Se aproveitarmos a boleia do sucesso planetário de Joana Vasconcelos temos três anos para não chegar vergonhosamente à arte moderna com um século de atraso (já vou ao porquê de 1917). Depois do cacilheiro em Veneza e das exposições em Versalhes e no Palácio da Ajuda, já estamos um pouco convencidos. Nada como o gosto global dos outros para moldar o nosso. Tal como os peitorais de Cristiano Ronaldo trouxeram tantas portuguesas para o futebol, os restantes portugueses vão ficar, com Joana Vasconcelos, clientes da arte e daquilo que não entendem.
É tempo, pois, de acabar com as velhas piadas sobre a arte moderna. Sim, um negociante de quadros pode continuar engatar um cliente, assim: «E aqui está, meu caro dr. Fulano, um Paul Klee! Num Klee, você encontra tudo que você procura na arte moderna: crescimento rápido do capital, segurança a longo prazo e uma liquidez notável.» Sim, nunca entenderemos porque é que aquilo vale tanto dinheiro, mas só de pensarmos nisso, porque vale tanto?, já estamos a meio caminho para o fascínio. É altura de fazer um esforço para entender mais.
Em 2009, Will Gompertz foi ao Edimburgo Fringe Festival como artista de stand-up comedy. Na verdade, ele só aproveitou a técnica do género – subir a um palco e fazer humor, de pé e sem mais – para falar de forma imprevista e viva do que sabe. Editor de arte moderna na BBC, assinando regularmente nos jornais ingleses The Times e Guardian, e diretor, durante sete anos, na Tate Gallery, em Londres, Gompertz falou da razão que leva a cama por fazer de Tracey Emin (artista inglesa, nascida em 1953) a ser uma obra de arte e a sua cama desfeita, leitor, não ser.
E lembrou ainda que, pouco a pouco, o mundo vai-se entranhando dessa estranheza que é arte não tão bem pintadinha como a frontaria do Palácio dos Doges, de Veneza, pintada por Canaletto. Em 1972, a Tate Gallery comprou uma escultura chamada Equivalent VIII, do americano Carl Andre. Eram 120 tijolos sobrepostos num retângulo de duas camadas, e só. Foi um escândalo. Ora, trinta anos depois, a mesma galera comprou uma folha de papel onde o artista eslovaco Roman Ondák explicava uma performance artística: um grupo de atores devia fazer uma fila e pôr-se com cara de quem espera. A fila fez-se, o que levava as pessoas que passavam a integrar-se nela ou a andarem por ali, intrigadas. Mas a performance de Ondák já não levou a nenhum espanto…
As boas gargalhadas que recebeu no festival de Edimburgo levaram Will Gompertz a publicar o livro What Are You Looking At? (Para o Que Está a Olhar?), dando de barato o essencial: agora, você já está a olhar… E é assim que ele nos leva ao dia inicial da revolução da arte moderna, 2 de Abril de 1917. O francês Marcel Duchamp (1887-1968) atravessa uma cidade fantástica e vital, Nova Iorque, e entra no nº 118 da Quinta Avenida, loja de artigos sanitários, a JL Mott Iron Works.
Aí, Duchamp compra um urinol de louça e leva-o para o estúdio. Vira-o ao contrário, e assina-o, a tinta preta, com pseudónimo e data: «R. Mutt 1917». Mutt para sugerir o nome da loja e esconder o seu próprio nome, porque ele quer mandar a obra para o concurso da Society of Independents Artists, do qual ele é um dos promotores. O nome que Duchamp dá à obra, Fountain, fonte, é provocador, porque o urinol, no lado prático, não dá líquidos, recebe – é, pois, de arte que se fala, não de lados práticos. A simples inversão do objeto também o transforma, com a parte bojuda para baixo, num corpo de mulher, o que num utilitário para homens dá azo às interpretações que se quiser. A obra acabará por não ser aceite (os outros diretores opuseram-se) mas é fotografada. O urinol original nunca será exposto e perde-se. Mas a foto guarda a ideia da Fountain e há 15 cópias que se passeiam pelo mundo. Quando assim é, as pessoas andam à volta dele, pensativas sobre o significado. O que leva Gompertz a gritar: «É um urinol! E nem sequer é o original. Arte é uma ideia, não o objeto.» Não sei se vos ajudei a entrar no mundo fascinante da arte moderna.
[Publicado originalmente na edição de 4 de maio de 2014]