O artesão de espartilhos

Num pequeno quarto da Pensão Amor, em Lisboa, Armando Gabriel dedica os dias a criar espartilhos. Um trabalho minucioso, assinado por quem já trabalhou para a alta-costura francesa.

Ano 2007. Poucos dias depois de aterrar em Paris, Armando Gabriel arrisca o telefonema que lhe muda­rá a vida. Ansioso, marca o número descoberto por aca­so depois de meses de procura: responde-lhe o gravador de chamadas de Mr. Pearl, alter ego de Mark Pullin, sul–africano nascido em 1962 e célebre corsetier (criador, cos­tureiro de espartilhos), com trabalho feito para Chris­tian Lacroix, John Galliano, Vivienne Westwood ou Jean Paul Gaultier. Por mensagem de voz, o designer português, também ele natural da África do Sul, apresenta-se à singu­lar personagem, ela própria praticante do tighlacing (uso diário do espartilho), e conta a verdade: partira de Lisboa decidido a conhecer um dos seus ídolos, decisão tomada num momento preciso em que contemplava no compu­tador as mulheres-inseto de Thierry Mugler, que o artis­ta-artesão ajudara a criar.

«Nunca esperei que me respondesse até porque sabia que é uma pessoa muito reservada, mas ainda nesse dia telefonou-me. Foi espantoso. Marcámos um encontro em casa dele e, no dia combinado, levei algumas peças feitas por mim. Conversámos durante horas, existiu muita empatia e combinou-se logo ali uma colabora­ção num próximo projeto. Ele prometeu e cumpriu.»

Ao lado de Mr. Pearl, Armando participa na confeção de peças com direito a páginas de revista e outdoors: o corpete azul usado por Naomy Watts na campanha de um perfume de Thierry Mugler, ou os espartilhos da fe­tichista assumida Dita Von Teese, especialmente feitos para os shows burlescos do Crazy Horse, ou ainda a recre­ação, para Kylie Minogue, de uma peça de Jean Paul Gual­tier, a pedido do próprio estilista. «Um espartilho-body de tafetá com fio metálico e vinil cristal», que lhe saiu das mãos a preços que desconhece.

Então com 40 anos, Armando Gabriel «estava onde ti­nha de estar». E explica: «Enquanto corsetier, o meu tra­balho tinha ido até certo ponto, mas faltava-me qualquer coisa. Precisava daquela experiência, de fazer perguntas, de obter respostas, e Mr. Pearl surgiu na altura certa. Ele brincava comigo: “És a única pessoa com quem posso es­tar horas a falar sobre espartilhos.”»

Espartilhos, Mr. Pearl e Paris, triângulo perfeito pa­ra o português. «Aquela cidade fala-me à alma. Os três anos que lá vivi foram provavelmente os melhores da minha vida, estive numa bolha de felicidade muito gratificante. Sem hesitar, começaria a minha biogra­fia pelo dia em que conheci Mr. Pearl. Passei a con­viver com os grandes da moda e a entrar nas gran­des casas de alta-costura». Esquecidos ficavam momentos, vários, em que pensou desistir, os dois anos em que à falta de trabalho na moda mostrou Lisboa aos turistas, os dissabores com os pais, sobretudo com o pai, que dificilmente aceitou que o filho tivesse trocado o curso de Biomédicas pela velha Singer da mãe, ainda a família vivia emigrada em Joanesburgo.

Porque deixou Paris, então, é caso para perguntar. «Fui para Paris por um período de três anos, o tem­po que dei a mim próprio para viver essa fase até por­que tinha aqui a minha mãe, que nessa altura já vi­via em Almada.»

Se há outras razões, Armando guarda-as para si. Certo é que regressa a Lisboa em finais de 2009 de­cidido a dedicar-se em exclusivo aos espartilhos. Co­meça por trabalhar em casa, sobretudo para noivas. Mais tarde, aluga um espaço na Pensão Amor, à Rua do Alecrim – «achei que tinha tudo a ver» – e é num quarto de 12 metros quadrados que concebe, execu­ta e vende os espartilhos. Horas e horas de trabalho, onde não entra a luz do dia.

A coleção que leva ao Lisbon Fetish Weekend des­te ano, « mercado que me interessou conhecer», me­receu quatro meses de trabalho a uma média de oito horas por dia, sete dias por semana. Porque é preciso, primeiro, moldar e cortar; depois, criar o esqueleto, uma estrutura de barbas de aço; e, por último, muscu­lar a «criatura», com sucessivas camadas de entretela.

E há, também, que batizar – Two of hearts (dois de copas), Valentine, Maleficent, Victoria.

Os espartilhos, feitos na maioria à medida, levam entre uma e três semanas a executar, exigem duas pro­vas no mínimo – um erro de cálculo é irreversível – e os preços começam nos 500 euros. «Hoje, já tenho uma carteira de clientes razoável. Alguns deles usam a pe­ça diariamente. Outros dormem com ela vestida, des­pem-na apenas para tomar banho. O espartilho é uma disciplina e um modo de vida.» E para cada cliente, uma motivação: «Ou porque confere uma certa con­fiança ou porque serve de carapaça, de armadura, ou porque provoca uma sensação de compressão ou por­que confere ao corpo uma silhueta perfeita. Uma clien­te disse-me um dia que ter espartilho vestido era ter duas mãos a apertar-lhe permanentemente a cintura.»

E também porque é peça clássica do fetiche: «Os corset estão intimamente ligados ao fetichismo tal como os sapatos de salto impossível. Se bem que a maioria das minhas clientes não vem daí nem do tra­vestismo. Do travestismo até nem tenho nenhum. As minhas clientes são de várias idades e usam o espar­tilho sobretudo como peça exterior.»

E ele, já usou algum? «Tenho um, muito simples, de algodão, mas raramente o uso por falta de tem­po. E tenho clientes homens que usam o espartilho como peça interior. Mas ainda hei de experimentar vesti-lo diariamente para sentir na pele o que é an­dar com um corset.»

Cinquenta e seis centímetros é a medida standard da peça. Mas há casos em que pode chegar aos 47 cm. Seja como for, verifica-se em regra uma redução de oito a dez centímetros à cintura real. «Se a peça for bem feita, respeitar o corpo e a parte óssea, a com­pressão não provoca dor. Os tecidos moles permitem essa compressão», garante Armando quando con­frontado com a imagem da heroína de E Tudo o Vento Levou, uma Scarlett O’Hara praticamente sem respi­rar para aguentar o espartilho.

Com os anos 1920 e o feminismo, a peça desapa­receu dos armários e da memória das mulheres pa­ra regressar a partir dos anos 1970, pela porta da alta-costura com Vivienne Westwood, Thierry Mugler, Jean Paul Gaultier, Christian Lacroix, Dior. O cine­ma dá uma ajuda, por exemplo, com Moulin Rouge ou Marie Antoinette, de Sofia Coppola. Madonna é pio­neira e Cate Blanchet declara: «Sou uma dessas estra­nhas criaturas que gostam de espartilhos.»

Armando não sabe bem quando começou a paixão por estas peças. «Acho que sempre gostei de armadu­ras. O espartilho é uma armadura. Ou uma escultura. Gosto de escultura desde criança.»

Desde criança. Armando nasceu há 46 anos numa pequena cidade a 60 quilómetros de Joanesburgo, centro urbano para onde a família se muda quando ele tem 9 anos. Proveniente da classe média baixa, mãe dona de casa e pai soldador, vive uma infância «sem sobressaltos» e desses dias recorda sobretudo o gosto pelo desenho: «Estava sempre a mexer em papel, a de­senhar. Fazia roupas de papel para bonecos, também de papel, que depois recortava. Passava os dias a pôr–lhes e a tirar-lhes a roupa.»

Junta a este gosto uma vocação para línguas – além de português e de inglês, fala francês e italiano – e o interesse pelas ciências: «Um dia deram-me um microscópio e foi dos presentes que mais felicidade me trouxeram.

De tal forma que a faculdade e o curso de Biomé­dicas se sobrepuseram à natural inclinação para as artes. Por pouco tempo: «Não me via fechado num laboratório.» Abandona a faculdade; compra uma guerra em casa. «O meu pai ficou furioso e deu-se um momento complicado», que acabaria por passar, «com o tempo». Ainda na África do Sul faz um curso de moda e os primeiros trabalhos, na garagem, agar­rado à velha Singer da mãe.

Quando, em 1991, depois da reforma do pai, a famí­lia regressa a Portugal – a Almada –, Armando, com 23 anos, vai para Milão, onde, durante ano e meio, cursa desenho para cinema e teatro. Chega a Lisboa em vésperas de fazer 25. «Durante uns tempos andei por Lisboa, a descobrir a cidade, frequentava o Bair­ro Alto e tentava já entrar no meio ligado à moda.» Em 1993, frequenta um curso de roupa de época pa­ra cinema e teatro, em Évora: dá-se então o grande encontro com o espartilho. «Nunca tinha feito rou­pa de época com moldes de época e fiquei fascinado.»

Seguem-se tempos de trabalho: com José Carlos, com a dupla Manuel Alves/José Manuel Gonçalves, ou no CIVEC, onde dá aulas. A conselho de José Ma­nuel Gonçalves, dedica-se cada vez mais aos esparti­lhos, de tal forma que em 2006 expõe no Fonte No­va e inicia com a Storytailors, de João Branco e Luís Sanchez, uma colaboração que ainda hoje mantém.

Em 2007, vai então para Paris. Cidade a que gosta­va de regressar. «Paris é um desejo e quem quer tra­balhar a sério na alta-costura tem de estar lá. É lá que o sonho está.» De resto, «porque não voltar ao lugar onde se foi feliz»?