
Pega na filosofia e pergunta a si próprio se esta serve para alguma coisa. Tenta com ela abrir uma porta fechada à chave, mas não consegue. Tenta com a filosofia cavar um buraco na terra, e nada – nenhum buraco. Tenta com ela rodar um parafuso e o parafuso nicles, não se mexe. Tenta subir a um prédio, usando a filosofia, e não consegue – fica no mesmo sítio, no piso zero.
Não tem motor nem rodas, não serve para mudar de ponto no es-paço. Eis a filosofia. Também não serve para mudar de ponto no tempo (o tempo tem pontos? Eis uma questão. Como fazer um risco, um traço a caneta preta, no tempo? Eis a dificuldade diante da qual até o desenhador mais decidido e paciente fracassa. Não consigo fazer um traço no tempo, só no espaço, na folha branca ou na parede – eis o que diz o desenhador do espaço que queria muito ser desenhador a sério, mas não consegue. No tempo, no tempo é que era – murmura).
Pois, mas ainda aquilo à sua frente – a filosofia. Em suma, é inútil; completamente inútil. O senhor Voltaire pega nela, então, decidido a atirá-la para longe, como se a filosofia fosse uma pedra. E aí vai ele. Pega nela, puxa o braço para trás e zás: lá para o fundo! Atirou a filosofia, esse objecto tão inútil, tão lá para o fundo que já nada no horizonte a recorda. Nenhum vestígio. O mundo finalmente está livre daquele objecto sem forma e sem objectivo.
O senhor Voltaire avança, mais tranquilo e livre, para o mundo directo e prático: uma chave uma fechadura, eis a simplicidade necessária. No entanto, de repente, ali, de novo, o raio da coisa! à sua frente, junto aos seus pés. Que fazer?
GONÇALO M. TAVARES ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[22-12-2013]