
O senhor Voltaire pega numa foto e comenta:
Eis um arquivo e aqui, precisamente nas minhas mãos, uma ficha que nos conhece bem. É um documento, um papel com tinta por cima, mas esse papel com tinta por cima parece conhecer-te melhor do que a tua própria mãe. Tem os teus dados, os teus números, os teus nomes. Se tem a tua matemática – os teus números – e a tua literatura – os teus nomes – então, neste arquivo, o que falta de ti senão o que sentes? Poderá dizer-se, então, que os sentimentos são estados intermédios entre os números e as palavras. Entre a matemática e a literatura está um senhor que sente. E como ainda não foi inventada a terceira ciência, esse documento de arquivo falha porque não tem números nem palavras para definir as emoções do senhor que ainda está, apesar de tudo, vivo.A ficha de um cidadão, o documento que o identifica, além dos números das datas de nascimento e da altura, grande ou pequena, e além dos nomes próprios e de família e do sítio onde vive… em suma, além dos números e das palavras, deveria ter versos. É uma proposta – disse o senhor Voltaire. – Uma proposta.
(o senhor Voltaire pega noutra foto)
As crianças são bonitas e têm calções. O pai tem chapéu e o cigarro na boca substitui as palavras (ele fala pouco). As mulheres têm a responsabilidade de fazer o relato da História do Mundo e da Família. E têm ainda de fazer o rela-to da história da própria casa e do próprio bairro. No século XX são as mulheres que fazem a história.
(outra foto)
Como se vê aqui, depois da Segunda Guerra Mundial, três pessoas são felizes numa cozinha. O homem em pé sorri como um parvo. As duas mulheres sentadas, a trabalhar, sorriem como se estivessem ao lado de um parvo. Tudo certo, portanto.
GONÇALO M. TAVARES ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[01-12-2013]