Eu já contei a história as vezes suficientes para hesitar voltar a ela – «outra vez?», disse-me. O que me convenceu: essa história, dei-me conta agora, narra a primeira vez em que vi um selfie. Lembro-me, foi há um quarto de século, muito antes de o Oxford English Dictionary ter considerado selfie a palavra do ano 2013 e Obama ter feito um no funeral de Mandela. Além de eu ter gostado desse selfie precursor (e nunca mais voltei a gostar de outro), foi notável porque a foto foi feita sem aparelho, até porque a autora tinha as mãos ocupadas, agarrava uma bandeja.
Foi durante a guerra civil argelina. Os fanáticos quadrilhavam as ruas de Argel à caça de mulheres de cabelos ao vento. Os casamentos berberes, porque eram festa e festa era um pecado, eram feitos com tropa a proteger os gritos ululantes das mulheres. Quem insistia em beber vinho, numa Argélia que o produzia desde os romanos, rasava as paredes para procurar uma garrafa de clarete de Mascara. E eu estava sozinho num restaurante a cortar o doce excessivo das tâmaras, para voltar a elas, sorvendo chá com hortelã.
Foi quando vi a empregada que passava entre a minha mesa e o espelho na parede. Ela não reparava em mim, servia outras mesas e, quando se aproximava, os olhos eram magnetizados pelo que o espelho devolvia dela. E, dela, interessavam-lhe exclusivamente os cabelos. Ora os abanava, soltos, ora a mão que abandonava a bandeja mergulhava os dedos nos cabelos escuros. Ela nunca parou frente ao espelho demorando a apreciação, sabia que eram tempos de resistência breve, mas em nenhuma passagem deixou de se olhar. Eu estava fascinado, nunca vi uma guerrilheira pela liberdade ser tão teimosa. Por ter sido coisa bela e corajosa, só agora me dei conta de questão secundária: ela fazia-se selfies antes da moda e sem máquina fotográfica, só para guardar na sua memória, porque os tempos desaconselhavam armazenar testemunhos de mulher publicamente mulher.
Com essa iniciação, aos selfies que apareceriam mais tarde achei-os menores, apesar do ar patusco de Raul Meireles, esta semana, no Palácio de Belém. Não que me desagrade o interesse das pessoas por si próprias (os parágrafos acima mostram como o egoísmo visual pode encantar-me). Mas engalinha-me que as modas diminuam os avanços técnicos. Os japoneses passam décadas a tornar-me um Rui Ochoa, fotoexcluídos como eu a ser capazes de tirar fotografias nítidas, e borra-se o retrato com a moda do estender o próprio braço, curto e trémulo. Julgo que o selfie nasceu entre os povos incivilizados e ricos, ensinados a não confiar. Das duas vezes que vi um tipo a fugir com a Nikon de um turista foi num país mediterrânico. Mas onde parece desonestidade pode haver tão-só retaliação: das poucas vezes que vi recusas ao pedido de fotografar, «o amigo importa-se de nos…», foi sempre em cenário com chuva atrás.
Seja como for, um dia alguém estendeu o braço e fez a sua própria foto esbatida. Arriscou-se, arriscou-nos, à moda tola, que não tardou. E nem vale a pena dizer que os selfies, convencendo o fotografado de solidão, desarma-o e permite-nos, depois, quando a imagem é universalmente partilhada, espreitar pela fechadura… O que já vi de Scarlett Johansson em selfie preferia ter visto em obra de bom fotógrafo – e suspeito que sem o clique dela haveria de aparecer o mesmo, em melhor, com clique alheio.
O único argumento a favor do selfie é o ter de ser ter muita força: há lugares em que estamos mesmo sozinhos. Aí, sem recurso à simpatia alheia, tem de ser o nosso braço estendido a provar que estivemos ali. Mas também isso tem contraindicações. Hoje já não posso inventar que estive onde não estive, não me chega conversa fiada, tenho de provar com foto («então não tinhas o telemóvel?!») que a cicatriz que tenho na cara me aconteceu com um tomahawk sioux, na Batalha de Little Bighorn, já o general Custer jazia por terra. Hoje sou muito menos popular entre os sobrinhos dos meus amigos.