Foi candidato do CDS, mas acha que os atores deviam organizar um sindicato. Agrada-lhe fazer cinema, mas diz que as novelas não estragam um ator. É isso que quer ensinar, na sua nova Academia para jovens atores. As origens, os sonhos e as mudanças, no teatro e no país, numa entrevista a Nicolau Breyner.
A Nicolau Breyner Academia abre em setembro mas já funciona. Qual é a primeira coisa que diz aos seus alunos?
Faço-lhes sempre a mesma pergunta: querem ser atores ou queren ser conhecidos? E depois explico-lhes: és bonito ou bonita, fazes umas fotos, entras em dois reality shows e está feito. É mais barato, dá menos trabalho e podem ir embora.
Há muitos assim, que só querem ser conhecidos?
Há.
Percebeu isso quando colaborou em Morangos com Açúcar?
Nos Morangos encontrei miúdos com muito talento e outros sem talento nenhum. Esses ficaram pelo caminho.
O mercado faz uma seleção natural?
Alguém disse que o teatro é como o mar – deita sempre para a costa o que não lhe pertence.
Também em Portugal?
Nem sempre, mas muitas vezes deita. Como professor já recebi dos miúdos grandes lições. Quando fui convidado para os Morangos, vários colegas acharam que devia recusar o convite. Pois não recusei e tenho muita honra nisso.
Provavelmente temiam que essa participação beliscasse o seu estatuto. No entanto, não é verdade que a partir de um certo estatuto pode fazer-se tudo arriscando pouco? Há 10 ou 15 anos provavelmente teria recusado.
Sim, talvez seja verdade. Mas também é verdade que aprendi com aqueles miúdos e fiz alguns amigos. Lamento que em Portugal nem todos os jovens atores tenham a humildade suficiente para fazer um curso, e mais um ou dois, se for preciso. Ou vão – vão todos – para o curso da Globo, que é uma coisa que não existe, a Globo não tem curso nenhum. Se me perguntarem se devem ir para Londres ou para o Actors Studio, digo-lhes que sim, vão já. Mas para o Brasil não vale a pena. Temos cá escolas.
É a favor da existência de uma carteira profissional de ator?
Absolutamente. Tal como em Inglaterra ou nos Estados Unidos, a carteira é essencial. Até para se constituir um sindicato. Um dia destes os atores ficam à mercê de uma série de coisas.
Não estão já?
Estão, devem proteger-se, e o meu conselho aos mais novos é que façam um sindicato. Mas para que isso seja possível, é necessário que uma, duas, três escolas certifiquem os atores. No meu tempo havia apenas duas maneiras de obter a carteira profissional: ou tirando o curso do Conservatório ou estagiando três anos numa companhia das subsidiadas pelo Estado. No final, o diretor da companhia passava a certificação.
E hoje, há bom ensino em Portugal?
O Conservatório mantem-se fiel a uma linha que privilegia o teatro em detrimento do cinema. Apareceram entretanto outras escolas, a da Patrícia Vasconcelos, por exemplo, da qual fui professor e que muito respeito, mas eu tenho um desejo permanente de fazer coisas novas. Com a mesma determinação que um dia disse «vamos fazer novelas em Portugal» – e fiz –, lancei agora o desafio de fazer uma escola como eu penso que deve ser uma escola de atores de cinema e de televisão. Um desafio a mim próprio a que aderiram alguns loucos.
Como deve então ser essa escola?
Há só duas maneiras de representar – ou bem ou mal. Mas depois de muitos anos a fazer televisão, percebi que há uma maneira de representar para televisão. Como para cinema. Há uma cumplicidade com a câmara, há pequenas técnicas que o ator tem de saber. O ator de televisão vive no imediatismo, na corda bamba. É inexorável a angústia do ator quando tem 30 cenas para fazer. Ui! meu Deus, como vou gerir tudo isto? É portanto necessária uma aproximação diferente. Nesta academia temos cursos, workshops e cursos de três anos.
A televisão exige mais contenção na representação.
O tamanho do plano é inexorável. A câmara pode ser a maior amiga ou a maior inimiga. A telegenia e a fotogenia não se explicam, mas devemos saber como tirar o maior partido. Aprender a usar o momento certo. É fundamental ignorar a câmara, mas sabendo sempre onde ela está.
A telenovela estraga os atores?
Quem diz que sim diz um grande disparate. Os atores ou são bons ou maus. Ou fazem bem ou mal. Não se estragam.
Um grande ator pode não ser um grande professor. Há bons professores?
Muito bons. É verdade que um ator não faz um bom professor mas no caso da televisão o professor precisa de ter batido com os costados por lá. Quando lhes digo «meus senhores isto é assim», tenho a noção perfeita do que digo porque passei por aquilo, andei lá horas e horas, dias e dias, anos e anos.
E bons alunos?
Aparecem bons alunos. Todos os anos aparecem em televisão atores ótimos. Falta-lhes tempo, tarimba, mas há um grande material. «Meus senhores, nós damos aqui 30 por cento. Os restantes 70 trouxeram de casa, e se não trouxeram não vale a pena aqui estar.»
De qualquer forma, em televisão, hoje parece fácil – é muito «chegar, ver e vencer». E no seu tempo, como era?
Era muito difícil. Comecei como profissional aos 21 anos e até aos 30 fui um ilustre desconhecido, e as peças estavam em cena um ano e mais. Ao fim de dez anos a bater com os costados, começou então a dizer-se «anda aí um rapaz com jeito». E só me firmei, de facto, 20 anos depois de ter começado a carreira, por força da televisão. 20 anos. Agora não. É realmente chegar, ver e vencer. No entanto, é bom que se conheça uma verdade que um dia ouvi a Laura Alves, grande atriz e professora: «Sabes, filho, o difícil não é chegar lá a cima, mas ficar lá em cima.»
Ficou. Embora o reconhecimento como ator grande tenha chegado já nos anos 2000. Concorda?
É verdade. O meu percurso é estranho. Os professores do Conservatório rotularam-me de ator dramático. Decidi fazer o exame final com uma comédia e, dois dias depois, o Vasco Morgado quis falar comigo, convidou-me para uma peça. Fiquei então 20 anos a fazer comédia. Nos anos 1980, surgem as telenovelas portuguesas e faço um papel dramático. Resultado: fiquei 20 anos a fazer drama. A partir daí, começou então a dizer-se que sou um grande ator.
Ser reconhecido como grande ator de cinema, tantos anos depois, merece alguma ironia, ou não?
Alguma. Mas confesso que me deu muito prazer ser reconhecido e ter tido vários prémios, até porque foi uma meta que sempre quis atingir. Mas tudo é cíclico. Agora, por exemplo, não filmo há muito tempo.
A comédia foi, portanto, um acaso e não vocação?
A comédia aconteceu. Nunca programei a minha vida. Programar é uma enorme perda de tempo. Para quê fazê-lo, quando se sabe que a vida nos prega partidas, nos leva a sítios onde nunca pensámos estar ou a fazer coisas que não queríamos fazer?
Nos anos 1950 e 1960, os atores eram muito considerados, amados, até. Neste contexto, como é recebido o jovem Nicolau pelas estrelas?
Tive a sorte enorme de ter sido dirigido pelo Ribeirinho ainda como não profissional. O mestre Chico, como sempre lhe chamei, era terrível, de um rigor e de uma dureza lendárias, mas também de uma sabedoria espantosa. Muito culto, inteligente, um grande encenador. Fui dirigido por ele, contracenei com ele e cheguei até a dirigi-lo (é uma forma de dizer). Tinha também uma adoração pela Laura Alves – a Laurinha. Acompanhar a Laura Alves na rua era um espanto. As pessoas afastavam-se e faziam vénia. Havia um respeito enorme, em resultado apenas dos filmes e das revistas. Não havia televisão, contudo, a adoração era reverencial. Pelo António Silva, pela Laura Alves, pelo Vasco Santana, ou pelo Alves da Cunha, no drama. Felizmente, trabalhei com todos.
Dessa convivência deve ter estórias muito divertidas.
Há uma linda com a Laura Alves. Estávamos a fazer uma peça e a secretária diz que a Laurinha queria falar comigo. «Lá fiz asneira», pensei. Queria que a acompanhasse ao enterro do avô do Humberto Madeira, e quando a Laurinha queria, não havia como fugir. Chegou à capela, de óculos escuros, lenço preto e miúpe como um rato, às cegas. Entrou a cumprimentar as pessoas. Chega ao caixão, deposita as flores, reza, destapa a cara do morto e ouve-se: «Ai filho, que não é este, enganei-me.» E saca das flores. «Era só o que me faltava deixá-las aqui.» Muitos anos depois, lembrei-me desta história. A Alina Vaz foi ao enterro da minha avó e às tantas perguntou-se: «Porque será que a avó do Nicolau conhece tantos chineses?» Estava no enterro do dono do restaurante Macau.
É distraído, capaz de fazer o mesmo?
Absolutamente. De resto, perco montes de coisas. Perco o telemóvel todos os dias; os óculos, dia sim, dia não, e por aí fora.
Serpa, Alentejo. Filho de família abastada que entretanto vai à falência. Em resultado disso, vem com 9 anos para Lisboa, deixa a herdade por um apartamento. Como lidou com a situação?
Sou o primeiro membro da família do lado da minha mãe que não é agricultor, e a família está há quase cinco séculos em Serpa. Serei sempre um rural transplantado, sinto-me muito bem no campo. Quando, miúdo, vinha a Lisboa com os meus pais achava graça ao elevador do hotel e à vida da cidade. Mas depois achava aberrante a ideia de Lisboa passar a fazer parte da minha vida todos os dias. Sentia-me enclausurado, tal como o meu avô. De resto, morreu muito cedo, talvez por causa disso.
Viveu sempre com os pais e os avós maternos?
Sempre. Em Serpa e, depois, em Lisboa.
Filho único, por morte da irmã mais nova dois anos. Todas as atenções e expetativas centraram-se em si?
Todas e, por isso, tive de lutar muito. O meu pai morreu muito cedo, tinha 50 e tal anos, as responsabilidades passaram para mim. Morreu o meu avó, morreu o meu pai, morreu a avó e depois a minha mãe e ao longo desses anos fui ficando sempre com os que iam ficando. Por um lado, era o homem da casa, por outro o eterno menino, que aos 60 anos ainda ouvia a mãe recomendar-lhe cuidado a atravessar a rua. E, de certo modo, eu percebi-a. Depois de ter perdido a filha – a Madalena tinha 3 anos, eu 5, e recordo os olhos dela, verdes como os do meu pai – tinha-me só a mim. Nuncaa falei com a minha mãe sobre isso. Com o meu pai, sim. Uma noite, estava o meu avô em coma, tivemos uma grande conversa, em casa. Uma noite inteira a conversar com o meu pai, um homem culto, da filosofia. Falou-me de coisas dele que eu não sabia, sonhos que não realizou porque ficou com uma família a cargo, projetos de que abdicou porque a minha mãe nunca quisera separar-se do pai dela. Percebemo-nos muito bem apesar de eu ter apenas 14 anos.
Voltando a Serpa. Que ideia tem de si, em criança?
A de um miúdo calmo, bem comportado, que não era um grande aluno mas que também não era mau. Na altura, davam reguadas as pessoas e deram-me muitas. Não me fizeram mal.
É dessa altura o gosto pela representação?
O gosto pelo cinema, sim. Havia em Serpa uma esplanada que passava filmes a que eu assistia com o meu avô. E algumas vezes, na cabina, ao lado do projecionista. Era o meu cinema paraíso. Aquilo fascinava-me.
Já se imaginava na pele dos atores?
Gostava muito de ver aquelas histórias, aquelas aventuras, aquelas mulheres bonitas – a Eleanor Parker, a Rita Hayworth ou a KatherineHepburn, a mais bonita de todas elas, mas não sei se na altura era aquilo que eu queria ser.
E a música?
Nasci numa família de melómanos. A minha mãe tinha o curso superior de piano (tenho um desgosto tremendo por não ter aprendido) e, desde miúdo, tive noção da minha voz. Quem me ouvia dizia que eu cantava muito bem. Mas, claro, na minha família, a profissão de artista não era bem-vista, mas fui crescendo e a vontade própria também. Por isso, aos 9 anos, em Lisboa, começo a ter aulas de canto com os grandes professores da altura. Recordo um amigo do meu pai, cantor, que tendo ouvido a minha voz sentenciou: «És abençoado pela natureza.» E eu, não sendo obsessivo nem fanático, sou teimoso. Sabendo que estava decidido a ser cantor de ópera, o meu pai aconselhou-me então uma preparação em teatro. Entrei então no Conservatório, para chegar à conclusão de que a ópera não era para mim.
Demasiadas regras?
Demasiadas. As leias da ópera são de alta competição: não beber, não fumar, não apanhar sol, ter cuidado com a alimentação, não namorar muitas meninas. Foi quando disse: «Nem pensem nisso.» Eu queria viver.
Antes do Conservatório, o Liceu Camões. Que conta às suas duas filhas desse tempo?
Não conto nada porque não me parece que estejam interessadas. Nunca, nem filhas nem enteados, me fizeram perguntas sobre como eu era quando tinha a idade deles. Querem lá saber. E nessa altura era irreverente, brincalhão, aluno mais voltado para as letras – a Matemática era um horror. Era muito bom a Português, História e Geografia e, por isso, conseguia tirar umas médias simpáticas.
Que diziam de si os professores do Conservatório?
Muito talento mas muita indisciplina.
Fama com proveito?
Completamente. Chegava de manhã com grandes ressacas, tinham de me molhar a cabeça para entrar nas aulas. Nas aulas, fazia muitas partidas com ar de santo.
Disse numa entrevista que a vida no teatro era fantástica tirando a parte do espetáculo.
E era verdade. Também é verdade que íamos para o espetáculo para nos divertirmos, mas a carga horária, violentíssima, raramente permitia. As peças duravam um, dois anos, havia duas sessões de segunda a sexta, três ao domingo, e quando calhava uma segunda ser feriado, nova dose de três sessões. Seis sessões em dois dias, quer dizer, o trabalho atual de um mês num teatro normal.
Diz na mesma entrevista que a segunda sessão já só se fazia com a ajuda de álcool.
A segunda, só com uma garrafa de whisky. Não havia outra forma de levar a rotina. Era pior do que ser funcionário público e a rotina mata-me. Mas tinha de ser, era a minha profissão. Mas também nos divertíamos muito em cena com as partidas que pregávamos uns aos outros. Certa vez, com o Toni de Matos, pessoa que eu adorava de paixão, aconteceu uma engraçada em cena. Eu sacudi-lhe água para a cara, na segunda sessão ele encheu a boca de água e borrifou-me, na terceira sessão deitei-lhe um copo de água pelas costas. A coisa acabou com um balde de água.
E a boémia nesses anos 1960?
Toda a gente se conhecia (hoje há atores da nossa praça, conhecidos, com quem nunca falei) e ia aos mesmos sítios, as quatro ou cinco discotecas que existiam. Nunca tive um grupo só. Tinha o grupo dos meus amigos profissionais, atores, jornalistas, que era o grupo do Monumental; o grupo da malta dos toiros e, ainda, o grupo dos meus amigos de sempre, os do colégio, da faculdade ou amigos de família.
Gente muito diferente.
Não tão diferentes quanto isso. Lisboa é hoje uma cidade grande, já contém sem si muitas cidades. Naquele tempo era menos e as noites de verão à porta do Monumental eram inolvidáveis. As coisas que se faziam. Era uma Lisboa de histórias e com histórias. Havia personagens incríveis, os caturras, como lhes chamávamos. Um deles esteve 20 e tal anos em Veterinária porque recusava terminar o curso. De tal maneira que os professores, todos ex-colegas, reuniram-se e disseram-lhe: «Anda cá, este ano vais licenciar-te.» «Nem pensem, não façam isso, estejam quietos.» «Vais», diziam os professores. E lá o licenciaram.
Mais episódios dessas noitadas.
Nos anos 1950 ainda havia quem viesse de Loures, das hortas, com uma carroça puxada por um boi, alumiado por uma lanterna de azeite, levar hortaliça à praça. Havia um senhor que passava com a sua carroça pela Avenida Fontes Pereira de Melo, na altura sem divisória. Ainda hoje me arrependo disso, mas era irresistível: o homem vinha quase a dormir e a malta virava o boi no sentido contrário e o animal lá voltava para casa. Quando o homem acordasse estava em Loures. É uma maldade horrível, mas tínhamos 20 anos. Bebíamos muito, divertíamo-nos muito, brincávamos muito e namorávamos muito. Lisboa não era uma cidade violenta e podia falar-se com os amigos na rua. À porta do Monumental reuniam-se todas as noites mais de trinta gajos a fazer disparates e nunca ninguém nos foi prender.
Consta que as cenas de pancadaria não eram raras.
Adorava fazer exercício físico, halterofilismo, e batíamos por bater. Fazia parte da diversão.
Chegou a pegar um touro?
Em garraiadas.
Marialva?
Completamente. Mas não sou machista.
Foram os excessos que o levaram a deixar de beber aos 50 anos?
Sim, foram muitos.
Vivia-se bem do teatro de revista?
As figuras importantes ganhavam bem.
O cinema foi sempre uma prioridade, mas faz o primeiro filme apenas em 1973.
A minha viagem era o cinema, mas na altura havia muito pouco. À grande época das comédias seguiu-se uma fase de menos qualidade. Depois do 25 de Abril, então, não se fazia nem comédia nem um determinado tipo de teatro.
Sentiu-se ostracizado depois da revolução?
Senti-me ostracizado porque fui ostracizado. Nunca me conotaram com o antigo regime porque nunca fui conotado com regime nenhum, mas existiram listas negras de atores.
Curiosamente, um dos maiores sucessos é de 1975, o Sr. Feliz e o Sr. Contente, em parceria com Herman José.
Sim, mas em televisão.
Conte um pouco da génese desse sketch.
Já fazia muita televisão. Havia a noite de teatro, e eu fiz muitas, na RTP, algumas com êxito. Seguiu-se o meu primeiro hit, Nicolau no País das Maravilhas, e aí entra o Sr. Feliz e o Sr. Contente. O sektch tornou-se viral. A popularidade era indescritível. Num espetáculo no Porto, no Palácio de Cristal, e eu e o Herman tivemos de sair por uma janela e entrar no carro da polícia, tal era a loucura. Com esse sketch nasço como ator de televisão. Criei depois uma produtora de televisão e, mais tarde, um estúdio de televisão. Mas em cinema estive sete anos sem fazer. Acredito que sim.
Os pais assistiram a esse sucesso?
O meu pai já não. Por isso, e digo sem hipocrisias, nunca sentii o meu sucesso completo. Gostava de poder dizer-lhe que eu tinha razão.
Onde foi encontrar o Herman?
Ele estava a tocar baixo numa banda e a fazer teatro. Um dia vi-o, achei-o um miúdo com muita graça, de tal maneira que quando surge o Feliz e Contente assumi a responsabilidade da escolha. Falaram-me em vários atores, mas eu quis aquele miúdo.
Nunca mais trabalharam juntos. Por algum motivo ou apenas acaso?
Um dia disse-lhe «é altura de voares» e ele começou a voar, e muito alto.
O Herman soube ser grato?
Sempre.
Mas, de certa maneira, apagou todos os outros. Sentiu isso?
Portugal é o país de um. Vem o Solnado, os outros não prestam. Vem o Herman, os outros não prestam. Vêm os Gato Fedorento, os outros não prestam.
Sente-se injustiçado como humorista?
Tive o meu pico como humorista, depois fiz uma data de dramalhões que foram as novelas, onde atingi tudo o que queria. Mas acho que Portugal tem realmente essa mania de ser um país de um.
É um dos pais da primeira telenovela portuguesa. Como surge a ideia da Vila Faia em 1982?
_Não tendo nada contra os brasileiros e o seu trabalho, estava um pouco cansado da ideia de que eles eram os bons e que nós não prestávamos. Achava isso uma imensa injustiça e, um dia, pensei: «Porque não fazer uma novela?» Mas sem ajuda do Thilo Krassman e o apoio de dois loucos – a Maria Elisa e o Daniel Proença de Carvalho, então presidente da RTP – não teria sido possível. Não havia nem produtora, nem atores, nada. Fez-se um casting, apareceram duas mil pessoas, escolhi algumas, meti-me – eu e o Francisco Nicholson, coautor do guião – com esses atores numa garagem e durante quatro meses trabalhámos como loucos.
Foi surpreendido pelo sucesso da telenovela e da sua personagem, o João Gadunho?
Esperava algum sucesso, não tanto. Quando os Velhos do Restelo se preparavam para bater foram esmagados pela opinião pública.
O embrião da atual indústria de telenovelas começa quando funda a NBP.
Depois de um hiato, em que várias administrações da RTP não quiseram fazer novelas, fundo a NBP, que daria mais tarde lugar à grande NBP e, sim, ao que hoje se chama a indústria de telenovelas.
De onde sairia, depois, desiludido e na iminência de ruína, a segunda na sua vida.
É um episódio triste de que não vale a pena falar.
Diz que viver é uma obrigação. Mas em si parece, sobretudo, um prazer.
Esforço-me por tornar essa obrigação divertida. No meu caso, há de facto um desfasamento entre a parte física e a parte emocional.
E isso é bom ou é mau?
Há dias em que isso é muito bom, outros em que nem por isso, porque há de facto coisas que fisicamente já não posso fazer.
E dá por si a autocensurar-se, a deixar de fazer algumas coisas porque já não tem idade para isso, ou a partir de certa idade ganha-se o direito a fazer o que se quiser?
Ambas são verdade. E há tanta coisa que gostaria de fazer e tenho tão pouco tempo.
Por exemplo.
Gostaria de fazer uma viagem de veleiro, mais cinema, como ator e realizador, gostaria de ver netos crescidos, muitas coisas.
Foi pai com 50 anos. Opção?
Não. Mas nessa idade a paternidade rejuvenesce, obrigou-me a conviver com muitos jovens, e lá em casa é divertido.
Em 2007 foi-lhe diagnosticado um cancro.
Quando me disseram que tinha um cancro, a primeira coisa em que pensei foi quanto tempo teria de vida. Ninguém pensa que se vai salvar e os dois primeiros dias, de testes e exames, foram muito complicados. Pensei nas minhas filhas, na minha mulher, na pena que teria de não viver. Eu não tenho medo da morte, tenho pena de não viver. Depois percebi que iria lutar contra aquilo – o cancro é um problema que pode ser controlado – e foi isso que aconteceu. Aceitei, rezei muito, fazendo o possível por inverter a marcha. Passei a relativizar muita coisa. Acho, no entanto, que se perder as minhas faculdades físicas vou ter o desejo de acabar. A minha bisavó morreu com perto de 100 anos e falava-me da maçada que era fazer todos os dias a mesma coisa. «Já não apetece, deixem-me descansar», disse-me.
Conseguiu fazer humor com a sua doença?
Consegui. Tenho imensas graças com isso. Mas não sou capaz de fazer humor à custa de tudo.
Ficou doente em 2007, um ano em que trabalhou muito em cinema. Foram vários os filmes, mais do que um sucesso de bilheteira. Em Portugal, um sucesso de bilheteira ajuda ou prejudica?
Prejudica porque as pessoas esquecem que há filmes comerciais de qualidade. O cinema de autor tem de existir, mas o sistema de subsídios tem de ser repensado. Se levar ao ICA uma comédia, é chumbada. Não interessa se é boa ou má, é chumbada.
Vê os filmes de Manoel de Oliveira?
Não. Não gosto. Acho aquilo anticinema.
Vê muito cinema?
Muito, na sala de cinema e em casa. Sou louco por cinema americano. Gosto de Tarantino, dos irmãos Cohen, de Coppola, de alguns filmes do Oliver Stone.
Como espetador, o que mais aprecia num ator?
A simplicidade na representação e a capacidade de me convencer. Nem todos conseguem convencer-me. Marlon Brando, genial, conseguia. Anthony Hopkins, também.
Marlon Brando genial e difícil. É fácil trabalhar consigo?
Muito fácil, mesmo em relação aos textos. Posso alterar esta ou aquela parte, mas sem desvirtuar o texto. Creio até que o melhoro. A rigidez de um texto deixa-me muito cansado. Não sou vedeta, sou pontual no trabalho, não tenho tiques parvos.
Como gostaria de ser lembrado?
Ser lembrado já é bom e a pergunta lembra-me um episódio. Um dia deram-me uma comenda. «Para que serve isso?», perguntaram as minhas filhas. «Para ir às festas e para pôr em cima do caixãoo quando morrer…»
Começaram a chorar?
Qual chorar, ficaram-se nas tintas, preocupadas com o lado prático. «Como é que isto se põe em cima do caixão?» foi a preocupação da mais nova.
Raramente fala do trabalho de preparação da personagem. Porquê?
Chego, faço o trabalho, recebo e vou-me embora, diz Anthony
Hopkins, e eu subscrevo. Todos os métodos são bons para chegar à emoção, mas para mim é claro: não tenho de ser, tenho, sim, de fingir bem. Digo sempre isso aos que me seguem e veem. Mesmo àqueles que acham que a realidade é a televisão e insistem em dizer-me que cá fora pareço mais magro.
É um ator popular, querido do público, e, ao contrário de muitos outros, tem tido a vida privada muito protegida. Explicação?
Provavelmente por ser tão pública. Casei-me e separei-me cinco vezes. Toda a gente sabe, nunca escondi. Também não tenho grandes segredos na vida.
Diz que no Alentejo tudo é possível, até a reforma.
Digo isso, mas não sei se sinto isso. Só a palavra [reforma] é deprimente. Ficar em casa à espera que a morte chegue? Ainda não.
O que gostaria de fazer nesta fase de carreira e da vida?
Uma coisa é o que gostaria de fazer, outra coisa é o que acho que vou fazer. Vou continuar a trabalhar, até poder. Gostava de ver crescer as minhas filhas e os enteados e de ver o país melhorar.
Um projeto.
Tenho um filme chamado Senhor Silva, relacionado com a velhice e a exclusão, um thriller que se passa num estúdio de televisão e um filme sobre a Guerra Colonial. São projetos que vou candidatar mas que, sei, serão chumbados.
Acorda muito cedo, mesmo quando não tem de trabalhar. Depois de tantas noitadas, é agora mais solar?
Sim, a partir de certa altura, o meu grande momento passou a ser a manhã. Comecei a acordar cedo, às 06h30, por razões profissionais e tomei o hábito de levantar-me a essa hora. Acordo sempre muito bem disposto e o meu dia esgota-se num instante.
Mesmo nas férias?
Já ouvi falar em férias, mas há muito tempo que não repouso 20 dias seguidos. De vez em quando, vou repousando uns dias no Alentejo.
Ainda monta a cavalo?
Menos, por causa do meu joelho, que me impede também de fazer ginástica. Ainda há dois anos aproveitava esses dias e frequentava um ginásio em Serpa.
É um otimista?
Sem dúvida, se bem que tenho pouca fé no ser humano. Tenho motivos para pensar assim.
Como reage quando é confrontado com esses motivos?
Agora domino-me. Mais novo, era muito violento, andava à pancada com a malta dos toiros, tinha essa necessidade. Praticava judo e karaté, por exemplo. Com o passar dos anos, o impulso desapareceu. Porquê? Não sei. Nunca fiz análise e se calhar devia ter feito. Aliás, fiz uma vez uma pseudossessão, e no final disseram-me que me conheço muito bem. E é verdade. Se eu quiser pensar e admitir algumas coisas que faço, rapidamente percebo por que razão as fiz.
E admite com facilidade?
Por vezes admito os erros, mas creio que os repetiria porque, lá está, resultam de impulsos. Dou um exemplo: nos negócios, caí em duas esparrelas, sabendo o ia acontecer. Mas não fui capaz de dizer não. Por isso digo que toda a gente consegue levar-me ou enganar. Até uma criança.
O que mudaria na carreira?
Poucas coisas. Por volta dos meus 30 anos tive três convites para sair de Portugal e recusei. Primeiro, por causa da minha mãe, depois porque tive medo de um novo recomeço. Sou comodista.
PERFIL
João Nicolau de Melo Breyner Lopes, Nicolau Breyner. Nasceu em Serpa, a 30 de julho de 1940. Ator, um dos mais reconhecidos, participou em inúmeras séries e novelas das quais se destacam Gente fina É Outra Coisa (1982), Vila Faia (1982) – de que coautor –, Os Homens da Segurança (1988), Origens (1993), Nico d’Obra (1993/1994), A Ferreirinha (2004), Louco Amor (2012), entre outros. Em cinema, marcou mais de 40 produções: O Barão de Altamira (1986), Jaime (1999), Os Imortais (2003), A Bela e o Paparazzo (2009), O Contrato (2009), Teia de Gelo (2012), 7 Pecados Rurais (2013). Premiado várias vezes ao logo da carreira, Breyner distingue-se também como autor, realizador e produtor. Percurso inimaginado para o miúdo que com apenas 9 anos deixou o Alentejo para viver em Lisboa. Sempre que pode regressa a Serpa, a ponto de em 1995 arriscar uma candidatura à presidência da câmara municipal da cidade, pelo CDS-PP . Perdeu. Este ano, decidiu criar uma escola de representação vocacionada para cinema e televisão. A Nicolau Breyner Academia funciona parcialmente há dois meses. Será inaugurada oficialmente em setembro.