O viticultor paisagista

A Quinta das Carvalhas, uma das mais antigas do Douro, é a joia da coroa da Real Companhia Velha.  E o agrónomo Álvaro Martinho é o guardião deste templo natura da vinha com 255 anos de história.

A Quinta das Carvalhas, debruçada no Pinhão, é o postal que nos vem à cabeça quando imaginamos o Douro vinhateiro. Um cone verde alto e largo, cujas vinhas parecem ter sido alinhadas nas encostas por um pente gigante, com o rio a fazer-lhe uma das suas imponentes curvas aos pés. Lá dentro, na quinta com 255 anos que é uma das mais antigas da região e a joia da coroa da Real Companhia Velha, trabalha-se para mostrar que o Douro não precisa de ter os chateaux das vinícolas francesas para ombrear com elas em charme.

É um lugar bonito, cuidado. A paisagem produtiva duriense, com as suas casas de arquitetura funcional e modesta, as adegas e os lagares, está ajardinada e até algo chique, na Quinta das Carvalhas. No intervalo de cada etapa em direção ao topo do cone, paramos em jardins ou recantos com patamares de xisto, quedas de água, arbustos de flores, amendoeiras e sobreiros. Alguns são miradouros com a vista impressionante das curvas do rio, encostas e mais encostas de vinhas, com efeitos de sol e sombra, a inebriar-nos de matizes, o poema geológico de Miguel Torga.

«A natureza aqui borbulha, sente-se», diz Álvaro Martinho, o agrónomo que há 16 anos trata da quinta como se fosse sua. A metáfora não exagera – parece que estamos num parque natural onde também se faz vinho e essa imagem é totalmente intencional. «Queremos que a quinta seja um exemplo de visita à região, de contacto com o Douro, a terra, a biodiversidade, onde se faz viticultura sustentável e se ouvem os passarinhos», afirma o agrónomo.

Todas as quintas da Real Companhia Velha estão incluídas no projeto europeu BioDiVine, destinado a promover a biodiversidade nas vinhas através da paisagem e conservação natural do ecossistema. Nas Carvalhas, a mata mediterrânica é mais do que uma moldura – com a permissão de Álvaro, sobreiros, carvalhos e outras árvores, arbustos e plantas silvestres estão a «invadir» naturalmente algumas zonas onde terão impacte visual. Há outras empresas da região envolvidas no BioDiVine, assim como a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro – em março, o Douro acolheu um dos encontros de trabalho deste cluster de produtores, cientistas e decisores políticos.

Álvaro assume «caminhar muito calmamente para uma viticultura do passado». Não só pelo sentido ecológico das práticas antigas, mas porque do passado chegou o melhor das Carvalhas. Nos 120 hectares de vinha que medram nos seiscentos hectares da quinta, há videiras dos zero aos 90 anos. Estas últimas produzem muito menos do que as suas companheiras jovens e vigorosas, mas são tratadas como rainhas – é delas que sai um vinho precioso, lançado em 2010, o DOC Carvalhas Vinhas Velhas. A encosta onde a mais idosa dessas nobres vinhas reside tem exposição a norte, uma inclinação respeitável e dá «produções baixíssimas», nota Álvaro.

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Essa velha senhora da classe alta vinícola tem 90 anos e é uma mistura de castas impossíveis de reproduzir. A idade dela, as castas, a altitude, a exposição e algo mais que os cuidadores lhe foram acrescentando são fatores de uma equação que tem obcecado o agrónomo. «Ando há dez anos a perseguir esse vinho, é irrepetível», diz-nos. Dele fazem apenas cinco mil garrafas por ano e Álvaro abre duas delas para a Notícias Magazine, vinho branco e tinto. Para ele, há muito mais do que um vinho excelente nos copos, há um privilégio planetário: «Não há outra parte do mundo capaz de produzir isto».

Graças à valorização das vinhas velhas um pouco por toda a região, há um habitante do Douro que tem a agenda mais carregada do que uma socialite da moda. É o macho que leva o arado que mobiliza a terra entre cada corredor de vinhas, tão próximas que mal passa uma pessoa, quanto mais uma máquina. É preciso mobilizar as vinhas de três em três anos, para ativar a vida do solo, e incorporar matéria orgânica, explica Álvaro. O macho – um cruzamento entre mula e cavalo – tem o porte certo e a resistência precisa para o trabalho.

Ao almoço, o responsável pela quinta é pressionado por outros viticultores para libertar o macho, mas Álvaro tem muito trabalho para ele – cuida de 40 hectares de vinha tradicional e, entre elas, algumas com mais de 70 anos. O macho pisa o chão que dá as uvas mais valiosas da Real Companhia Velha. É da Quinta das Carvalhas que saem muitos dos vinhos topo de gama da empresa e, se a experiência em curso correr bem, não vai faltar trabalho para o animal. O agrónomo está a experimentar um conceito moderno de vinhas tradicionais, com mais de sete mil plantas por hectare (bem mais do que o índicee de 4500 plantas/hectare que se tenta alcançar nas vinhas novas). Para tentar replicar as vinhas velhas, prescinde-se de mecanização em prol da elevada densidade.

Da produção das Carvalhas, 40% é vinho DOC Douro e 60% vinho do Porto. Inglaterra, França, Brasil e Estados Unidos compram 60% das garrafas. O desafio de tornar essa quinta também um ai-jesus turístico foi aliciante para o agrónomo, que nasceu há 42 anos, a apenas cinco quilómetros dali, na aldeia de Covas do Douro, de pais viticultores. Tinha 13 anos quando visitou uma cidade pela primeira vez. Não foi uma cidade grande, como o Porto, nem sequer Vila Real. O Peso da Régua foi quanto lhe bastou para deslumbramento. «Andei dois dias de elevador!», recorda.

Mais tarde, estudou Agronomia na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), começou a trabalhar, viajou e compreendeu o valor da sua infância bravia. «Não sabia muitas coisas, mas distinguia o chilrear dos pássaros todos.» Não perdeu o jeito, mas ganhou mundo e por isso abraçou com entusiasmo a requalificação da Quinta das Carvalhas em torno do conceito de quinta produtiva de charme, que começou em 2001. Mais de dez anos depois, há frutos que vão além da beleza e ecologia – a loja da quinta fatura 130 mil euros por ano e, em 2012, passaram pelas Carvalhas cerca de 12 mil visitantes. Na quinta, as provas de vinho convivem, no cardápio de enoturismo, com percursos pedestres e circuitos panorâmicos em miniautocarro que terminam na Casa Redonda, no topo do imenso monte com uma curva do Douro aos pés, com uma vista impressionante.

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Álvaro recorda que, quando o boom turístico do Douro começou, não havia muitas coisas bonitas para mostrar.  «A região estava pouco preparada para receber os clientes e os turistas. Eu próprio só fiquei sensibilizado para isso quando visitei outras vinícolas no estrangeiro.» Em 16 anos, a equipa que comanda criou 12 mil metros quadrados de jardins, ao mesmo tempo que  reconstruiu 15 mil metros cúbicos de muros de xisto – a «muralha da China», como lhes chama. Foram asfaltados oito quilómetros de estradas interiores, para que se possa circular na quinta sem respirar pó nem pisar lama. As bermas estão adornadas por relvados, arbustos ou trabalhos em xisto.

Na produção, os inseticidas foram substituídos por feromonas (confusão sexual) e, em 70% da área, deixou de ser aplicado herbicida. Isso faz que nos taludes e patamares haja uma fresca alcatifa verde. Cerca de dois terços das vinhas têm já este coberto verde que traz vantagens muito além da beleza e da frescura – anula a erosão, mantém a biodiversidade e os cortes periódicos, feitos com uma máquina roçadora, produzem toneladas de manta morta, nutriente natural para o solo. A prática está a espalhar-se na região, indica Álvaro, satisfeitíssimo. «Daqui a pouco, o Douro vai estar todo verde.»

AGRÓNOMO E ARTISTA
É um duriense tão inebriado com a sua terra que comove. Adivinha-se que passa muito tempo na quinta, mas a palavra workaholic não se adapta à cara bem-disposta e mais jovem do que os 42 anos do dono. Diz dever parte da sua serenidade ao seu chefe de cultura, José Veiga, que ali trabalha há mais de trinta anos. Chefe de cultura é o nome que a modernidade (e a justiça social, salienta Álvaro) trouxe para os antigos caseiros. Outra parte da sua alegria de viver vem da música. Casado e pai de três filhos (com 14, 9 e 6 anos), vive na Cumieira, Santa Marta de Penaguião, e tem uma banda de música tradicional chamada Rama de Oliveira, com CD editados. A mulher, professora, é sua parceira na vida e na banda. O agrónomo é um artista único. Periodicamente, entre o Douro e o Porto, anima jantares vínicos, conduz a apreciação dos vinhos e faz animação musical, à viola e harmónica

O TRIUNFO DA PERÍCIA FEMININA
Aumentar a rentabilidade por hectare, simplificar e tornar menos penosas as tarefas é um mantra que podia estar escrito na parede do gabinete de Álvaro. A criação de acessos aliviou tanto a necessidade de trabalho bruto, que a equipa da Quinta das Carvalhas seria impensável há cem anos, quando as tarefas vitícolas eram pesadas para homens e animais. 35 pessoas, das quais 28 mulheres. Uma maioria hábil a manejar a tesoura de poda, a quem Álvaro chama as suas «catarinas». «Podar é dos trabalhos mais importantes da vinha e é só feito por mulheres», diz. Dantes os elos mais fracos, hoje ganham o mesmo que os homens.

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OS OURIVES DO XISTO
Se as mulheres tomaram conta da poda, os homens ainda dominam um dos mais antigos ofícios do Douro. Ser pedreiro especialista em construir muros de xisto é arte de tal forma valiosa que estes homens são chamados de «ourives do Douro». Na Quinta da Carvalhas, a equipa de pedreiros trabalha todo o ano, porque a aposta na valorização paisagística e patrimonial mantém-nos sempre ocupados a restaurar ou reconstruir muros, entre outras obras. Cada hectare de vinha tem mais de 350 metros quadrados de xisto, o que encarece muito a produção – dos 50 mil euros que custa um hectare na quinta, cerca de 30% destinam-se à reparação de muros. Nos 120 hectaress de vinha, há 50 hectares em socalcos com muros de xisto.Depois da destruição de muros que aconteceu nos anos 1980, voltaram a ser valorizados como rugas na cara do Douro. «Os muros são parte da nossa identidade», diz Álvaro Martinho.