A orientação é um desporto pouco conhecido entre nós, mas as condições para a prática da modalidade trazem a Portugal os melhores atletas do mundo. Atraídos pelo clima, pelo terreno e pela qualidade dos mapas e dos circuitos, os orientistas fazem estágios nos campos de treino do Alto Alentejo para se prepararem para as competições internacionais.
Se num dia destes, ao passar pelo Alto Alentejo, vir alguém a correr com um mapa numa mão e uma bússola na outra, não estranhe. É provável que seja o francês Thierry Gueorgiou, o número um do ranking mundial de orientação pedestre. Ou o número dois, o suíço Daniel Hubmann. Verdade. Os campos de orientação estendem-se pelos municípios de Nisa, Castelo de Vide, Alter do Chão, Crato, Marvão e Portalegre e, desde que foram criados, há três anos, são procurados no inverno por atletas profissionais de orientação do mundo inteiro – mais de dois mil, no ano passado.
Além de Thierry e Hubmann, chegam outros orientistas que também figuram na lista dos melhores do mundo, entre os quais os suíços Baptiste Rollier e Martin Hubmann (irmão de Daniel), o francês Philippe Adamski, o búlgaro Kiril Nikolov ou o romeno Ionut Zinca. Os atletas preferem estagiar neste canto da Europa do que nos seus países, onde, nesta época do ano, as condições climáticas não são tão favoráveis a uma boa preparação para as competições. E todos estiveram recentemente nos campos de orientação do Alto Alentejo para se prepararem para a primeira competição da temporada, a oitava edição do Norte Alentejano O’ Meeting (NAOM 2014), uma das provas mais importantes do calendário nacional de orientação, que decorreu no final de janeiro em Castelo de Vide. Foi nessa prova que os encontrámos.
O melhor dos melhores orientistas chegou ao fim da prova sorridente, visivelmente satisfeito com o desempenho. «Hoje correu melhor do que ontem», disse Thierry Gueorgiou, ainda ofegante. «Acho que fiz um bom tempo.» E fez, de facto – sem surpresas, o francês foi o primeiro classificado do NAOM. E para isso contribuiu, como fez questão de apontar, «a qualidade dos mapas e dos circuitos». «São realmente muito bons. Os atletas de alta competição como eu gostam de desafios cada vez maiores e é isso que encontramos aqui. Os terrenos são excelentes para treinar, com diferentes graus de dificuldade. Temos pedras, escarpas, vegetação rasteira, zonas completamente planas e, mais perto da costa, solo arenoso. Há muita diversidade. As condições aqui são muito boas. Os atletas ficam muito bem preparados depois de treinarem aqui.»
Em França, Thierry não encontra nesta altura do ano condições tão boas para treinar. «Está a nevar, além de as temperaturas rondarem os dez graus negativos. Em comparação, o tempo aqui parece tropical. É ótimo para quem está habituado a temperaturas mais agrestes.»
THIERRY COMEÇOU A FAZER ORIENTAÇÃO aos 4 anos, por influência dos pais. Aos 24 fez da modalidade profissão. Hoje, com 34 anos, já escolheu Portugal para treinar várias vezes. Pelas contas do francês já foram «mais de vinte», mas nem sempre no Alentejo. Porto, Viseu, Figueira da Foz, Aveiro, Lisboa e Évora foram os locais eleitos até descobrir os campos de orientação no Alto Alentejo. «São muito bons para treinar a técnica e a velocidade», diz. Desta vez, acabou por treinar e competir no mesmo país e na mesma região, mas os 21 circuitos do Alto Alentejo oferecem variedade suficiente para provas em várias latitudes e longitudes.
Quem, seguramente, voltará muitas vezes a Portugal e a estes campos de orientação é o segundo classificado no ranking mundial, Daniel Hubmann, que no NAOM 2014 ficou – também – na segunda posição. «O clima é ameno e o terreno é bom para treinar a navegação. As condições são realmente ótimas. Saio sempre daqui muito bem preparado.» Daniel também treina em Espanha, Itália e nos países da Escandinávia, mas nestes, lamenta, encontra mais limitações. Veio a Portugal pela primeira vez há dez anos e gostou tanto que regressa anualmente. Nos últimos três anos, é nos campos do Alto Alentejo que prefere estagiar. «Os mapas são muito bons. Os circuitos estão em terrenos com caraterísticas muito diferentes, o que é ótimo para exercitar a navegação. Há muitas rochas, muitos detalhes, o que dificulta o desafio.»
Raquel Costa e Tiago Aires são, em grande parte, os responsáveis pelo sucesso dos campos de orientação do Alto Alentejo. O casal de cartógrafos, que fez o levantamento cartográfico dos campos de orientação alentejanos e do local onde se realizou o NAOM 2014, junto à barragem da Póvoa e Meadas, em Castelo de Vide, confirma a qualidade dos terrenos para a prática da modalidade. «Esta região, por ser rochosa e tipicamente de montado e de sobro, cria diferentes níveis de dificuldade técnica aos atletas, enriquecendo dessa forma os treinos ou as competições», explica Raquel.
Fernando Costa, fundador da Orievents, a empresa que criou os campos de orientação no Alentejo, e um dos maiores promotores da modalidade em Portugal, reforça: «Estes campos surgiram na sequência do NAOM, que se realiza no Alentejo há oito anos. Juntando a esse evento a qualidade destes terrenos, que são de uma complexidade enorme, obrigando os atletas a pensar com rapidez para tomarem uma decisão, achei que eles teriam vantagem em estagiar na mesma região onde decorre a competição. Seria uma oportunidade para se familiarizarem com as caraterísticas dos circuitos.» Mas as coisas correram melhor do que Fernando esperava. «Os atletas acabam por treinar aqui para se prepararem quer para o NAOM quer para outras competições internacionais». É o caso do romeno Ionut Zinca, 30 anos, 56.º no ranking mundial. «Gosto muito de treinar em Portugal. Tem um clima semelhante ao do Sul de Espanha, onde também costumo estagiar. Os terrenos são muito bons, são limpos, não têm mato, e os circuitos são de uma exigência máxima, especialmente estes do Alentejo, o que para um orientista é do melhor que há. Este ano virei cá mais duas ou três vezes para estagiar.»
Sempre que vem, Ionut fica um mês. A maior parte dos outros atletas fica uma ou duas semanas, o que para os hotéis e restaurantes locais acaba por ser uma mais-valia, contrariando a sazonalidade turística da região. É esta a percepção do presidente do Turismo do Alentejo, António Seia da Silva: «Os campos de orientação são muito importantes para o turismo, porque nesta altura do ano as taxas de ocupação são mais reduzidas. É o que me dizem os agentes, que têm tido um conjunto de clientes que não é habitual nesta altura do ano, tradicionalmente uma época baixa.» O rececionista do Hotel Casa do Parque, no centro de Castelo de Vide, confirma: «Durante os dois dias em que decorreu o NAOM, tivemos uma ocupação de 100%. É muito bom para os hotéis, sem dúvida. Já para os restaurantes, duvido. Temos aqui muitos orientistas estrangeiros que vão ao Pingo Doce comprar comida e comem nos quartos.»
É ENTRE OUTUBRO E MARÇO que os melhores orientistas do mundo procuram os campos de treino do Alentejo. O segredo do sucesso? Os mapas, é certo, mas também os variados circuitos que se pode fazer dentro de cada mapa. Ninguém melhor do que um orientista para saber o que um orientista quer quando está a correr, de mapa e bússola na mão, tentando localizar os vários pontos de controlo de um circuito para nele inserir o alicate (ou picotador, que é o que prova a passagem pelo local), no menor tempo possível. E sendo orientista, Fernando Costa fez questão de ir ele próprio para o terreno e definir quase todos os 21 circuitos destes campos. «Para tirar o máximo partido das caraterísticas da região, tracei percursos que permitissem a colocação das balizas e dos pontos de controlo em locais difíceis de identificar, como falésias, pedras, troncos de árvores, buracos, cruzamentos de caminhos, recantos de vegetação.»
Os circuitos desenhados por Fernando são por vezes tão complexos que até os mais experientes se perdem. Foi o caso de Anastasiya Tikhonova, a atleta de 23 anos da Federação Russa (segundo lugar no NAOM 2014, na categoria Elite Mulheres, e 43.º lugar no ranking mundial feminino). «Sou orientista profissional há 13 anos e nunca me aconteceu perder–me, mas ontem fiquei um bocado desorientada. Estes mapas exigem muita atenção da nossa parte e olhar para eles enquanto estamos a correr nem sempre é fácil.» É a primeira vez que Anastasiya compete em Portugal e ficou maravilhada com o tempo que encontrou no Alentejo. «Está frio, mas não tanto como em São Petersburgo. Lá, estão 20 graus negativos. Treinar nessas condições é muito difícil. Aqui, pode estar frio e a chover, mas vê-se o sol todos os dias e, o que é melhor, posso treinar todos os dias.»
Apesar de só existirem há três anos, os campos de orientação no Alto Alentejo já têm fama internacional. Até os atletas que nunca cá estiveram ouviram falar do clima, do terreno, dos mapas e dos circuitos. Alguns, só para confirmar o que se diz, arriscam vir às cegas, sem qualquer retaguarda de apoio. Foi o caso das russas Verónica Tomashevskaya e Tatiana Fomichyova, ambas com 19 anos. Sozinhas, sem treinador e sem outros elementos dos seus clubes, apanharam o avião para Lisboa e chegaram a Castelo de Vide. E nem a falta de meios próprios para se deslocarem as demoveu. «Não temos carta de condução, por isso não podemos alugar um carro. Para os treinos, vamos de boleia ou a correr. No outro dia fomos até Marvão, corremos 13 quilómetros. Foi very cool.» Terminada a competição do NAOM 2014, na qual Verónica ficou em 12.º lugar e Tatiana em 16.º, as jovens russas ficaram em Portugal mais uma semana para aproveitar outros circuitos traçados por Fernando. Mas em vez de à boleia ou a pé, foram para os campos de treino nas bicicletas que o Turismo, entretanto, lhes emprestou.
Até agora, os campos têm atraído mais atletas estrangeiros do que portugueses, mas isso não o surpreende, tendo em conta a realidade nacional deste desporto. Temos federação e temos atletas (2741 no total), o que «não temos são apoios», o que torna a prática da modalidade muito incipiente em Portugal. Ao contrário dos países nórdicos, onde a modalidade está mais desenvolvida e é levada muito a sério, em especial na Suécia, Noruega, Finlândia e, nos últimos anos, também na Suíça – não é por acaso que nos primeiros dez do ranking mundial masculino estão cinco suíços; e no feminino é uma suíça que lidera a tabela. Por cá não existem patrocínios para que possa haver profissionais na modalidade. «Os atletas nacionais têm as suas profissões, o que lhes rouba imenso tempo para se prepararem para as competições», diz Fernando Costa. Os resultados são a prova desse desinvestimento: Diogo Miguel, o primeiro português no ranking mundial, está em 142.º lugar, seguido de Tiago Aires, o cartógrafo, em 148.º, e de João Mega Figueiredo, em 187.º.
Em todo o caso, nem só de resultados vive a orientação em Portugal. Alguns praticantes, apesar de federados, fazem orientação apenas porque gostam, sem um espírito competitivo aguerrido. A família Sá é exemplo disso. Albertina e os filhos, Catarina, 9 anos, e João, 12 anos, encontram neste desporto um desafio, mas também uma oportunidade de, juntos, conhecerem o país de lés a lés e de correrem em ambientes naturais. «É um desporto excelente para a família inteira praticar, porque permite que cada um siga o seu próprio ritmo», explica Albertina. «Além disso, é uma atividade que decorre geralmente em sítios fantásticos, no meio da natureza.» Os filhos ainda estão no escalão de formação, mas apetência não lhes falta – ficaram ambos em primeiro lugar, nas respetivas categorias.
A família Sá, como de resto os outros atletas da Federação portuguesa, regressam a casa assim que o NAOM 2014 termina. Ficam os estrangeiros mais uns dias, para contento da hotelaria e restauração alentejana.
MATERIAL ESSENCIAL
» Mapa
» Bússola
» Fato: Leve e resistente, protege contra a vegetação mais agreste
» Ténis: leves, resistentes e com aderência na sola são os melhores para zonas húmidas e subidas inclinadas
» Balizas: sinalizam o local do posto de controlo
» Alicate (picotador)
» Posto de controlo: prova de que o atleta passou naquele sítio