Não podem ir à escola e são violadas e forçadas a casar ou vendidas para exploração sexual. Esta ainda é a sina de nascer mulher em algumas regiões do mundo. Catarina Furtado apela à ação de todos os que desfilaram nas redes sociais a exigir o resgate das mais de duzentas meninas nigerianas que continuam desaparecidas. Para as encontrar e levar os responsáveis a tribunal.
O rapto de 276 meninas na Nigéria por um grupo islâmico que se opõe à educação das mulheres apanhou-a de surpresa?
Dos 57 milhões de crianças que não vão à escola, a maioria são meninas e raparigas. Na maior parte dos casos acontece por razões culturais e muitas são vendidas para exploração sexual, outras são forçadas a casar precocemente. Estas violações dos direitos humanos são conhecidas e ocorrem na Nigéria e noutros países do mundo. O Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), do qual sou embaixadora há 14 anos, alerta para a discriminação e a violência que é permanentemente exercida sobre meninas, raparigas e mulheres. Conheço bem estas realidades. O que me admirou neste rapto foi a dimensão do grupo, o número enorme de jovens que foram sequestradas às suas vidas e arrancadas às suas famílias. O que também é novo e me surpreendeu, neste caso pela positiva, foi a repercussão mediática da situação e a grande adesão à campanha #BringBackOurGirls [Devolvam-nos as nossas meninas] que, em pouco tempo, mobilizou pessoas e organizações que condenaram o crime e que exigem o resgate das crianças. Espero que a ação continue. As violações dos direitos humanos, com as suas causas e consequências, precisam de se tornar uma constante nas agendas mediática e política, a nível nacional e internacional.
Não lhe parece que as autoridades agiram demasiado tarde?
Claro que sim. Só três semanas passadas, e por pressão das famílias e de algumas ONG, é que as autoridades da Nigéria reagiram. E fizeram-no com muitas hesitações. Até no que respeita à ajuda operacional que outros países e organizações internacionais entretanto disponibilizaram.
Concorda que os governantes dos países onde as meninas e as mulheres são mais vulneráveis vivem muito afastados da realidade das suas populações?
Completamente. Mas também quero contrariar o preconceito de que os políticos são todos iguais. Não são. Mesmo em países onde a pobreza, as desigualdades e a violência de género são gritantes há líderes que fazem a diferença. Contamos com eles e com elas para denunciar os abusos cometidos e para promover os direitos humanos das mulheres.
Acredita que se conseguem resgatar estas meninas e levar os raptores a tribunal, para que sejam julgados?
Não posso deixar de acreditar que será assim. Se deixarmos de acreditar também deixamos de lutar. A campanha que mobilizou tanta gente, líderes políticos e pessoas com muito poder e influência, tem de ter algum efeito. Os direitos humanos não podem continuar a ser uma bandeira que é içada por mero oportunismo, em cerimónias públicas e fotografias oficiais, para depois continuarem a ser sistematicamente violados. Por isso, espero que os políticos e responsáveis que partilharam nos jornais e nas redes sociais as suas fotos de adesão à campanha #BringBackOurGirls sejam consequentes.
#BringBackOurGirls poderá alertar para o risco que ainda é nascer mulher em muitos países do mundo?
Esse é o meu desejo. Espero sinceramente que as pessoas que se sentiram chocadas e tocadas pelo rapto destas meninas se mantenham em alerta e façam alguma coisa. Todos podemos fazer. A mutilação genital feminina (MGF), uma prática ainda executada sobre milhões de raparigas, é um exemplo dos bons resultados que se podem alcançar quando, ao trabalho persistente das pessoas que estão nas associações, se junta a vontade política e a cooperação, como aconteceu em Portugal. Aproveito para lembrar que recebemos migrantes de países onde a MGF existe.
A troca e a venda de raparigas e os casamentos forçados também chocam muito as pessoas, mas continuam a acontecer diante da indignação. O que se passa?
A indignação não basta. Precisamos de agir. E agora que se elabora, discute e negoceia a agenda do desenvolvimento do pós-2015, é o tempo certo para definir as prioridades políticas e económicas. Além da MGF, dos casamentos forçados, da troca e venda de noivas e dos crimes relacionados com o dote, raparigas e mulheres são permanentemente vítimas de violação e de violência sexual e essas situações agravam-se durante guerras e conflitos. Penso que se estivéssemos a falar de violência e violação contra crianças teríamos um impacto maior, mas o que as pessoas precisam de saber é que os crimes cometidos contra raparigas e mulheres que são mães têm um efeito devastador na vida das crianças e das famílias.
A página da internet da Corações com Coroa (CCC) abre com uma frase: «Apoiar uma mulher é apoiar uma família, uma comunidade e um país.» Pode explicar o que está na base desta premissa?
Primeiro, quero dizer que as violações dos direitos das mulheres também ocorrem sistematicamente nos países desenvolvidos. Em Portugal, a discriminação de género é visível no trabalho, com salários mais baixos e com a quase ausência de mulheres nos conselhos de administração de empresas e noutras organizações. Também se vê na política, onde a representação feminina ainda é muito baixa. E também se revela nos casos de violência doméstica. O número de mulheres que todos os anos são mortas pelos maridos é disso exemplo. O número de denúncias em relação à violência sobre o namoro também está a aumentar e é sobretudo exercida pelos rapazes contra as raparigas. Também é importante alertar que as instituições e os serviços não estão imunes às discriminações quando, por exemplo, os cortes orçamentais atingem os cuidados de saúde materna e os serviços de atendimento a jovens em matéria de saúde sexual e reprodutiva. Com estas medidas a prevenção dos riscos e a promoção da igualdade e dos direitos tornam-se mais frágeis.
Mas aquela frase não foi escrita a pensar só nas mulheres portuguesas, pois não?
Pois não. A verdade é que quando chegamos aos países ditos em desenvolvimento – e eu já tive oportunidade de visitar muitos, incluindo quase todos os de expressão portuguesa – verificamos que o mundo das mulheres ainda é um universo à parte. E dizerem, como já tenho ouvido, que aquelas mulheres são felizes revela uma ignorância profunda. As mulheres são educadas para não ir à escola, para casar cedo, cuidar dos filhos e servir os maridos. E em alguns países e regiões, para serem mutiladas. Não lhes é reconhecido nenhum direito. Nem elas sabem que os têm. As discriminações e as violações são tantas e tão gritantes que é impossível não nos envolvermos. Eu penso sempre que podia ser uma daquelas mulheres. E que aquelas crianças podiam ser a minha ou a sua filha.
Mas no dia a dia apoiar as mulheres é determinante porquê? Pode dar um exemplo?
Comecemos pelo acesso à educação, precisamente o direito humano que querem sonegar às jovens raptadas na Nigéria. É essencial para promover a igualdade de género e o desenvolvimento dos países, mas também há muito que se sabe que as mães com mais instrução são as que asseguram melhores cuidados de alimentação e saúde aos seus bebés. Também está provado que essas mulheres tendem a ter os filhos mais tarde, e é urgente romper o ciclo da gravidez precoce. Ir à escola é muito mais do que aprender a ler e a escrever. É ter acesso à informação, é conhecer os direitos humanos, é saber que homens e mulheres têm os mesmos direitos e deveres e é poder fazer escolhas. E quando as raparigas têm oportunidade de escolher e decidir, não escolhem casar-se cedo nem ter filhos cedo: escolhem manter-se na escola e constituir família quando tiverem condições para tal.
O acesso ao planeamento familiar e à saúde sexual e reprodutiva é outra das causas que abraça. Pode explicar porquê?
Poder planear as gravidezes e ter acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva é o melhor meio para romper com o ciclo da pobreza, mas no mundo em desenvolvimento ainda há duzentos milhões de mulheres que não têm acesso a este direito fundamental. É por essa razão e por causas ligadas à gravidez, parto e pós-parto que todos os dias morrem ainda oitocentas mulheres e muitas outras ficam com sequelas para sempre. Garantir acesso à educação, ao planeamento familiar e aos cuidados de saúde sexual e reprodutiva é salvar vidas.
Nas muitas viagens que fez a diferentes países do mundo para promover os direitos humanos e sobretudo os direitos das mulheres, o que mais a marcou?
O que mais me chocou foi ver mulheres a morrer por causas evitáveis. Aconteceu, por exemplo, na Guiné-Bissau. Vi morrer mães e bebés por falta de condições básicas. E os bebés que ficaram órfãos? É revoltante saber que se aquelas mulheres vivessem em Portugal estariam vivas, a cuidar dos seus filhos. A morte das mães causa muito sofrimento e provoca muitos danos nas famílias, nas comunidades e nos países. É a tal frase de que falámos. É por isso que quanto mais conheço mais me envolvo também.
A Guiné-Bissau é precisamente um dos países onde as meninas ainda são sujeitas à MGF. Teve contacto com essa realidade?
A seguir à morte das mães, a MGF foi o que mais me chocou. É uma prática atentatória dos direitos das meninas e das mulheres que não pode continuar a ser ignorada ou silenciada com base na bandeira das tradições culturais. É crime.
Falou com as pessoas sobre a MGF?
Sim, inclusive entrevistei fanatecas [nome por que são conhecidas as mulheres que fazem a excisão nas meninas]. A MGF provoca uma dor imensa e pode resultar em complicações que levam à morte das mulheres no momento do parto, para além de muitas outras consequências. Percebi que com profissionais habilitados e respeitados pelas comunidades é possível acabar com esta prática. Proibir e criminalizar é fundamental, mas a mudança só vem com intervenções nas comunidades, como demonstram os vários projetos feitos pelo UNFPA. Tenho recolhido muitos depoimentos para fazer um documentário sobre MGF. Estive com a antiga supermodelo Waris Dirie, da Somália, que me contou a sua inacreditável experiência que levou ao livro e ao filme Flor no Deserto. Ainda hoje recordo a forma pormenorizada como Waris me contou o momento em que sofreu a MGF e como a dor de um acontecimento vivido aos cinco anos, quando é relembrada, regressa com a mesma força. Hoje, Waris tem 49 anos e nunca teve prazer sexual.
No palco do desenvolvimento há um mundo de coisas por fazer. Porque escolheu a igualdade de oportunidades e de género como temas de intervenção social?
Sempre fui muito sensível à desigualdade, à discriminação e à diferença de oportunidades, mas esta área surge da continuidade do trabalho voluntário que faço para o UNFPA. Felizmente as coisas têm corrido muito bem e o meu mandato tem sido sucessivamente renovado.
Em 2012, fundou a CCC, uma associação que trabalha com raparigas e mulheres em situação de vulnerabilidade ou pobreza. O que é que já foi feito?
Não fornecemos comida nem bens, antes trabalhamos para o empoderamento das meninas, das jovens e das mulheres e para combater a discriminação com base no género. É essa a missão da CCC. Fazemos atendimento biopsicossocial, gratuito, uma vez por semana, e temos um projeto de bolsas financeiras que, neste momento, permitem que três meninas com bons resultados escolares, incluindo uma jovem romani, uma futebolista e uma bombeira voluntária, prossigam os seus estudos no ensino secundário e universidade. Entretanto, vamos começar também com outras duas áreas de atendimento gratuito na nossa sede. Neste ano e meio, a minha preocupação tem sido angariar novos sócios e financiamento, através de candidaturas a projetos e organização de eventos – um dia, gostava de pôr os jogadores da seleção a jogar pelos direitos das mulheres. Quem quiser alinhar nesta ideia pode entrar em contacto comigo e com a CCC. Já organizámos duas conferências, lançámos o Prémio Comunicação – Corações Capazes de Construir (jornalismo e campanha) pelos Direitos Humanos e conseguimos criar um posto de trabalho – há quatro meses que temos uma funcionária fixa.
Quando voltamos a ter outra série Príncipes do Nada?
Quando a direção da RTP o entender. Já expressei a minha vontade de o fazer, acumulando evidentemente com as outras funções que tenho como apresentadora do The Voice e de Chefs’ Academy. Acredito num parecer favorável da direção. É só uma questão de tempo, porque as oportunidades de reportagem existem e o serviço público tem um papel importante na construção de um país e de um mundo mais justos e solidários onde os direitos humanos sejam tema de informação.
QUEM É CATARINA FURTADO?
Atriz, apresentadora de televisão e embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População, Catarina Furtado fundou há dois anos a Corações com Coroa, uma associação não governamental para o desenvolvimento que trabalha para a promoção da igualdade de género e dos direitos humanos.