Nenhum outro trabalho é tão marcado pelas coincidências como o jornalismo. Porque se faz na corda bamba do tempo. Para o bem e para o mal. Li a reportagem que faz capa desta edição ao fim da tarde de quinta-feira. Ainda não sabia que Nelson Mandela tinha morrido – isso só foi anunciado por volta das oito da noite. E, mesmo assim, emocionei-me. O que aconteceu na África do Sul nas últimas três décadas é tão extraordinário, qualquer que seja o ponto de vista, que parece mentira. Inventado, acharíamos que era uma boa teoria política, ou como dizia o meu avô, uma história aos quadradinhos. E, por muito que seja necessariamente um assunto coletivo, ninguém nega que partiu da vontade, da força e do desejo de um só homem. Deste Mandela que nos emociona. Mandela não foi grandioso por ter combatido o apartheid, foi-o por ter reconciliado um povo que anteriormente estava em guerra, salvando-o. E criando algo muito maior.
E aqui estavam de novo essas histórias, desta vez contadas através dos – poucos – que, na enorme comunidade portuguesa na África do Sul, tinham tido a coragem de estar ao lado de Mandela. Eram as histórias que o nosso jornalista Ricardo J. Rodrigues trouxera da sua viagem recente à África do Sul – chegara na terça-feira. Ele fora em reportagem para a revista de viagens Volta ao Mundo. Estando lá, saiu do seu caminho para contar o que, percebeu, nunca tinha sido contado: a história dos portugueses que lutaram pelo fim do apartheid quando era perigoso fazê-lo, inusitado entre os brancos e ainda mais entre os portugueses.
O Ricardo foi, como todos os jornalistas, influenciado pelo ar do tempo. Percebeu um país, a África do Sul, a sofrer a antecipada orfandade do seu líder, pai, guru, fundador. Com Nelson Mandela às portas da morte, e com o fim do apartheid quase a completar vinte anos no início de 2014, era, como se diz por aqui, «na mouche». Acontece que, afinal, o tempo trocou as voltas ao Ricardo. E o que ele teve foi «um azar incrível»: saiu da África do Sul dois dias antes da morte de Mandela. Como pessoa e como jornalista não assistirá, hoje, a um dos momentos que hão-de marcar este século.
Hoje, na Notícias Magazine, publicamos esta bela reportagem que acrescenta informação à torrente que tem sido publicada em todos os jornais. E que dá conta de tudo o que foi verdadeiramente importante na vida de Mandela.
A principal ideia que passa nesta reportagem é a divisão entre nós e os outros. A identificação quase tribal que fazemos com os nossos e a diferenciação a que relegamos todos os que nos são estranhos. Essa era a base do regime do apartheid e a justificação para todas as brutalidades através dele cometidas. Esta é a realidade de todos os conflitos humanos, desde que os homens são homens. Por isso foi tão extraordinário o que aconteceu na África do Sul: deu-nos a lição de Mandela, de que era possível ser de outra forma. Uma espécie de forma honrada de dar a outra face.
Na África do Sul, por motivos históricos, havia vários outros, e entre eles estavam os portugueses. Uns «brancos de segunda», como se chamavam a si próprios, cujo medo, a habitual vontade de desaparecer na paisagem, e de se defenderem, rapidamente relegou para um dos campos. Estes, as personagens da reportagem desta edição foram os que escaparam desta ordem natural das coisas. E foram eles, também, os que, depois, espalharam a lição de Mandela, os que ajudaram a comunidade a ultrapassar a raiva no caminho da reconciliação. A eles, nesta hora crítica para a África do Sul e para o mundo, não podemos senão agradecer e desejar muito boa sorte.
[15-12-2013]