
Em Portugal não há o culto do self-made man. País antigo, de linhagens através dos tempos, gostamos mais de nomes, famílias, heranças. Nomes sonantes ou hifenizados, boas famílias – associamos a qualidade à riqueza – e heranças chorudas. Qualquer pessoa que enriqueça, a primeira coisa que faz é mudar de sotaque, afetando a voz com a pronúncia lisboeto-ribatejana arrastada, mudar o corte de cabelo, mudar as camisas para outras, iguais, mas monogramadas.
Tudo isto atrás descrito serve para parecer em vez de ser. E é nesse sentido que também vai o esconder – oh, quantas e quantas vezes – dos ascendentes mais pobres. Muitos dos ricos atuais têm origens humildes há apenas duas gerações – não há como a matemática aplicada às ciências sociais, que se transforma em estatística. E isso nada tem de mal. Não tem nada de mal querermos ser todos ricos. Doentio é que todos queiram parecer ter sido sempre ricos, porque isso retira da equação o valor do trabalho, o valor do esforço, aquilo que eles – ou outros antes deles – lutaram para ali chegar. E essa é a lição fundamental dos países energizados do novo mundo.
Vem este introito a propósito da entrevista que publicamos hoje com Mário Ferreira, o dono da Douro Azul. Este é um homem que construiu o seu sonho e não se envergonha. Filho da classe média portuense – e não das melhores famílias do Norte – teve um sonho corriqueiro, desejou um dia ter um Ferrari. Fez tudo – bem feito – para o conseguir. Não teve só sorte. Soube laborar para o atingir. Pôs um pé à frente do outro, soube encaixar as peças no puzzle, e chegou ao ponto em que já não lhe era impossível não só ter um Ferrari, como vários. Mas, como ele próprio conta, ao contrário de outros «empresários do Norte», não seguiu a moda de ter «garagens com vinte ou trinta carros».
Pelo contrário, o que o que se mostra. Homem afável, habituado à vida nos cruzeiros onde trabalhou cinco anos, e na restauração, onde deu cartas, cedo usou a sua imagem para impulsionar os negócios. Ficou conhecido como o primeiro português a viajar no Espaço.
Foi também por isso que irritou tanto Mário Ferreira que a primeira imagem que correu o país divulgando a sua mais recente concretização – o Museu dos Descobrimentos, em Miragaia – tenha sido a da ridícula comitiva governamental na barcaça que faz o percurso da visita. Talvez «irritar» seja uma palavra forte para o sentimento que Mário Ferreira revelou à jornalista Alexandra Tavares Teles, que o entrevistou no próprio dia da polémica. De facto, até estava meio divertido com a questão.
Mas, se Mário Ferreira estivesse indignado, a sua indignação era perfeitamente legítima. Se podemos dizer hoje que o Porto não tem um Museu do Vinho do Porto à sua altura, mas ostenta um Museu dos Descobrimentos, isso deve-se ao empreendedorismo de um homem. Perdoem-me a palavra gasta, mas é disso que aqui se trata. Mário Ferreira está a trabalhar para o seu negócio, é certo – a trazer turistas para a zona do Douro e a dar-lhes o que fazer. Mas está também a tornar o Porto uma cidade mais interessante. Cabia a quem tem por função pensar – o país e a cidade –, por exemplo, os políticos que lhe garantiram os restantes subsídios, canalizar-lhe os ímpetos para algo mais apropriado à sua cidade, à sua região. Ele, simplesmente, fez o que tinha para fazer, como, aliás, tem sido regra na sua vida de sucesso.
[Publicado originalmente na edição de 18 de Maio de 2014]