Os senhores da guerra

Notícias Magazine

Enquanto haja um fôlego, um único fôlego, haverá o sonho da paz e o pesadelo da guerra. Não parecemos saber viver sem causar a morte. Repetimos para nós mesmos que assim é a na­tureza de tudo e assim nos vamos desculpando, séculos afora. Que o mundo é um lugar selvagem, onde ou se ataca ou se é atacado, e em que só sobrevivem os mais fortes. Pelos mais fortes, leia-se os mais aguerridos, aqueles que fazem do combate um modo de sobrevivência.

O que é contranatura, ou seja, contra as leis da vida que tanto se citam para servir de apoio a acções guerreiras, é que os que decretam as guerras não são os que as irão combater. Seria o equivalente, na selva verdadeira, aos leões mais poderosos man­darem a combate os que menos poder detêm. Se os interesses ter­ritoriais de dois ou mais reis-leões colidissem, não seriam eles a combater entre si para conquistar território, mas sim os seus súb­ditos. Como não é da natureza dos leões a cobardia, esse fenóme­no encontra-se adstrito à espécie humana. Ou, talvez, à condição humana.

O poder que inebria quem o prova é uma droga da qual pou­cos que a experimentam se conseguem libertar. Ficam seus escra­vos, na ânsia de não o perderem. No fundo, o poder mais não faz do que acariciar a vaidade humana, a fonte de todos os problemas. O ego desequilibrado agarra-se a todos os pesos que consegue pa­ra não cair na lama. Pensa que pode escapar às leis da morte se se tornar desmesuradamente grande.

Um ego que está em toda a parte acha-se deus, imortal e invencível. Mas como no fundo sabe que não passa de mais uma pobre alma (destino ao qual quer tão desesperadamente escapar, esse de ser apenas mais um entre todos os que vieram e os que estão para vir, igual na sua condição mortal e imperfeita), para evitar extinguir-se sem glória, dita que a tarefa inglória de combater a guerra que eles próprios fizeram seja delegada aos outros.

É um bocadinho como O Banqueiro Anarquista, de Fernando Pessoa. A partir de um certo nível de riqueza e poder (as duas coisas vivem abraçadas, sendo que, primeiro, o poder vem com a riqueza e, depois, é o poder que acaba por gerar mais e mais rique­za), tudo passa a ser permitido. Pode-se ser tão rico e tão poderoso que as leis humanas que se criaram para abarcar todos, não os abar­cam a eles. O banqueiro é anarquista porque, ao arrecadar a maior soma possível, se libertou das leis do dinheiro e do poder.

Claro está que as vítimas das guerras nunca são os que as pro­vocam. Nem do lado de quem ataca nem do lado de quem defen­de. As batalhas combatem-se com os outros, os escudos humanos. As batalhas combatem-se com o recurso a todos nós, convenci­dos a dar a vida pelos interesses de uns poucos, pensando que são também os nossos interesses.

No dia-a-dia também praticamos a guerrilha entre nós. Tra­vamos lutas uns contra os outros, por todas as razões, por razões nenhumas. Porque o outro tem mais dinheiro, porque as partilhas não foram justas, porque é mais bonito, ou tem um bom emprego. Ou apenas porque não gostamos da cara dele(a). De guerrilha em guerrilha vamo-nos preparando para o combate final, aque­le que resume todos os pequenos ódios num ódio maior. O ódio e a vaidade são os pontos de ignição de um fogo que lavra desde que o homem tem consciência de si.

Em última instância, as guerras mais não são do que a luta do homem consigo mesmo, a face mais visível do desamor que tem por si e pela sua condição.

Sabendo isto, sonha-se sempre que um dia consigamos perceber que o amor é a única batalha que vale a pena combater, porque não deixa vítimas. Apenas paz.

Ana Bacalhau escreve de acordo com a antiga ortografia.

Publicado originalmente da 3 de agosto de 2014.