«Perdi a inocência no Apito Dourado. E com o Face Oculta desacreditei de tudo»

Desde o famoso caso Militão, passando pelo «Apito Dourado» até ao «Face Oculta», muitos dos grandes processos mediáticos passaram pelas mãos de Teófilo Santiago. Foi «despedido», readmitido, elogiado e criticado ao longo de mais de trinta anos na Polícia Judiciária, sendo o único inspetor com um crachá de ouro. Aos 58 anos, decidiu sair pelo seu pé, por se sentir desencantado. Garante que nunca teve ou procurou alvos e trata todos por «cidadãos» ou «indivíduos». Para os igualar.

Já confirmou se o crachá da PJ que tem é mesmo ouro e não um íman para atrair os casos complicados?
_Compreendo a provocação, mas o crachá de ouro foi-me entregue apenas com resultado do trabalho produzido por n equipas que tive a felicidade de dirigir. E trouxe-me obrigações. Já os problemas… houve até quem escrevesse que atraía os bruxedos, não é muito verdade. O que acontece é que nunca olhei para o lado. Quando os problemas surgiam encarava-os independentemente do que fossem e dos protagonistas. Por via disso, naturalmente, nestes 30 anos tinham que acontecer muitas coisas, e algumas, por uma razão ou outra, tornaram-se mais conhecidas do público. Mas há uma coisa que garanto, e isso para sossegar algumas consciências, é que nunca procurei alvos, nunca defini alvos, nunca foi à procura de alvos. Agora, não assobiava para o lado. Tive uma sorte terrível. Era um miúdo quando entrei para a Polícia Judiciária e tive logo responsabilidades, as pessoas confiaram em mim desde o primeiro dia em situações bem difíceis.

Vamos então por aí. Que primeiro caso difícil enfrentou?
_Ainda era estagiário quando apareceu uma situação que, para a Coimbra de então, foi um escândalo: a detenção de um professor universitário. Eu entendi que devia ser indiciado por furto qualificado, entenderam depois outras autoridades que seria por recetação. Mas era um professor, assistente de uma figura grada da universidade e da vida nacional e isso, na pacatez de Coimbra, foi um estrondo.

Quantos anos tinha?
_Estagiário na PJ, teria 27 acabados de fazer. Era então diretor da PJ de Coimbra o Dr. Ernesto Maciel, que depois foi chefe de gabinete do procurador-geral da República, que não é uma pessoa muito exuberante. Aquilo aconteceu durante a noite e na manhã seguinte andava eu a correr ali à volta do estádio e ele parou o carro, perguntou-me se o que tinha acontecido e se estava tranquilo. E à minha resposta que sim, que estava tranquilo, ele disse: “então também fico”. Isto é marcante, muito mais do que depois os reconhecimentos. Foi uma prova de confiança em mim que me deu grande responsabilidade e motivação. Passado muito pouco tempo, ainda não se falava do crime económico em Portugal, já estava em Aveiro e era diretor da PJ o Dr. José Marques Vidal, acabei por deter pessoas que eram das suas relações, amigos, tinham andado com ele na escola primária. Nunca o diretor me telefonou para saber o que quer que fosse. O fundamental é corresponder às pessoas que trabalham connosco. É muito mais importante do que crachás, loas ou tudo o mais.

Mas lá que atrai processos complexos, atrai. Parece que lhe calham sempre a si…
_As coisas aconteceram, são mais de 30 anos. Não concebo investigação criminal estática, reativa, conformada ou até resignada. Tem que naturalmente ter uma perspetiva dinâmica, proativa.

Portanto, nunca teve medo de enfrentar chatices nem de ter problemas?
_Não, porquê? É difícil ter medo quando se faz uma coisa de que se gosta. Não acredito em muita coisa, mas acredito na justiça e na bondade daquilo que estávamos a fazer. E no interesse social. Não vejo a justiça de forma enviesada, mas também não a vejo como uma missão. Não sou missionário nem justiceiro, só encaro as coisas com responsabilidade.

E agora a sério: o que é que representa para si ser o único inspetor da PJ, neste momento, a ter um crachá de ouro?
_Nada, rigorosamente nada. Esse agradecimento representou o reconhecimento do trabalho produzido pelas equipas que dirigi, liderei. E assumo que liderei, porque não faço gestão de equipa.

Mas assume-se como um histórico da PJ?
_Se quiser assim. Tenho consciência que para muita gente da PJ, eu diria – passo a imodéstia – para os melhores, represento uma certa forma de entender a investigação criminal. Não como uma atividade bisonha, triste, reativa, que é um frete. Mas algo dinâmico, descomplexado, e sublinho descomplexado, isento, objetivo e independente de qualquer poder. Se assumirmos isso, os olhos brilham-nos. Trabalhei com a maior parte dos investigadores da PJ, a única coisa que lhes pedia era que enquanto me vissem um brilho nos olhos acreditassem e fossem comigo. E tive essa sorte. Por outro lado, os tempos são outros, com a velocidade das coisas, as memórias perdem-se com relativa facilidade. Se calhar, a hipotética crise que se atravessa na investigação criminal, na PJ em particular, resulta um pouco da diminuição dessa memória histórica que teve a ver com uma alteração profunda nos últimos anos, quando entrou muita gente nova.

Da falta de referências?
_Mais do que falta de referências pessoais, as de uma certa cultura que existia na PJ. Veja-se, a PJ foi sedimentando uma cultura, ia sendo acrescentada com poucos elementos de cada vez, que eram devidamente integrados. A partir de 2000, sobretudo, há talvez uma crise de crescimento que resulta na incorporação de cursos bastante alargados e que coincidiu com a saída de bastantes pessoas. E isso fez com que não houvesse essa possibilidade de absorção de tudo o que é a PJ, porque a PJ é muito mais do que um mero órgão de investigação criminal.

Isso era a sua PJ?
_A PJ que temos, naturalmente, é diferente. Tem-se vindo a adequar. Também não se pode exigir às pessoas que vivam a PJ e a investigação criminal como se vivia noutras alturas, a realidade é diferente.

E os crimes? São os mesmos ou diferentes?
_É uma realidade completamente diferente. O país evolui muitíssimo e as formas de criminalidade acompanharam essa evolução. Quando entrei para a PJ, há cem anos como costumo dizer, o crime por excelência era o furto e o roubo. Os homicídios eram os três As, o amor, o álcool… já não sei qual é o outro A, mas anda por aí. Depois, aparece a droga, tráfico interno. E entretanto, com isto vai aparecendo o crime económico.

Vai aparecendo ou vai sendo conhecido?
_Vai sendo conhecido, é evidente, mas também vai crescendo, porque se a economia vai crescendo, o crime económico é indissociável. E com novas formas de crimes. São crimes da moda também. Aparece o crime económico e depois aparece o terrorismo.

Vamos aos seus casos mais complicados. Mais mediáticos.
_Não gosto dessa situação, sabe porquê? Depois do prazer de fazer uma investigação, vem um desprazer enorme com todas as circunstâncias laterais que se geram à volta. Muitas vezes, desvirtuadas. Procura-se esse mediatismo. Mas eu não gosto. O taxista fala de uma coisa de manhã e à tarde há uma reação.

Mas o seu nome fica ligado a alguns processos complicados, pelo menos para a opinião pública, desde o «Aveiro Connection», passando pelo Pedro Caldeira e acabando, obviamente, no «Apito Dourado» e no «Face Oculta».
_Houve outros complicados. O processo do pelotão de segurança do Porto foi muito complicado. Tive milhares de processos. Tenho consciência que as minhas equipas foram das primeiras a confrontar-se com algumas realidades. Não vamos chamar mérito a isto, é a evolução que coincidiu temporalmente comigo nas situações. No «Aveiro Connection» foi a primeira vez que não estamos perante um simples caso de contrabando de tabaco, é uma situação de corrupção generalizada nas forças policiais, na Polícia Marítima, na Guarda Fiscal e na Capitania. Apareceu o corporativismo naquilo que menos bom tem o corporativismo. Mas as equipas que liderava não vacilaram. Porque hierarquia tinha absoluta confiança em nós.

Isso mudou, essa confiança? Quando? Em que processos?
_Estou-me a referir às primeiras hierarquias porque era delas que tinha uma maior dependência. Depois fui ganhando algum espaço. Apareciam coisas novas, pouco comuns, mas não olharmos para o lado. Em Aveiro, pela primeira vez, foram apreendidos prédios completos porque não respeitavam as regras da boa construção, um crime novo. Naquela altura foi uma singularidade, uma excentricidade quase. Naturalmente, quanto mais e melhor se trabalha mais situações chegam ao nosso conhecimento. Recebíamos notícias de factos mais ou menos delicados de várias partes do país, pessoas que queriam dar conhecimento àquelas equipas, àquele departamento.

E lidar com o protagonismo dos próprios suspeitos, era tão ou mais difícil que a própria investigação?
_Nunca me preocupou. Não ligava muito a isso. Tinha um grande respeito por todos os intervenientes processuais, seja o da mais modesta condição social, seja da mais elevada. É evidente que só se fosse um leviano é que não via que, nalgumas circunstâncias, daí viria outro tipo de dificuldades… E até 2004…

Até ao «Apito Dourado»?
_Até 2004 não tinha nenhuma razão para não acreditar que as coisas são assim, funcionavam assim.

Li algures, que o «Apito Dourado» foi o processo com o qual diz que perdeu a inocência.
_É verdade. Nunca me passou pela cabeça… Sempre transmiti às pessoas que estavam comigo para que não se preocupassem. Que era impensável que alguém nos pudesse querer fazer o que quer que seja, porque nem se atreveriam a tal. E olhe, as circunstâncias falam por si… O sermos despedidos se calhar foi o menos… O que se passou foi feio, foi das coisas mais feias… Nem consigo encontrar um adjetivo para qualificar o procedimento ou o processo que levou à nossa saída.

Responsabilidade apenas da hierarquia de então?
_Também teve a ver. Mas, como foi dito, por vontade do poder político. Depois vem por aí abaixo.

Foi o poder do futebol? Não tinha a noção desse poder?
_Tínhamos. Mas o problema ali não foi o futebol. Foram as implicações de pessoas que estariam ligadas aos vários poderes, nomeadamente ao político, em tudo aquilo. E a necessidade enorme que alguns responsáveis tinham em saber o que é que se passava na investigação. Até aí, o poder político, pelo menos que eu me apercebesse, independentemente de pessoas mais ou menos próximas serem tocadas, nunca tinha ultrapassado aquela linha. Aqui não! Ultrapassou-se tudo. Disseram-me claramente, «até às tantas horas, tem que se saber quem são as pessoas e o grau de envolvimento». Eu ri-me.

_Conta-se que na lista das buscas colocou alguns nomes no fim para que ninguém se apercebesse. Isso é uma história ou foi verdade?
Não foi assim. Nem tive um peso tão grande na investigação do «Apito Dourado» como tive noutras. Tinha as equipas de vigilância comigo e a partir da morte do Fehér há uma situação particular na investigação que dá o salto e aí é que, juntamente com os outros elementos da direção, tivemos que tomar uma opção de estratégia a seguir. E a opção foi não comunicar à hierarquia o que se estava a passar. Se nós cumpríssemos com esse dever de lealdade que nos era exigido, então o diretor nacional da PJ teria também que ter o mesmo dever para com a ministra da Justiça e lá ia tudo, como sói dizer-se em linguagem policial, com os ciganos. Mas nunca me passou pela cabeça o que se seguiu… Quer dizer … pressentia-se qualquer coisa, mas aquilo?! A grande vítima foi o Dr. Artur Oliveira.

A história do pai e do irmão serem investigados em Coimbra por burla na Caixa Agrícola?
_Investigados?! Um processo que já estava mais do que encerrado, ressuscitou-se, fazem-se buscas com aparato e tudo mais para justificar o que iam fazer!!! Não se faz!

Ele, diretor, demitiu-se. Vocês, adjuntos, solidarizaram-se… Esperava ser reconduzido? Não acha que foi de alguma ingenuidade?
_Rejo-me por princípios. Perdi a inocência nesta coisa porque apesar de já ter muita experiência disto há limites. Adivinhava o que se estava a passar, ele não era o alvo. Por isso é mais lamentável ainda o que lhe foi feito. Houve pessoas, n pessoas, que me disseram «não ponha o lugar à disposição, não faça isso, obrigue-os a ser eles a tomar a atitude». Mas por uma questão de ficar bem comigo… Tenho três regras, a Constituição, as leis e a ética.

Os alvos eram vocês os dois, você e o João Massano?
_Éramos. A partir daí…

E a causa era o «Apito Dourado»?
_A causa não era o «Apito Dourado», eram os poderes entenderem que não podia haver uns cidadãos, embora com responsabilidades policiais, que não lhes respondessem àquilo que eles queriam saber.

As pressões chegaram-lhe diretamente a si?
_Ao Dr. Artur Oliveira, porque era mais fácil, Mas ele também nunca vacilou. Punha-nos as questões e eu tentava tranquilizá-lo, aconselhava «diga-lhe que não sabe». «Ah, mas então pergunte ao Teófilo». E eu, «o Teófilo diz que não lhe diz». Passámos de bestiais a bestas em menos de 15 dias, só no futebol é que acontece com essa frequência. Exatamente quando, sabe-se lá porquê, algum poder político começou a ficar incomodado com eventuais conhecimentos laterais, fortuitos como agora se diz, relativamente a todo o conjunto da investigação. Foi um processo feio. Não era preciso chegar àquilo. E eu aí, de facto, comecei a ver que a vida não era como a Teresa escolhia nas cartas.

E entre esse processo e o« Face Oculta», recentemente, que acabou por envolver o então primeiro-ministro, qual foi o mais complicado?
_Todo os processos são complicados. Todos têm a mesma atenção. São situações complexas, mas desde que saibamos que estamos a trilhar o caminho certo, tudo bem. Nesse processo, o «Face Oculta», o que me chocou e ainda hoje me considero injuriado, eu e as pessoas que trabalharam comigo, foi haver pessoas que, aproveitando tribunas públicas, se permitiram dizer com a maior impunidade que tinha sido feita espionagem política. É uma acusação absolutamente inaceitável. A injúria resultante de algumas afirmações proferidas por pessoas com grandes responsabilidades foi para nós um grande problema, porque não pudemos responder à letra como mereceriam. Espionagem política?! Nunca, em circunstância alguma, houve qualquer intuito de natureza política. Por alma de quem?

Por estar um primeiro-ministro envolvido? Pelo processo paralelo, com as restrições que se conhecem?
_Foi um conhecimento fortuito. E que fique bem claro, não houve nenhuma escuta ilegal. Houve conversas telefónicas que não foram validadas, é completamente diferente. A ilegalidade implicava necessariamente um ilícito, um crime. Não foi assim. No âmbito de investigações relativamente a uma rede organizada de tráfico de influências, corrupção e outros crimes, aparece uma outra situação. Havia um plano de controlar os órgãos de informação que corria lateralmente. Não podíamos olhar para o lado. Estava a ser gizado e concretizado um plano que tinha por fim o controlar a comunicação social no geral, nomeadamente a que era menos favorável ao poder de então. E, no meio disso tudo, que já não era pouco, aparece de forma fortuita um cidadão, que na altura era primeiro-ministro, a falar.

Defendeu sempre que esse processo fosse investigado em separado?
_Tinha que ser! Depois, o resto são as mistificações, esse arrazoado de pessoas com grandes responsabilidades a intervir, que me leva a crer que não estavam de forma tão bondosa assim, porque tinham obrigação de saber de todo o formalismo que isso implicava. Concretamente foi assim: houve um acumular de situações paralelamente a esse plano, e não sou eu que estou a dizer que era um plano, os próprios envolvidos diziam e explanavam a maneira como iria. A partir do momento em que aparece o cidadão que na altura era primeiro-ministro, isso implicou um formalismo próprio. Agora diz-se, «as conversas deste e tudo o mais, não têm interesse nenhum». As conversas têm interesse, como toda a gente sabe, contextualizadas. Aquele processo era uma amostra do país que somos. Mas a partir do momento em que o senhor primeiro-ministro, seja ele qual for, goza de uma prerrogativa que só pode ser investigado pela Relação e só podem ser autorizadas eventuais instâncias telefónicas pelo Supremo…

Pelo presidente do Supremo…
_Não é assim. Tenho um entendimento diferente. Acho que é pelo Supremo. Mas logo que apareceu essa situação não havia outra coisa a fazer, até porque o prazo é curto, foi autonomizar imediatamente a situação, mandar para validação e investigar. Porque investiga-se quando há indícios, não é quando há certezas. E tudo apontava já para estar em marcha um plano ilegal do ponto de vista criminal. Fiz uma participação, em que disse que no âmbito da investigação em curso havia uma situação que era suscetível de vir a configurar ilícito, um plano concertado, com objetivo definido para controlo dos meios de comunicação social. O Ministério Público de Aveiro acolheu, o juiz acolheu. O fundamento eram as escutas telefónicas. A conversa que apareceu, de forma fortuita, juntamente com as outras gravações, porque não podia ir desintegrada. À medida que iam aparecendo outras mandávamos certidões para serem incorporadas. Estive convencido, eu e todos os que trabalhámos naquilo, até outubro, que havia uma investigação. Ninguém nos dizia nada, ninguém tinha que nos dizer nada. Depois, vem a história absolutamente rocambolesca, às pinguinhas, com cassetes, um arrazoado sem ponta por onde se lhe pegue, impróprio de pessoas que ocupavam lugares de grande responsabilidade pelos quais tenho grande respeito, umas confusões danadas. Mas são confusões procuradas, não resultaram de qualquer procedimento impróprio da investigação.

A investigação foi acusada de fazer justiça na praça pública por não conseguir provas legais e concretas?
_Isso seria um contra-senso, sabe porquê? Estivemos a investigar aquilo durante dois anos e ninguém soube de nada. E no momento mais crítico, que foi o das eleições, elas decorreram sem que ninguém soubesse coisa nenhuma. É estúpido, porque se alguém descesse tão baixo para pensar que podíamos ter intuitos de natureza política, então evidentemente teríamos aproveitado o momento certo em que aquilo poderia representar algo de bastante significativo. A lei obriga a que nos mandados de busca se digam os factos. E só nesse dia é que se começou a conhecer a situação, por causa dos mandados, que apareceram na televisão. E também está mais que demonstrado quem é que entregou isso ao vosso colega, que fez o trabalho dele. Nesse dia tornaram-se conhecidos quais eram os alvos. A seguir começaram os interrogatórios e toda a gente teve acesso aos factos, às escutas e s tudo o mais. Fiz, já não me lembro de quantas participações por hipotética violação do segredo de justiça. Embora ache que só há violação do segredo de justiça se aquilo que é dito corresponder à verdade… e até cheguei a ler que tínhamos utilizado os meios da Mossad ou coisa assim, coisas do outro mundo. Quem é que fala para a imprensa? Toda a gente! Toda a gente menos os polícias e possivelmente os magistrados…

Os polícias não falam?
_Não posso responder, eu não falo normalmente.

Essa é a política da PJ? Às vezes não se usam os media?
_Houve alguma coisa que não me agradou, até o simples comunicado teve resistências na forma como esteve para sair. Começaram a aparecer muitas notícias, houve advogados dos arguidos que deixaram de o ser passados dois dias. Há pessoas que gostam de estar envolvidas neste tipo de processos, de serem conhecidos. A partir de certa altura, têm uma estratégia. Escrevi isso no processo. Entendi que devia acabar o segredo. Porque é muito fácil dizer que quem viola o segredo de justiça são as polícias, os magistrados, mas o intuito, neste como nos outros casos todos, é desviar as atenções das verdadeiras questões criminais que estão em equação. Levanta-se uma discussão enorme a propósito do segredo de justiça e o essencial passa ao lado. A investigação é a que mais fica prejudicada. Além de ser sempre perturbador, cria expetativas que depois não são suscetíveis de ser concretizadas. Enche-se voluntariamente o balão.

Por isso é que defendeu que não houvesse segredo de justiça nesse processo, para se perceber realmente o que estava em causa?
_Sim, para se ver o que era aquilo! Não é só aquilo que está a ser julgado. Ali está o espelho de um país, repito.

Acha que há demasiado uso do segredo de justiça nas investigações criminais?
_O segredo de justiça justifica-se, a meu ver, enquanto nada se torna conhecido. Enquanto se investiga… A partir do momento em que, pelas circunstâncias muitas vezes decorrentes da própria necessidade de fazer ações que se tornam públicas, para a própria transparência e para que não haja lugar a especulações nem arcas encoiradas, o melhor é acabar-se com o segredo de justiça.

Mas não acha também que se usam os meios de comunicação, entre outras coisas, para tentar chegar mais depressa aos alvos do que a própria investigação lá chegaria? Às vezes de forma justiceira?
_Não me parece.

A justiça é muitas vezes acusada de se fazer na praça pública, quando não consegue obter a prova através dos seus próprios meios.
_Porque partem de uma premissa errada, a de que os investigadores são justiceiros.

Não são?
_Não são. Não somos. Nunca tivemos esse intuito. Agora uma coisa é não ser justiceiro, outra coisa é condescendência, resignação. Espero com toda a tranquilidade do mundo o resultado dos julgamentos. Dos processos em que estive envolvido e que vieram para a praça pública a mais prejudicada foi a própria investigação e a imagem dos polícias e dos magistrados. Nós somos o que somos. Eu não tenho jornalistas amigos, mas tenho amigos que são jornalistas. E por via disso, não raro, têm que ouvir todas as minhas indisposições relativamente a certas notícias, para além de, manifestamente, a cause, não serem minimamente beneficiados. Neste processo, conhecido por Face Oculta, por várias vezes manifestei quase indignação porque estavam a ser dadas notícias para serem desmentidas no dia a seguir…

Eram intencionais? Por parte de quem?
_É deselegante fazer suposições quando se tem certezas. Qual era o benefício? A partir do momento em que os factos eram absolutamente insuscetíveis de ser rebatidos, entendeu-se criar um ambiente desvalorizador da investigação. Levantaram-se suspeições sobre os investigadores, para o que chamo “atabernar”, ajavardar, a investigação, com pequeninas coisas quase anedóticas, para apequenar. É assim que em Portugal se tentam fazer as coisas.

E isso parte de quem?
_Dos interessados, manifestamente, da defesa dos envolvidos. Não sei se os seus advogados, se os próprios arguidos. Uma investigação que aparece sólida, sofre depois toda uma tentativa de a fragilizar. Não sei a quem interessou, mas de certeza que não foi ao Ministério Público e à acusação.

Sente que em muitos desses processos em que esteve envolvido ficaram culpados por punir?
_Sinto. Há um problema: em Portugal as certidões não são libertadas. As certidões passam pelo país, é como se fossem enteados, não são filhos. As leis processuais assim o obrigam. Mas tenho a perceção que depois não têm a mesma atenção que teriam se fossem aqueles que inicialmente investigaram a dar-lhes andamento. É uma crítica que também aplico a mim próprio.

Fala do caso envolvendo José Sócrates…
_Caso de José Sócrates? Não, o cidadão não teve nenhum caso.

Insiste que, apesar de o Supremo ter não considerado válidas as escutas em que ele intervém, deviam ter sido válidas para um processo paralelo?
_Esse foi o meu convencimento e continua a ser. Não é por teimosia. Havia, há, claros indícios de que estava em marcha um plano de controlo de meios de comunicação social. O objetivo concreto era eliminar órgãos hostis. O cidadão que na altura era primeiro-ministro tinha manifestamente conhecimento. Não se investigou se orientava, dirigia ou era mandante, mas apenas que tinha conhecimento e de que esse objetivo era perseguido. Só a investigação poderia confirmar o resto. Através de mim, porque elaborei a participação, o Ministério Público e o juiz decidiram que havia matéria bastante para se proceder a essa investigação. E no interesse de todos, inclusive os eventuais envolvidos, se calhar tinha sido muito melhor que se apurasse tudo até ao limite. Havendo uma participação criminal não percebo como não houve investigação. Se não houve, nós cometemos um crime, eu cometi um crime. Se foi assim tão linear que aqueles elementos que eu considerava indiciários não tinham valor, e portanto não passavam de uma diatribe minha, a lei prevê que o denunciante seja demandado criminalmente. Nós sentimo-nos, e digo nós porque é o sentir da equipa toda que investigou, de tal maneira vilipendiados, injuriados com as insinuações que foram feitas a interesses ocultos da nossa parte, que, formalmente, comuniquei à direção nacional da PJ que face àquilo que estava a ser dito, a perseguição, a espionagem política, só poderia haver duas situações: ou que a tutela viesse repor a verdade dos factos, ou que em alternativa se procedesse de imediato a uma investigação à investigação.

Coisa que não aconteceu?
_Não tive qualquer resposta.

Depois de ter perdido a inocência com o «Apito Dourado», o que é que perdeu com o «Face Oculta»?
_Desacreditei. E comecei a questionar se valia a pena.

Mas em quê? No sistema, no seu trabalho?
_No sistema. No meu trabalho não, nem nas minhas equipas. Os cidadãos, independentemente dos nossos estados de alma, exigem que continuemos. Mas a verdade é que fui perdendo brilho nos olhos.

Mas deixou de acreditar em quê?
_Quando falo de desacreditar, não foi deixar de acreditar. Comecei a perder algum entusiasmo. Desde miúdo que acreditava muito nalgumas coisas, instituições, figuras… Eram quase sagradas. E quando começo a não acreditar naquilo em que tenho que acreditar, por ser um trabalhador da justiça, tudo isso me levanta questões. A investigação criminal tem que ter alma, não é só técnica. Sei que há pessoas que acreditavam e acreditam na PJ, na investigação, no Ministério Público, agora, missionários nós não somos. Dizia “às vezes sinto-me um imbecil útil”. Mas, volto a dizer, faríamos tudo da mesma forma, porque fizemos bem.

Sai agora… Por causa do «Face Oculta» ou do caso do estripador que corre menos bem?
_Isso nem caso mediático é. Só porque alguém resolveu chamar-lhe «o estripador de qualquer coisa». Para nós, PJ de Aveiro, o que estava em investigação era uma situação de um homicídio ocorrido há dois anos, ali, em Aveiro. Em que havia um cidadão que tinha dito ser o autor e, curiosamente, por coincidências dir-se-á, sabia mais pormenores do que os investigadores. Num quadro destes, não me parece como é possível não ter de se investigar. A própria Relação, agora, apesar de negar o recurso do Ministério Público, veio dizer com todas as letras que a dúvida subsiste.

Mas quando tomou conta desse caso do estripador…
_Do estripador não, do senhor José Guedes.

Com aquela chama de polícia, não pensou «querem ver que tenho aqui de facto o estripador de Lisboa que nunca ninguém apanhou»?
_Não, não. Antevi logo uma série de problemas. A experiência também conta.

Este combate à corrupção, à criminalidade económico-financeira, é o sector onde mais se destacou. Acha que é mesmo esta a área que vai continuar a ser crucial no futuro da investigação criminal?
_Tudo aquilo que mexe com a economia, com os dinheiros e com uma sociedade mais transparente e mais livre é prioritário. Porque muito daquilo que estamos a atravessar agora é resultante de práticas impróprias de pessoas com responsabilidades. E uma sociedade só é mais justa quando este tipo de situações, destas envolvências, em que o benefício de uns é o prejuízo de todos, for combatido. É um dever de cidadania e deve ser um objetivo das autoridades.

E é necessária alguma preparação própria ou formação especial para o crime económico?
_É preciso saber, naturalmente. Saber é sempre importante. Fala-se muito em corrupção em Portugal, fala-se muito no combate ao crime económico, mas depois não se é muito consequente. Gastam-se as palavras em Portugal. Um polícia de grandes méritos, o Tomé Afonso, dizia-me «ó doutor, gasta-se tudo em preparativos, como a feira de Mirandela». Passamos o tempo com as dificuldades, a complexidade, a discutir. É preciso saber, muito saber. Mas, sobretudo, é preciso vontade.

Portanto, não é preciso ser especialista em economia para investigar crimes económico-financeiros?
_Não me parece. Um bom investigador investiga bem crime económico. Se calhar, até, de uma forma mais solta. A investigação não é instrução, investigar é muito mais do que instruir. É procurar, é algo dinâmico, criativo. Criativo, não inventivo. É juntar, é compor. É importante saber, mas é necessária determinação, vontade e coragem. E a coragem não é valentia!

Mas também é importante um bom Ministério Público?
_Não há bons Ministérios Públicos, há competentes. Tive sorte, sou um homem com sorte. Mas a sorte também se conquista. O Ministério Público e os juízes, a única coisa que me exigiam era fiabilidade. E não era pelos meus lindos olhos. Iam verificando que lhes dava fiabilidade e eles podiam-me dar confiança, sem promiscuidades, porque as coisas não sempre foram pacíficas. Eram rijas! Mas nunca houve confusões, cada um sabia perfeitamente o seu papel. Às vezes dizia-se «aquele juiz que é porreiro» e começava logo a andar para trás, porque não quero porreiros. Ficamos todos muito mais tranquilos, muito mais seguros, quando cada um sabe do grau de exigência que o outro tem. Exigente, mas corajoso. Quando o Ministério Público dizia que eu era insuportável, devolvia-lhe às vezes a bola. Mas depois de tomada a decisão, é de todos, não há tibiezas.

E na investigação aos crimes de colarinho branco há falta de meios, há falta de dinheiro ou há falta de coragem?
_Se a vontade é aquilo que se apregoa, há muita vontade. Falta de meios, há sempre. Coragem, umas vezes parece haver, outras vezes suscita-me dúvidas, mas quem está de fora racha lenha e não sei o que se passa nas outras investigações. Mas entendo, é uma opinião muito pessoal, despreconceituosa, que há que alterar o sistema de investigação.

De que forma?
_Sei que isto poderá parecer polémico, mas na discussão entre centralizar, a que chamo concentrar, e desconcentrar a investigação, há maiores méritos na desconcentração. Deve-se centralizar a informação e a direção, desconcentrar a investigação. É a patamarização de decisões, por um lado, e por outro a interpenetração de investigações. No mesmo departamento, ninguém de per si toma uma decisão isolada, é suscetível de ser sindicado por vários patamares, que permite um controlo, aquilo que escapa nuns é apanhado por outros. Não sou um adepto fervoroso das direções centrais. Parece ironia, porque estive nas direções centrais, mas tentei, apesar de tudo, que este modelo funcionasse. Há uma melhor racionalização de meios, permite que não haja uma acumulação de investigações, e permite ainda criar alguma instabilidade, que é bom, não há coisas absolutamente seguras. Permite também que não haja tanta atenção mediática sobre um departamento, tanta pressão. Visões diferentes com um denominador comum, que é a direção. E não há aquele atafulhamento, se a expressão é permitida, de processos, que são sempre uma boa desculpa. Estamos numa época em que o dinheiro está muito caro, e é possível, sei que estou a meter a foice em seara alheia, fazer melhor.

Neste momento, acha que com o atual modelo, há gente a escapar por a malha não ser mais fina?
_Não sei se é pela malha. O problema do crime económico é que… a maior parte das vezes não dá grande gozo. É como um médico estar a fazer autópsias. As coisas já têm anos, não existe ali vida para salvar, estão mortos, mais um mês morto, um ano, não há problema. Por via disso…

Não é como os crimes de sangue?
_Não, nem como outros do dia-a-dia, mais emocionantes. Mas, se calhar, os cadáveres estão menos tempo por autopsiar se forem desconcentrados. Com os atuais meios, o diretor pode estar permanentemente em contacto com as pessoas com quem trabalha! E pode não parecer politicamente correto, mas não vem mal ao mundo haver elitização. Nós não somos todos iguais, uns são melhores que outros. A mediocridade é onde se refugiam os mais fracos. O problema da centralização é a técnica do garrafão: basta cortar o gargalo, nem entra, nem sai.

Acha que a sua carreira é uma espécie de montanha russa?
_A minha vida, talvez. A minha carreira, nem tanto. Nem nunca me achei muito em cima, mas também nunca me achei muito em baixo. Aliás, quando, porventura, me meteram mais baixo, era quando me sentia mesmo mais em cima, porque eu não viro as costas a uma boa… posso sentir-me injuriado, mas…

Ia perguntar-lhe isso, alguma vez se sentiu injuriado? E injustiçado?
_Injuriado, sim! E injustiçado. Sobretudo quando não posso responder!

Quando foi nomeado para oficial de ligação com Cabo Verde, depois de ser demitido da direção do Porto, foi um desses momentos?
_Até tenho aí o papel onde escrevi, exatamente nesse dia, o que é que foi acordado. Acho isso fantástico. O meu despedimento, qual demissão! Fui despedido, pura e simplesmente. Foi-me dito, na cara que nunca mais chefiaria ninguém e que havia de passar o tempo a passear o cão em Espinho. Assim. Num gabinete.

Do diretor nacional?
_Sim, do diretor nacional. E não, não perdoo, não estou aqui para perdoar…

Estamos a falar de Adelino Salvado.
_Se calhar são mais censuráveis os procedimentos de outras pessoas. Porque daquele tipo de personalidade já esperava tudo, espero tudo. Disse-me coisas absolutamente… que eu era um indivíduo poderoso, tinha todo o mundo por mim, mas que com ele nunca mais chefiava nem um homem, que havia de passar o meu tempo a passear o cão. Aquilo foi surrealista. E essas são as partes gagas…

Foi o seu grande primeiro momento de choque com as hierarquias da PJ?
_Foi perder a inocência. Vim para aqui também [Espinho], mais uma vez, refugio-me sempre ao pé do mar, quando estas coisas acontecem. Ninguém mais me passou cartão, andei para aqui. Encontrei o papelinho onde rascunhei o que se disse. E não foi encontrada outra solução que não fosse aceitar ir para Cabo Verde.

Mas chegou a ir?
_Estive lá pouco tempo. Quando cheguei, sozinho, perguntei-me: “Mas por alma de quem? Não fiz mal a ninguém”, e então disse ao cidadão que fizesse o que quisesse, eu regressava. E regressei. Por acaso, coincidiu com a saída dele.

Teve outra polémica mais recente, aquela carta de que foi autor com José Braz com críticas fortes aos poderes de outras polícias?
_Criticávamos, e criticamos, a confusão gerada em Portugal relativamente à investigação criminal e à forma como é conduzida. Não retiraria, hoje, uma vírgula. As pessoas da Polícia de Segurança Pública e da GNR que me conhecem sabem o respeito que lhes tenho. Mas entendo que cada um deve fazer aquilo que lhe compete e fazer bem. Não foi uma carta, foi um artigo de opinião, temos direito a ele e até foi uma exigência de cidadania, porque nós éramos assessores.

Continua a achar que existe desorganização entre as várias forças policiais?
_Acho. As polícias não devem atuar conjuntamente, devem atuar em complementaridade, porque conjuntamente é uma barafunda que ninguém se entende. Continuo a acreditar que a investigação em Portugal devia ser entregue só à PJ. Porque é a sua natureza, está estruturalmente organizada assim, tem uma cultura nesse sentido e tem os saberes e a experiência. Discuto isto longamente, há muito tempo, e não consigo conceber um prédio com andares de luxo a partir do quinto andar, se até lá não há nada. Tem que haver escadas! Não se pode investigar fenómenos criminais sem conhecer a realidade.

Essa é uma das críticas que hoje fazem à PJ, de que perdeu a informação de rua.
_É verdade. Houve um período de grande indefinição sobre o que se pretendia que fosse a PJ. Houve alguém que em determinado momento histórico pensou que a informação são bases de dados e isso não é nada, são armários, são gavetões fechados. A informação anda aí, anda no ar, é preciso recolhê-la. Essa é que conta para a investigação, a outra é para a instrução. Mas pensaram criar uma PJ ao estilo do FBI, uma estupidez. Pensaram que tendo a PJ a informação, depois tinha os seus inspetores licenciados que poderiam dar e prestar auxílio. Mas é preciso conhecer a vida e a vida conhece-se na rua. Os computadores são muito bons, ajudam muito, são imprescindíveis, mas a investigação criminal é uma atividade dinâmica com a realidade.

E o facto de haver tutelas diferentes no próprio Governo também prejudica?
_A tutela? Não vejo como. O problema é outro. Houve uma altura em que fiz as contas e eram cerca de 6500 a 7000 cidadãos a fazer investigação criminal em Portugal. Menos de mil são da PJ. Há todo um universo de crimes, os de de massas, como uns lhes chamam, eu chamo-lhes carreteiros, coisas de pequena importância. Mas tudo junto é que dá o conhecimento. Se não é como subir uma parede lisa sem ter onde se apoiar. E aquelas pequeninas protuberâncias é que nos dão apoios. Se houvesse coragem e vontade política era possível, num primeiro momento, agregar à PJ uma parte considerável desses meios que neste momento estão noutras forças policiais, criando uma espécie de inspetores-adjuntos, mantendo primeiro a mesma remuneração, mas possibilitando-lhes subir, ascender na carreira. Podiam até, parte deles, estar junto aos DIAPs, mas ligados à PJ através da sua hierarquia.

Acha que há uma competição, uma necessidade de mostrar serviço?
_Isso é ridiculamente verdade e tem prejuízos grandes. A necessidade de resultados imediatos nem sempre leva às melhores investigações e depois gastam-se as munições quase todas no imediato. Mas não estou a ver como é que entidades tão diversas podem competir! Cada um tem objetivos diferentes, é tudo muito artificial, é tudo fast agora.

Mas isso não é uma consequência da globalização, de um mundo mais fast como lhe chama?
_E eu respondo-lhe: mal da PJ quando andar a toques.

O show off de buscas e televisionadas…
_Prefiro não falar disso. Aquelas que a PJ de Aveiro fez não foram. É uma realidade diferente, com que tem que se viver sim, mas não se pode viver em função disso. Uma coisa é viver com a mediatização, outra coisa é viver-se em função da mediatização.

Mas com este mundo tão globalizado é possível manter investigações em segredo durante muito tempo?
_Não é fácil, mas ainda é possível. Nós blindámos uma investigação durante mais de dois anos. A melhor forma é que as equipas sejam muito ciosas e tenham uma auto-estima em alta.

Insisto: a PJ, tal como o Ministério Público, são às vezes acusadas de aproveitarem os media para fazerem a justiça que não conseguem fazer pelos meios próprios?
_Até já ouvi dizer que mais vale uma primeira página de um jornal do que um acórdão. Volto a dizer: não podemos fazer de conta que não existe, não temos é que viver em função disso.

Mas podem-se usar os media para ajudar na investigação?
_Usar sim, abusar não. O problema é se se trata de um relacionamento sério ou promíscuo, e isso confunde-se muito. Se cada um souber os limites daquilo que pede e o outro lhe pode dar, está tudo bem. A promiscuidade é se houver interesses menos próprios, isso é que já não. Há situações em que a colaboração da imprensa e das televisões é importante. Antes de se iniciar a investigação, às vezes é bom aproveitar para colher a informação. Depois é desleal. Ser a investigação a conduzir ou a tentar conduzir os media para determinado fim é pouco ético, é inaceitável. Diferente é se estamos perante uma situação de vida. Quando há pessoas em risco, tudo é válido para salvar as pessoas.

Acha que não existe mesmo um plantar de informação, para tentar…
_Acho que isso é promíscuo. Nem sequer digo que é demasiado arriscado porque nem sequer me passaria pela cabeça.

Ainda se lembra do primeiro caso que investigou?
_O primeiro, não sei se é mesmo o primeiro, mas com relevância foi uma situação que me serviu de experiência. Tivemos uma informação de que numa estação de serviço na estrada Coimbra-Leiria estava um casal que teria na mala do carro pratas e outros valores furtados. Até sei o apelido. Arrancámos logo, chegámos a tempo e montámos um esquema… Primeiro erro, não os abordámos quando o carro ainda estava parado e a situação era controlável. Deixei, a responsabilidade foi minha, o carro em movimento e o carro onde eu ia ia encostar-se a mandar parar, com a pistola na mão. Era pai e filha, há um momento em que ele se baixa bruscamente e se levanta com uma coisa na mão e carrego no gatilho. A arma não disparou. Tive muita sorte porque ele não foi buscar uma arma. E eu tinha a perceção absoluta que sim. Nesse dia aprendi várias coisas.

Teve de disparar a arma muitas vezes?
_Não. À séria, tive três situações em que houve troca de tiros.

E alguma vez correu perigo de vida?
_Numa delas sim, num acampamento da Pedra Branca. Aquilo ficou um bocado complicado, com toda a gente a disparar, havia fogo cruzado, que é terrível. Houve uma outra situação também em que, era eu mais dois investigadores, rebentou-nos uma bomba artesanal a 20 metros, tivemos uma sorte incrível. Era uma bomba suja e ao ser projetada ficou inclinada numa direção e os pregos foram lançados noutra…

Qual foi o momento mais doloroso que viveu na PJ?
_A morte do João Melo [inspetor da PJ abatido a metralhadora em 2011 numa perseguição].

O mais alegre?
_Todos os dias. Gosto tanto daquilo, que todos os dias era um divertimento… Foi o ter perdido essa alegria, essa vontade de todos os dias ir para o trabalho, que me levou a dizer que era tempo.

Então, vamos por aí: com tanta falta de meios, porque é que decide reformar-se ainda relativamente cedo?
_Não me reformei. Passei à disponibilidade. Queria responder pela positiva. Apesar destes anos todos, destas vivências, também já com menos capacidades físicas porque não dormia, fazia as coisas com gozo, prazer. Sei que me repito, mas só se consegue investigar de forma dinâmica, descomplexada, isenta, independente, contra todos os poderes constituídos, ir à procura. E tenho dificuldades, por circunstâncias exteriores, mas algumas internas também, em aceitar que a investigação se tenha tornado tristonha, um pouco bisonha, resignada, conformada. Muito cinzenta.

Já há dois anos tinha feito este pedido e tinha-lhe sido recusado.
_Sim, porque há coisas que são o limite para mim. A partir daí, para mim, acabou. Não quero falar, nem falo de direções. Nem vale a pena perguntar-me pelo meu relacionamento com esta direção, respondo que pura e simplesmente não tenho relacionamento nenhum, inexistia. Nem era bom nem era mau, era inexistente há mais de dois anos. E eu sentia que não tinha brilho nos olhos, tinha grande dificuldade de exigir porque não tinha nada para dar. Aguenta-se enquanto se verifica que é possível alterar as coisas. Mas as pessoas também se cansam e desgastam-se.

O que é que vai ser agora na PJ?
_Na PJ, nada. Sou assessor, continuo a ser assessor de investigação criminal.

E não gostava de dar aulas?
_É preciso que quisessem. Há dois anos que ninguém me diz, saí da PJ sem uma palavra, a não ser dos amigos. Não há arcas encoiradas para mim.

Quais foram os casos em que sentiu que tinha dado um contributo importante como inspetor, tinha feito verdadeiramente a diferença, tinha feito serviço público?
_Em quase todos. Sou vaidoso na polícia. O que me fez vaidoso, muito mais do que o crachá de ouro, foram outras coisas, como uma carta escrita por uma miúda que prendi por homicídio. Homicídio feio, muito feio. Enviou-me um postalzinho a agradecer, por lhe ter mudado a vida. São estas coisas que compensam. Recuperar crianças ou pessoas que estão sequestradas, ver o desenlace. Muita gente fala em polícias como indivíduos que devem ser doentes, ter uma panca danada, mas longe disso! Têm sentido de dever e de ética. E são corajosas. Lidei com gente boa. Curiosamente, os mais duros, são uns lamechas. Somos uns lamechas.

Porque viveram situações-limite.
_De limites, exatamente. Por isso é que me sinto injuriado com algumas coisas, porque o único património que tenho é o meu nome. E uma forma de ser e de estar na vida, que é da investigação criminal. Foi aquilo que eu sempre quis fazer. Aos 17 anos, escrevi à PJ a ver como é que me podia inscrever, aos 17 anos!

Era uma das perguntas que lhe ia fazer: quando é que decidiu que queria ser da PJ? Aliás, sabe-se muito pouco da sua infância, conte como é que foi, onde nasceu?
_Nasci em Poiares, uma aldeia de Trás-os-Montes, muito parecida naquela altura com Corleone. Era uma aldeia paupérrima, casas de pedra, as pessoas viviam da parca agricultura que a terra era de muito poucos. O resto tinha que fazer contrabando. Mas não era contrabando pela raia seca, era a atravessar o Douro, com jangadas. Via-se muita gente de preto, muita viúva nova e muitos filhos sem pais. Mas gente boa.

Tem tradições de polícias na família?
_Não. Saí aos três anos e meio de Poiares, porque os meus pais foram para Escalhão. Eram empresários de moagem e panificação. Eramos uma família de classe média. Tenho dois irmãos mais velhos e uma irmã mais nova. Fui para Escalhão cedo, mas fui sempre transmontano até ao tutano.

E já brincava aos polícias?
_Não! Não tenho grande habilidade para entrar com o comboio em movimento, acho que me estatelava completamente. Gostava muito, e gosto, de banda desenhada. Na altura era o Major Alvega…

Ia perguntar se gostava mais de Maigret ou Sherlock Holmes.
_Tenho ali uma porrada de Maigret! Mas com o major Alvega eu queria ser piloto de caça. Lembro-me da felicidade quando, a determinada altura, e estamos a falar de 1960, me ofereceram uns óculos escuros e uma espécie de capacete. Fazia combates. E tinha a mania que jogava à bola, era o dono das jeiras, o campo de futebol… O futebol era onde me sentia livre, sobretudo no verão com aquelas coisas cheias do pão, do trigo, saltava lá de cima, andava por ali, era uma criança feliz.

Então e isso de ser polícia?
_Depois, tudo isso passou e comecei a ver filmes, e Maigrets, o Simenon. Conjugava tudo aquilo que gosto. Aquela ideia de polícia, que depois não corresponde à realidade, tal como o CSI, não é tudo assim. Mas era aventureiro, na minha perspetiva na polícia descobriam-se coisas e dava-se-lhes um sentido útil, o bom ganhava sempre, o mau ia sempre preso. Mexia comigo. Houve uma altura decisiva. Não queria voltar a ser lamechas, mas não posso deixar de ser. A minha mãe morreu muito cedo. Antes, tínhamos decidido vir para Coimbra… Tinha a mania que era jogador da bola e tinha sido observado pelo Biri, do Benfica, e pelo senhor Zeca Nascimento, do Sporting…

Em que posição jogava?
_Médio centro. Na altura estava no Guarda, miúdo mesmo e já jogava nos seniores. Entretanto o Matos, que era o guarda-redes e que conhecia desde miúdo porque o pai dele era empregado do meu pai, foi para a Académica. E a minha mãe, que já saiba o que tinha, disse-me “o melhor é irmos para Coimbra, podes ir para a Académica”.

E veio a família toda?
_A minha mãe estava já muito doente e ficou. Nas aldeias, a ideia que se tem dos advogados não é muito boa, ela não ficou muito incomodada quando o meu irmão do meio, mais velho que eu, foi para Direito. Mas quando eu lhe disse que ia para Direito também, pelo menos a perceção que tenho, é que ficou muito triste. Advogado? E eu disse “não, advogado não, há muitas outras coisas para fazer”. E fiquei sempre com aquela coisa.

E quando é que desistiu da carreira de jogador?
_A partir de certa altura as coisas complicaram-se um bocadinho, ainda joguei no Soure, passei fugazmente pela Académica… Mas não cheguei a jogar, foi naquela época de 74, terrível, era tudo a entrar e a sair, aquela confusão toda. E a seguir, com os primórdios do futebol de salão, o futebol de salão dava-me muito mais… Ainda fui treinador e tudo.

Mas perdemos um bom jogador?
_Não! Tinha uma qualidade, que ainda hoje uso para motivar as equipas na polícia. Os nossos desentendimentos resolviam-se no campo, no futebol de salão, e era aí que verificava o estado anímico das pessoas. Há coisas que se aprendem no futebol. Que os jogos não duram 90 minutos, só acabam quando o árbitro apitar. Outra coisa, não me vai levar a mal mas a expressão é mesmo assim, quem faz a merda limpa-a. Fui treinador e a partir de 2-0 não há substituições, quem cometeu os erros que os resolva. E nos balneários, todos sujos, somos todos iguais. E nunca perdoávamos as “xulengas”, sabe o que é? Posso não ter grandes méritos, mas tenho uma grande capacidade de sacrifício, também físico.

Como é que foi a tal carta para a polícia aos 17 anos?
_Na altura aquilo seduzia-me, os filmes, as leituras. O quinto ano antes era importante, era o primeiro marco e muita gente era ali que ficava. Nunca fui grande estudante, não gostava, tinha muito mais jeito para pensar. E disse, “e se arranjasse qualquer coisa? Já tenho o quinto ano”. E então escrevi, veja lá, aos 17 anos escrevi uma carta, ninguém me respondeu.

E depois decide ir para direito porquê? Por causa do seu irmão?
_Não, porque não percebo nada de matemática! Depois de ver os sacrifícios, os momentos menos bons em que os meus pais faziam questão que estudasse, achei que sim. E também não tinha mais nada para fazer.

Ainda esteve dois anos no Ministério Público em Tábua, certo?
_Estive e gostei muito.

Concorreu?
_Concorri! Na primeira oportunidade. Sou cheio de sorte, lembro-me perfeitamente do dia em que me licenciei.

Que idade tinha e em que ano estávamos?
_Em 80, portanto tinha 24 anos. Fui ver a última nota que curiosamente era medicina legal. Tinha passado, estava licenciado e lembro-me perfeitamente de ir a descer as monumentais e pensar “e agora? Agora, nem jogador da bola és, és doutor, não sabes fazer nada…”. Aquilo atormentava-me! Frequentava um café, O Aquário. Nas mesmas mesas sentavam-se desde o lente ao projetor do cinema, ao farmacêutico, ao estudante de extrema direita ao estudante da extrema esquerda. E as pessoas gostavam de mim. E então, alguém me disse “vais falar com o procurador-geral distrital, parece que há umas vagas agora para o Ministério, para interinos”. Fui para Tábua numa sexta-feira dia 13 de Novembro. E foi um dia terrível. Eu não sabia rigorosamente nada, zero, parecia um miúdo, passei a noite toda a tentar fazer um nó de uma gravata, que não sei fazer ainda hoje. E lá chegado, lá me apresentei, o chefe de secretaria olhou para mim com um ar que depois compreendi que era de gozo, abriu-me a porta de um gabinete onde não se via a secretária nem a cadeira, era só processos por tudo quanto é lado. Nessa noite tinha havido um acidente grave de viação, com mortes. Bateu à porta uma miúda, a dizer-me que era a secretária do Ministério Público e trazia-me um ofício na mão, em que a Conservatória do Registo Civil dava conhecimento nos termos não sei quantos do código não sei quantos que tinham falecido de forma violenta três… entregou-me aquilo e ficou ao meu lado. Olhava para ela, ela para mim, “então o senhor doutor não despacha?”, “sim, sim, já a chamo”. Saiu, olhei para aquilo… fui ver os códigos e lá estava. Copiei e quando a Maria veio já tinha tudo tratado. De regresso a Coimbra vinha com sérias dúvidas em voltar. Passou-me pela cabeça desistir, porque senti-me tão incompetente, não sabia nada. Mas sou teimoso. E segunda-feira lá estava. Os funcionários ajudaram-me e passados oito dias já pedalava sozinho. A PJ tinha-se me passado. Mas houve um homicídio. Teve de se chamar a PJ. De repente, voltou-me outra vez os fornicoques, andava sempre à procura de concursos. Abriu o concurso para inspetores, licenciados em direito, eram cinco vagas, fiquei e fiquei felicíssimo. Achei que era o indivíduo mais feliz do mundo.

Uma felicidade que durou 30 anos.
_Mais de 30 anos. Sabe que isto foi difícil. Às vezes rio-me, outras vezes não tanto, quando dou conta estou a pegar no telefone para ligar para o pessoal da polícia, para o piquete. Foram 30 anos fantásticos. Mesmo estes dois anos, que já não foram coisa nenhuma, o simples facto de estar com aquelas pessoas de que gosto… Por isso queria sair de fininho. Como é que me ia despedir daquela gente? E o que é que estava a pensar? Bem, quando estes gajos derem conta, já cá não estou. Custa-me menos.

Mas teve um jantar de despedida de centenas?
_Sim, estavam 50 anos de história da PJ, referências da PJ, pessoas que trabalhavam comigo e estavam noutras partes do país. E senti-me…

Deixa mais amigos ou mais inimigos?
_Acho que deixo mais amigos. Inimigos, não vejo razões para o serem. Embora haja quem diga que, na polícia, sou um pouco como o Belenenses, ou se gosta muito ou se detesta. Sei que sou imodesto, mas a maior parte dos que me detestam não me conheceram, ouviram falar. Estavam todos os diretores da polícia…

Os atuais?
_Exceto o diretor nacional e o diretor-adjunto. Problema deles.

Confia cegamente na polícia portuguesa, na PJ?
_Confio na PJ.

Acha que os portugueses têm má imagem da justiça por causa da lentidão e desta descredibilização que tem havido nos últimos anos?
_Fala-se muito da justiça, dessa descredibilização da justiça, mas a maior parte das pessoas têm queixa da justiça civil, do outro tipo de justiça. A justiça criminal penso que não nos envergonha. Agora, há um problema relativamente à investigação. Em Portugal, e se calhar por culpa nossa, dos operadores, quer-se ópera a preço de récita popular. A PJ é credível, grande parte dos seus funcionários são cidadãos de corpo inteiro. Cometem-se erros. Mas não se pode perder o sentido de justiça, não podemos ter só técnicos.

E é dos que acham que há uma justiça, uma investigação também, para pobres, e outra para ricos?
_Tenho essa perceção, mas nem é na investigação propriamente dita. Todos são iguais perante a lei, mas a lei não é igual para todos. Isso é verdade, infelizmente.

Porquê?
_Por múltiplas razões, entre as quais haver tanta a legislação. Em Portugal, legisla-se em quantidades industriais e quanto mais se legisla, mais difícil é a aplicação. E depois existem alçapões de toda a maneira e feitio.

Portanto, menos leis, mas melhores leis?
_Sim! Porque os problemas são os alçapões. Quem tem mais dinheiro, mais poder, consegue influenciar a justiça. Mas é em todo o mundo assim! Vimos o Strauss Khan… Tenho um ídolo, todos temos, é o Giovanni Falcone. Em Itália a justiça é séria, trabalha, gente dedicada. E veja quantos anos andou ali aquela história do Berlusconi. Às vezes também somos miserabilistas, tudo o que é nosso não presta!

Nestes mais de 30 anos que leva de carreira, o que é que mudou para melhor na PJ e o que é que mudou para pior?
_É difícil. Ninguém é isento. Digo que represento a melhor geração, mas vou ser injusto. A melhor geração de polícias foi a seguir à revolução, não nos anos de 75-76, mas de 80 a 90 e tal. Porque eram aqueles que iam para a polícia porque queriam ser! Por gosto! E foi o momento em que houve uma grande revolução a nível educacional, cultural, na juventude portuguesa. Havia um campo de recrutamento enorme. O último concurso em que fiz parte do júri foi em 2000, para 80 vagas havia 106000 candidatos. N último, para 100 vagas, houve cerca de 600. O campo de recrutamento é extremamente menor. Tem a ver, naturalmente, com a exigência de habilitação mínima académica a licenciatura para se ser inspetor, que é a base da carreira. Compreendendo mas tenho sérias dúvidas que tenha sido uma boa medida. Os conhecimentos adquirem-se, não tem que ser na licenciatura. O que se nota também é que é muita gente sem nenhuma experiência de vida.

Ou seja, hoje têm uma polícia cheia de doutores?
_Em tom coloquial, a beber um copo, somos capazes de dizer assim. Mas há doutores na polícia que são polícias à séria! O problema é a falta de experiência de vida, alguma dificuldade de entender os nossos ‘clientes’, quer os arguidos, quer as vítimas e as testemunhas. E é preciso percebê-las, criar empatia, conhecer. É preciso descermos a elas.

Nesta sua condição de pré-reformado, como é que olha para o país?
_Não sou um otimista. E fiquei menos otimista depois de ter conhecimento de como muitas coisas funcionam. Mas também não sou derrotista. E o que mais me custa é ver a aceitação, a resignação de grande parte da população. Não quer dizer que faça uma revolução, não é preciso violência, mas fala-se e é-se inconsequente. O meu conterrâneo, o Guerra Junqueiro, já falava nisso, relativamente à aceitação do povo.

Dá para viver da reforma da PJ?
_Para viver, dá. Ganho praticamente o mesmo que ganhava na polícia, porque mantenho os mesmos direitos e deveres como se estivesse no ativo. Mas o dinheiro importa. No meu caso, por exemplo, ganho tanto agora como ganhava em 1999. Houve uma deterioração dos salários. Pessoas que têm problemas económicos e trabalham em áreas sensíveis, e ainda por cima em áreas em que os indivíduos a investigar ou investigados têm poder bastante para os coartar… Sei que se diz que os sacrifícios são para todos, mas se calhar…Tenho um filho desempregado. Tem 28 anos. Se calhar, haveria muita gente que noutras circunstâncias estava mortinho por lhe arranjar trabalho…

O que é que fez nas primeiras horas de reformado, de inatividade? Conseguiu despir já a camisola de inspetor?
_Não, não. Estou a fazer um esforço, isto é quase como o desmame. Telefonam-me, ao “T”. Não sei fazer mais nada. E acho que tenho alguma qualidade naquilo que faço e que tinha muito ainda para dar…

E se o chamassem outra vez, admitia voltar?
_Tinha de ver em que condições e para quê. E se fosse de forma séria. Mas estamos a fazer ficção porque isso não acontecerá. Não há ninguém imprescindível e eu seguramente que não sou. E não é retórica. Agora, se me perguntar, que em consciência, se me sinto em condições? Perfeitamente, com todas as capacidades.

Com que idade está?
_Com 58 anos. E isto era o meu hobby, pagaram-me para fazer aquilo de que gosto e voltava a fazer exatamente o mesmo. Enquanto dirigi equipas e departamentos, felizmente desde miúdo que faço isso, dizia sempre: “ok, isto é muito simples, quem está mal muda-se, a porta de entrada, é a porta de saída”. E chegou um momento em que também tive que fazer essa opção. Estava mal, mudei. Custa muito? Custa, mas todos passamos na nossa vida por situações destas. Deixei aquilo que mais gostava de fazer, não tenho problema nenhum em dizer. Achava que ainda tinha condições. Mas saí com as contas saldadas com a PJ e isso é bom. Devo tudo à PJ mas também dei tudo aquilo que tinha que dar à PJ. E ninguém me ouvirá dizer mal. Era o que me faltava! Se tivesse, e poderia ter, que fazer alguma crítica, era a nível interno. É aí que as coisas se discutem. Há pessoas que acham que se se fizerem de mortas, passam. Às vezes quando dão conta estão já a cheirar mal, mortos mesmo. E eu não entendo as coisas assim. Há momentos em que até por… enfim, a expressão é lamechas, mas por… amor se pode fazer muito mal. Então é melhor seguir caminho. Não me importo de olhar para trás. Não vejo um deserto atrás de mim, vejo gente. Passo mais facilmente sem o trabalho do que sem as pessoas. As pessoas é que me fazem falta. Não conheço ninguém fora da polícia. Não foi uma decisão fácil, mas voltava a sair por uma questão de coerência e de respeito para comigo. Há algum dramatismo nisto, mas saio pelo meu pé, saio de pé e saio direito. E nunca saí às arrecuas de nenhum gabinete. Nem sempre ganhei, mas não dei falta de comparência. Diz-se, o gajo tem a mania, mas estou bem comigo.

Como é que ocupa o tempo?
_Agora é o desmamar, e no desmamar não se pode fazer nada. Arrumar, fui juntando muitos livros, muitos filmes. Passear ao pé do mar com o cão. E tento não ver jornais. Tento não ler. Por respeito. Sou transmontano, mas sempre precisei do mar. Quando ficava com o peito muito cheio o mar punha-me ao nível. “És tão pequenino”. Baixava os níveis e vinha para casa já o cidadão. Quando as coisas me corriam muito mal, perante aquela imensidão as coisas pareciam uma pequena parcela. Vou passando o tempo. Se calhar, quando achar que estou…  talvez decida escrever. Mas recordar é um problema, pode haver uma recaída.

Está a pensar escrever as suas memórias?
_Eu vou desafiar a minha memória, que é um bocadinho diferente. Já que toda a gente dizia que tinha uma memória privilegiada, quero desafiá-la. Não é um projeto de imediato porque tenho medo que isso me provoque uma recaída. Mas também reconheço que vai ser muito difícil porque não tenho outros hobbies. Leitura e ver filmes não são hobbies. Só tenho o meu cão. Já viu o meu cão? [É o James Bond, um belo golden retrevier]

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