O senhor Voltaire e o século XX: Pés, mãos – escrita, matemática

Notícias Magazine

Conheço um homem que escreve com os pés.

Com os pés?

Sim.

Mas isso não é um homem, é um cavalo.

Não, não, não. Conheço um homem que escreve com os pés e que resolve problemas de matemática com as mãos.

Com as mãos?

Sim. Ele diz que a escrita é uma actividade menor, uma activida­de ambígua, passível de interpretações. Ele diz exactamente is­to: para a exactidão da escrita as patas bastam. É o que ele diz, uti­liza mesmo este termo: patas. Para a confusão da escrita as patas do homem bastam, para a exactidão da matemática é que é neces­sário utilizar as mãos. É o que ele diz.

É uma forma de ver a coisa.

Os pés são para as actividades menores, as mãos para as activi­dades elevadas.

É uma forma de ver.

Ele diz ainda que a matemática é um artesanato em que se utili­za algarismos em vez de outro tipo de material. E, por isso, a im­portância das mãos.

Artesanato, a matemática? Nunca tinha pensado em tal coisa.

As crianças é que sabem. Elas contam pelos dedos. Os dedos são o próprio material da matemática.

Os dedos são números. Dez dedos. O homem organizou o mun­do que o rodeia em redor do número 10 porque tem dez dedos. Se tivesse onze, veja o problema.

Com dez dedos organizámos o mundo.

Podemos, de facto, considerar que o mundo não está bem; está torto, mal feito, é caótico, estranho e imprevisível mas eu estou completamente convencido de que se em vez de dez dedos tivés­semos onze ou nove o mundo ainda estaria mais desorganizado.

Os números pares, apesar de tudo, são simétricos e harmonio­sos, os números ímpares são o diabo. É isso?

É isso mesmo.

GONÇALO M. TAVARES ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA

[05-01-2014]