie de epifania, em 2006, que levou a tomar a decisão: estava pesado, cansava-se por nada, enervava-se por menos ainda, sentia-se ocioso. E como janeiro é um bom mês para boas resoluções, foi a uma nutricionista, começou uma dieta e inscreveu-se num ginásio.
Do que menos gostava no desporto era de correr. Mas pouco a pouco foi percebendo que corria mais a cada semana. Primeiro dois quilómetros, depois três e a seguir cinco. Entusiasmou-se e saiu do ginásio para a rua. Como já tinha amigos que corriam preparou-se e, em março, acompanhou-os na Meia-Maratona de Lisboa, ficando-se orgulhosamente pela mini (sete quilómetros).
Gostou. Gostou tanto que uns tempos depois fez outra prova de dez quilómetros e, em Junho, completou os 15 mil metros da Corrida das Fogueiras, em Peniche. Os amigos não o reconheciam. E, uma noite, um deles desafiou-o a meter-se à Meia-Maratona de Lisboa, em setembro. «O desafio era fazer menos de um determinado tempo, que esse amigo estipulou. Era um tempo folgado, mas para quem começara a correr há pouco não deixava de ser um desafio. Em troca, pagava-me um jantar. Claro que não foi pelo jantar que aceitei mas pela graça do repto.»
A verdade é que António Chaves Costa ganhou um jantar em setembro. Porque não só concluiu os 21 quilómetros da meia-maratona como o fez num tempo inferior ao dos amigos. «Arranjámos aqui um queniano, hein?», brincavam todos. António percebeu que tinha uma propensão física e mental para a corrida. «Percebi tarde, aos 34 anos, mas antes tarde do que nunca!»
O bichinho estava-lhe no corpo. Nunca chegou ao ponto de se sentir mal se não conseguisse correr um dia, mas o certo é que nunca mais parou. Em abril de 2007, estreou-se em grande estilo na mãe das provas de atletismo: na Maratona de Paris. «Os meus amigos achavam que eu não devia ir. Não me tinha preparado muito e tinha uma lesão no joelho. Mas o meu único objetivo era chegar ao fim. Mesmo que tivesse de caminhar ou parar a meio do percurso.»
Chegou ao fim com o tempo de quatro horas e 56 minutos. E garante que cortar a meta, depois de 42,195 quilómetros a correr, é uma espécie de catarse física e emocional: «Por um lado, uma sensação de euforia, uma grande carga emotiva. Há pessoas que choram, que se abraçam, que gritam. E isto pode acontecer mesmo que já se tenha concluído várias maratonas. Por outro lado, há uma sensação de vazio. E agora?»
Para resolver esse vazio nada como marcar a próxima maratona na agenda. Mas com uma diferença substancial em relação à primeira: iria preparar-se a sério e fazê-la também a sério, a correr do primeiro ao último minuto. E assim foi. Em abril de 2008, António fez a Maratona de Boston, a sua preferida, num tempo muito inferior ao de Paris: três horas e 53 minutos: «Foi uma experiência fantástica. É o evento mais importante da cidade e os americanos vivem aquilo de uma maneira completamente diferente, muito entusiasmada. É a maratona mais antiga que é corrida consecutivamente, e são milhares de pessoas a puxar pelos atletas, ao longo de todo o percurso. Milhares! E cada participante leva o seu nome no dorsal e as pessoas gritam pelo nosso nome. É extraordinário!»
Depois de Paris e Boston, muitas outras: Nova Iorque (2008), Londres (abril 2009), novamente Boston (2010), Veneza (2010), Estocolmo (2011), Chicago (2011), Lisboa (uma maratona organizada pelo corredor Luís Milagres e Sousa, para comemorar a sua 100.ª maratona, em 2012), Tromso, na Noruega (2012). Ao todo, António Chaves Costa já correu 378 quilómetros só em maratonas. Hoje, dia em que esta revista chega às bancas, e quando milhares de atletas profissionais e amadores irão correr a Meia-Maratona de Lisboa, António estará em Berlim, para completar a décima corrida-mãe (e a última das maratonas-major que lhe faltava), onde espera fazer menos de três horas e trinta minutos: «Tenho um novo objetivo: terminar todas as minhas maratonas em menos de três horas e trinta minutos. Na verdade, o meu melhor tempo foi conquistado em Estocolmo, onde fiz três horas e 12 minutos. Mas já não me importava nada se todas as maratonas em que participei tivessem um tempo inferior a três horas e trinta.»
Se há seis anos lhe tivessem dito que seria maratonista, António Chaves Costa, CEO da farmacêutica Tecnifar, era bem capaz de soltar uma gargalhada. O que é certo é que passou de noventa para 72 quilos e o sofá deixou de ser o melhor amigo. Agora são os ténis, o Garmin (relógio especial de corrida, literalmente, que além de ter GPS faz várias medições) e as metas: «O importante é ir correndo e manter objetivos. E há sempre novos desafios para cumprir!»
METAS CORTADAS, METAS TRAÇADAS
Para Luís Nunes, 39 anos, são as metas que o movem. Antes de se disciplinar nas corridas, era um desportista ocasional. Corria pouco, sem plano de treino, com pouco ritmo, sem dias dedicados. Até que, há seis anos, conheceu um grupo que corria com outra coerência e dedicação. Com objetivos. «Eram amigos que corriam maratonas e correr uma maratona sempre fez parte dos meus sonhos. É um desafio difícil. E eu gosto de desafios difíceis.»
Em 2007, com a Maratona de Roma como incentivo, começou a correr três a quatro vezes por semana. Tornou-se obsessivo. E conseguiu terminar os 42 quilómetros com um tempo inferior ao que tinha definido: três horas e 29 minutos (o seu objetivo era fazer 3h30). «Depois dessa, fiz mais nove maratonas. Costumo dizer que gosto de conhecer as cidades a correr. Há quem tenha pouco tempo e por isso veja as cidades a correr, eu faço-o no sentido literal da expressão.»
Roma, Milão, Berlim, Paris, Madrid, Sevilha, Londres, Nova Iorque e Porto (duas vezes). Na semana passada, mais uma: Amesterdão. De todas, a preferida é a de Londres: «São milhões de pessoas a assistir do princípio ao fim. E gritam pelo nosso nome, puxam por nós. Essa maratona teve uma história rocambolesca e também por isso inesquecível. Na véspera fiz o que é suposto e comi uma grande pratada de massa. Só que fiz um disparate: a massa era picante. Nem queira saber! A partir dos vinte quilómetros de corrida comecei a sentir-me mal. Tive de ir a uma casa de banho de um supermercado indiano. Um quilómetro mais adiante tive de ir a outra. Fui a cinco casas de banho diferentes em 15 minutos e quando me vi ao espelho estava lívido. Pensei desistir mas não fui capaz. Continuei e cheguei ao fim.»
A história faz lembrar uma outra contada por Kate Hays, psicóloga norte-americana que trabalha com maratonistas. Uma vez, Hays deparou-se com uma atleta que antes da Maratona de Nova Iorque tinha feito um teste cardíaco que levantava dúvidas. À pergunta «o que é mais importante: a sua vida ou esta corrida?», o homem não hesitou: «Vou correr!» A verdade é que não morreu. Apesar do estado de desidratação em que chegou à meta, Luís Nunes também não morreu e conseguiu fazer 3h26, e a corrida ganhou ainda mais sabor por causa deste episódio.
Hoje, o director comercial da Zon não passa sem a corrida matinal. Levanta-se todos os dias às 5h30 da manhã, equipa-se e segue para o Estádio Universitário de Lisboa, onde corre entre sessenta e oitenta minutos. Ao domingo, pode chegar a correr 2h40. Não é esquisito com o outfit. Só não veste camisolas de algodão porque ensopam, e aposta em bons ténis e num relógio Garmin. Não ouve música porque não gosta. Prefere ouvir podcasts. «Oiço um podcast chamado Trailer Runner Nation, em que uns americanos discutem várias temáticas sobre corrida. Assim, enquanto corro, aprendo e motivo-me. Mas também posso ouvir a Mixórdia de Temáticas, do Ricardo Araújo Pereira. E aí as pessoas devem pensar que sou maluco, porque vou o caminho todo a rir.»
Depois do treino, sente-se de consciência tranquila, com o sentimento de dever cumprido. «Sinto-me muito melhor num dia em que treino do que num dia em que não treino, sem dúvida.» As metas, essas, continuam a ser essenciais. Agora, apesar das maratonas continuarem a entusiasmá-lo, quer ir ainda mais longe. «Tenho o sonho de fazer um Ironman, aos 40 anos. São 3,8 quilómetros de natação, 180 de ciclismo e, no fim, uma maratona.» Quando lhe dizemos que já falta pouco para os 40, ele sorri, como que embaraçado pela revelação: «Pois falta… e já ando a treinar para isso.»
O DESPERTADOR TOCA ÀS 5H00
Ana Caldas Lopes, 39 anos, sabe que o amigo Luís Nunes é capaz de completar o Ironman e não se surpreenderia se ainda se pusesse a fazer um Ultraman (prova especial de dez quilómetros de natação, 420 de ciclismo e 84 de corrida). Sabe que é suficientemente obstinado para isso. Aliás, foi com ele que começou a correr e a insistência de ambos fê-los, além de amigos, bons companheiros de corrida. «O Luís já pertencia a um grupo de corredores, chamado GAFE (Grupo de Atletas do Fundo da Estrada), e foi ele quem, sabendo como eu gostava de desporto, me convidou a ser a primeira menina do grupo.»
No início, não achava grande graça às corridas. Era mais bicho de ginásio, frenética nas aulas de grupo. Mas o GAFE pegou-lhe o vício. A partir daí, começou a correr sempre. Acorda três ou quatro vezes por semana às cinco da manhã para correr uma hora, no Parque das Nações, onde vive. «De segunda a quarta-feira faço dez ou onze quilómetros, à quinta tento fazer 14. Ao fim de semana é que faço os treinos mais longos.»
Prefere correr acompanhada, mas nem sempre é fácil conciliar horários, sobretudo desde que nasceu a filha, Inês, há nove meses. Quando estava grávida, correu até ao quarto mês, mas o médico pediu-lhe, com jeitinho, que parasse. Foi um pedido difícil de cumprir mas necessário. Ainda assim, vingou-se nas caminhadas. «Andava todos os dias 12 a 15 quilómetros. No dia em que ela nasceu caminhei onze quilómetros. E depois do nascimento, mal tive autorização, pus-me de novo a correr.»
Ainda corre com o seu grupo do coração, com o qual tem participado em várias corridas. «As corridas são uma motivação. Primeiro começa-se quase por graça, depois começamos a treinar para melhorar os tempos. Já fiz várias: a de São Silvestre, as meias-maratonas, as Fogueiras de Peniche, a marginal à noite… E também já fiz uma maratona. A de Paris, em abril de 2010. Fui muito puxada pelos amigos da GAFE, o Pedro e o Carlos… disse imensos palavrões, passei por momentos em que estava muito descontrolada e exausta. Quando cheguei ao fim chorei compulsivamente. Foi uma experiência fantástica.»
Nas suas corridas, em treino seja em prova, nunca lhe pode faltar o lenço na cabeça (tipo imagem de marca), a música, a faixa no braço com a aplicação da Nike para monitorizar o percurso, e um objetivo: «Não tem de ser uma prova. Pode ser apenas fazer um tempo melhor ou mais distância… Mas ter um objetivo também não pode faltar.»
E qual é o próximo? Outra maratona? Ana Caldas Lopes, diretora de compras da farmacêutica Hovione, sorri: «Não… é continuar a correr, melhorar tempos, sentir-me bem, continuar a participar em provas. Mas tenho de confessar: quero fazer a de Nova Iorque! Nem que tenha 80 anos e a dentadura a cair!»
«MAIS BARATO DO QUE IR AO PSIQUIATRA»
Nem Nova Iorque nem Paris, nem sequer Lisboa ou Porto. Luigi Ferreira, 26 anos, corre, sim senhor, mas não tem a ambição de fazer os 42 quilómetros. Longe disso. Começou a correr por causa de um ligeiro estado depressivo. Nessa altura, o personal trainer falou-lhe no poder da endorfina, a hormona libertada durante a atividade física, e ele pôs os pés ao caminho. Demorou algum tempo a gostar de correr. Foi mais o contacto com a rua e com a natureza que lhe aguçou o gosto: «Aquele contacto com o sol, em plena Foz, logo pela manhã tem uma carga muito positiva. Mas mesmo no inverno sabe bem, o frio, o peso da roupa no corpo. Mesmo que se esteja mal- disposto, fica-se logo bem.»
A endorfina teve resultados quase imediatos. Foi-se a depressão, veio a boa forma. Luigi, que é cantor (faz covers e imitações) e entretainer, bem precisa estar em forma e por isso corre dez quilómetros no Porto todos os dias. «Começo a correr ali na Rotunda da Anémona, em Matosinhos, vou até à ponte da Arrábida e depois volto. É uma mini-maratona diária, um psicólogo natural e mais barato.»
Para Rita Ferro Rodrigues, 35 anos, toda esta paixão pela corrida foi uma espécie de epifania, que levou o seu tempo a revelar-se: «Sempre odiei correr. É que nem corria para apanhar o autocarro! Um dia, depois de o meu filho Eduardo nascer, o meu personal trainer disse-me que eu precisava de correr. E eu, que queria muito ficar em forma, lá comecei. No princípio não foi fácil porque continuei a odiar. Mas persisti. E foi então que se deu a revelação. Comecei a gostar. Foi muito estranho! Agora é um vício.»
A jornalista Andreia Vale ouve a descrição da amiga e ri-se. Também ela não era muito dada à corrida. Até ao dia, há um ano, em que se mudou para uma casa cuja senhoria, mais velha, era toda dinâmica e enxuta. «Pensei: tenho de me fazer à vida. Comecei a andar. E a andar cada vez mais. E um dia disse: “Quem anda também corre.” Primeiro cinco minutos, depois dez, a seguir 15.»
Agora, Andreia Vale é uma corredora inveterada. Nas semanas em que fica com o filho, só corre se tiver quem fique com ele. Nas semanas em que está sozinha, corre os cinco dias da semana, descansa no sexto, e torna a correr no sétimo dia. «Corro cinco a dez quilómetros. Se me estiver a preparar para uma prova corro 15.» Na véspera da nossa conversa, tinha feito a meia-maratona, mas nem por isso sentia menos vontade de dar corda aos ténis, já que estava equipada para a fotografia: «A seguir temos de ir correr, Rita! Eu não aguento estar aqui assim nestes preparos e não aproveitar. Correr é mais barato do que ir ao psiquiatra e que comprar sapatos. É uma purga!»
A apresentadora do programa da SIC Toca a Mexer também corre três a quatro vezes por semana. «Não tenho a paranoia das provas e de correr meias-maratonas e maratonas. Eu corro para ficar bem e para me sentir feliz. E a verdade é que nunca recebi tantos elogios, que estou muito em forma, que o meu corpo secou, está firme… sem dúvida. Depois, passei a dormir muito melhor. E, como sou hiperativa, acho que há um tipo de energia que só consigo gastar correndo. Como também há um tipo de cansaço que só passa com a corrida. Como se não bastasse, enquanto corro ainda vou a organizar a minha vida. Estou focada, concentrada, e resolvo imensas coisas mentalmente.»
As amigas tentam correr juntas, embora nem sempre seja possível conciliar horários. Não são muito exigentes com o outfit, mas também não correm com T-shirts largas com marcas de salsichas. O que nunca pode faltar é a música. Andreia ouve «músicas de carrinho de choque», Rita gosta de arrancar com Born to Run, de Bruce Springsteen, e de alongar com músicas pirosonas.
«O que importa é gostar», diz Andreia. «E se gostares, o teu corpo vai-te dizer. Vais ficar ansiosa por correr. Vais ver provas e vais querer ir. Vais ver outras pessoas correr e vais ao carro equipar-te num instante para ires também. E depois é uma luta contigo. Vais aumentado a distância, vais tentando reduzir o tempo que fazes… é um desafio. E ganhares os desafios que te propões é mágico.» Rita concorda: «Há um empowerment! Tu consegues! E quanto mais partida ficas mais poderosa te sentes. É mesmo viciante.»
Se depois disto ainda não saiu disparado a correr é porque ainda não viu a luz. Antes de a ver, faça um check up [ver caixa com P&R ao médico João Freitas] e, se estiver tudo bem, calce os ténis, pegue num plano de treino e faça-se à estrada, de preferência junto ao rio, ao mar, ou rodeado de árvores. Mesmo que odeie correr, tente. Uma, duas, três vezes. Uma semana ou duas. Pode ser que continue a odiar correr e nunca mais o faça nem para apanhar o autocarro. Ou então… pode ter a tal epifania. E encontrar-se, mais dia menos dia, com um dos entrevistados para esta reportagem numa maratona qualquer.
CORRER RUMO AO PODER?
As pernas dos políticos também têm ganhado músculo nos últimos anos. A moda começou com José Sócrates, fervoroso runner, que transportava sempre consigo os ténis, em visitas oficiais ou oficiosas, para correr pelas ruas das cidades, geralmente acompanhado por um séquito arfante. Um dia, numa entrevista, Sócrates justificou assim a sua necessidade de mexer os glúteos: «É preciso estar em forma, caso contrário, comem-nos vivos.»
Não se sabe se foi também por receio deste canibalismo metafórico que outras personalidades da cena política internacional começaram a correr. Os ex-presidentes norte-americanos Bill Clinton e George W. Bush não dispensavam o seu jogging, o chefe do governo espanhol José María Aznar também gostava de correr, o francês Nicolas Sarkozy é um runner confesso e Barack Obama, carismático presidente norte-americano, não podia escapar à moda.
Por cá, não foi a retirada de Sócrates que deixou o panorama político-atlético mais pobre. Pedro Mota Soares, ministro da Solidariedade e Segurança Social, é visto com frequência a correr pelas avenidas novas, em Lisboa. Mas há mais nomes: Miguel Frasquilho (PSD), Adolfo Mesquita Nunes (CDS-PP), Carlos Zorrinho (PS).
Foi com Carlos Zorrinho que marcámos encontro, às 8h30 da manhã, no Estádio Universitário de Lisboa. Chegou, pontualmente, de calção largo, T-shirt de algodão e ténis de corrida. Um outfit pouco profissional, diriam alguns dos corredores da reportagem. Zorrinho sabe que sim. «A roupa para correr é a que está mais à mão. Não ligo nenhuma a isso», afirma divertido.
Se a indumentária não preocupa o líder parlamentar do PS, o mesmo não se pode dizer da corrida propriamente dita. Carlos Zorrinho, 53 anos, corre, e corre bem. «Tento correr todos os dias, entre seis e dez quilómetros. Se não corro, no primeiro dia fico cheio de dores de cabeça e no segundo, fico com dores no corpo.» Gosta de monitorizar o percurso e de competir consigo mesmo: «É sempre bom superar o tempo anterior.» O companheiro de bancada Duarte Cordeiro confidencia que Carlos Zorrinho não brinca em serviço e que só corre se for para fazer um bom tempo: «Um dia, perguntei-lhe se não ia correr e respondeu-me que não. Não estava muito bem-disposto e não queria estragar a média! É um corredor nato!» O deputado sorri e garante que isso foi só uma brincadeira. E que já nem sequer participa em provas: «Eu gostava… mas agora não tenho tempo para me preparar devidamente.»
Gosta de correr acompanhado pelos filhos, de preferência na ecopista de Évora, mas também corre sozinho. Em Lisboa, os seus ténis conhecem bem a Avenida 5 de Outubro e Monsanto, mas sempre que viaja também dá corda aos sapatos, até porque «a correr veem-se coisas que não se veem nos autocarros.»
Este desporto é, além do mais, uma boa forma de organizar ideias, explica Zorrinho: «Escrevo pelo menos duas crónicas todas as semanas. Uma para o Correio da Manhã, outra para o Diário do Sul. Nem sempre tenho a crónica bem estruturada e correr ajuda-me a pôr as ideias em ordem. O mesmo com os discursos. Às vezes, um discurso não está a sair e o remédio é ir correr. As ideias fluem. Não sei se é por haver mais oxigénio na cabeça… o que sei é que quando corro estou focado. Por isso também é que nunca levo música. Estou ali para correr e para pensar.»
CHECK UP
João Pedro Freitas é cardiologista, mestre em Medicina Desportiva, investigador do sistema nervoso autónomo, síncope e morte súbita em atletas.
Há cada vez mais gente a correr. A quem está contra-indicada a corrida?
Está contra-indicada às poucas pessoas portadoras de cardiopatia com risco de morte súbita.
Todas as pessoas devem fazer um exame detalhado antes de se iniciarem nas corridas? Que exames concretamente deverão fazer?
Devem fazer uma consulta médica por um médico especialista em medicina desportiva ou com mestrado em Medicina Desportiva que lhes faça as perguntas pertinentes para que possam pensar na presença do risco de morte súbita e, pelo menos numa avaliação inicial, um simples eletrocardiograma. Se o médico achar necessário, poderá solicitar mais exames. E a maratona?
Está ao alcance de qualquer um? A maratona está ao alcance de quase toda a gente desde que se esteja preparado para ela e não seja portadora da tal cardiopatia com risco de morte súbita.
PLANO DE TREINO PARA PRINCIPIANTES
(por Nilton Bala*)
Nas primeiras quatro semanas:
Escolha um lugar plano para treinar e inicie com a caminhada
Aumente o seu tempo de caminhada até atingir trinta minutos
Aumente o percurso mantendo o mesmo tempo (6 km/h corresponde a uma caminhada rápida)
Começando a correr, a cada duas semanas:
Durante trinta minutos:
1 minuto corrida + 4 minutos caminhada
2 minutos corrida + 3 minutos caminhada
3 minutos corrida + 2 minutos caminhada
4 minutos corrida + 1 minuto caminhada
35 minutos:
5 minutos corrida + 2 minutos caminhada
36 minutos:
7 minutos corrida + 2 minutos caminhada
10 minutos corrida + 2 minutos caminhada
42 minutos:
12 minutos corrida + 2 minutos caminhada
54 minutos:
15 minutos corrida + 3 minutos caminhada
1 hora:
20 minutos corrida + 5 minutos caminhada
25 minutos corrida + 5 minutos caminhada
30 minutos corrida + reduzir gradualmente o tempo de caminhada, até atingir uma hora a correr.
«Com este plano, demorará sete a oito meses até correr uma hora. Aqui não há preocupação com a velocidade ou com a distância. É possível que em menos da metade deste tempo consiga pular etapas, pois a adaptação cardiovascular acontece de forma relativamente rápida. Mas a adaptação neuromuscular é um pouco mais lenta, o que pode acarretar lesões. Se tiver peso a mais, fortaleça os membros inferiores. Ou esqueça a corrida, optando por outras atividades até atingir valores seguros de peso corporal para começar a correr. A frequência cardíaca deve ser monitorada e não deve ultrapassar 85 por cento FC máximo (frequência cardíaca máxima). A hidratação deve ser mantida inclusive durante o treino, e a roupa deve ser leve e permitir a transpiração.
O desporto não traz apenas saúde física, mas também saúde mental, graças à endorfina produzida pelo cérebro durante e depois de atividade física, que regula a emoção e a perceção da dor, ajudando a relaxar e gerando bem- estar e prazer. A endorfina é considerada um analgésico natural, reduzindo o stress e a ansiedade, aliviando as tensões, melhorando o sono e combatendo depressões leves.»
*Nilton Bala é um reputado personal trainer do Porto. Nasceu no Brasil, foi futebolista profissional e hoje é conhecido como o «PT das estrelas», justamente por treinar várias figuras públicas.
DE SEDENTÁRIO A MARATONISTA
José Guimarães tem 38 anos. Há dois, ficou desempregado. A vida deu uma volta de 360º e ele sentia-se perdido. Um dia, calçou os ténis e foi correr para a praia de Carcavelos. Era dezembro e chovia. José, que nunca tinha corrido, sentiu-se como que lavado por dentro. No dia seguinte, voltou. E no outro. E no que veio depois. E, de repente, fez-se luz. Correr, gerir o esforço, enfrentar as adversidades, era um retrato do que temos de fazer na vida. Havia ali um paralelismo. E ele queria aprender a lição.
José pesava 88 quilos. Em seis meses perdeu dez. Hoje pesa 74 (mede 1,86 metros). Em março de 2011 comprometeu-se: iria correr uma maratona nesse ano. Dito e feito. Depois de um afincado treino, em outubro fez a Maratona de Munique. Chegou ao fim e sentiu-se nas nuvens. Tinha conseguido cumprir um objetivo difícil e duro. Se o conseguira, estava apto para qualquer coisa. Mas, por outro lado, não conseguia deixar de pensar: e agora?
Foi assim que nasceu o blogue De Sedentário a Maratonista. Uma página onde se pode encontrar de tudo um pouco: dicas para quem começa, sugestões de percursos, equipamento e acessórios, e todo o tipo de informações úteis. «Além disso, pretende ser também um meio agregador que faça que mais pessoas deixem de ser sedentárias e olhem de forma positiva para a vida, adotando posturas de vida saudáveis e busquem a sua própria felicidade.»
José Guimarães continua desempregado mas já não desorientado. Faz trabalhos de freelance, na área do marketing, e continua a correr. Cada vez mais. «Agora estou mais apaixonado pelas corridas fora de estrada. São corridas muito duras, de vinte, quarenta, cem quilómetros. Treino seis dias por semana e cada treino é uma viagem dentro de mim. Nunca consegui meditar e, não me pergunte como, quando corro consigo. Não oiço música. Oiço os outros, oiço a minha respiração e sobretudo oiço-me a mim mesmo. Sou outra pessoa desde que corro. Uma pessoa muito melhor. Sem sombra de dúvida.»
[Publicado originalmente em 30 de Setembro de 2012]