O açúcar deu-lhes a volta à vida

Rui Oliveira/Global Imagens

«A vida mais doce é não pensar em nada», dizia Nietzsche. Mas, neste caso, eles pensaram todos muito bem antes de se lançarem na nova vida de bolachas, doces conventuais, chocolates e bolos de perder a cabeça. Alguns fartos das suas profissões ou do rumo que haviam tomado, outros só para se lançarem num desafio, mudaram as agulhas do percurso e atiraram-se sem medo a outros desafios onde a criatividade e a doçura comandam. Uma pitada de perseverança, outra de gosto pelo risco, criatividade qb e gosto pela mudança foram alguns ingredientes destas receitas de sucesso.

Luís Marvão, por exemplo, gosta de voos a pique. É piloto de ultra-leves e abandonou as carreiras que já tinha iniciado na engenharia aeronáutica e mais recentemente na área financeira para se dedicar aos doces conventuais. Tem 43 anos, vive no Porto, e não sabe muito bem explicar de onde lhe soou este apelo pelo açúcar. O certo é que, já na adolescência, gostava de fazer tartes de maçã que depois vendia. «Não gosto de estar sempre a fazer a mesma coisa. Não me revia na vida que estava a ter e não me sentia feliz. Arrisquei e nunca me faltou coragem. Continuar a fazer a mesma coisa anos a fio toda a vida, isso sim, é um risco. Mudar, para mim, é fácil. Não mudar é que é difícil. Fartei-me da área financeria, da crueldade e frieza desse mundo. O que é preciso é não desistir nunca e arriscar sempre.»

Há dois anos, acabou com as amarguras e decidiu açucarar a vida profissional. Criou a empresa Doces com História depois de muitas tardes passadas nas bibliotecas a perscrutar livros antigos e a investigar sobre doçaria conventual, uma das suas áreas de interesse. E não se atrapalha nada nos pontos de açúcar. Consegue tudo «no ponto», não só pela intuição mas sobretudo com a ajuda de um termómetro.

Luís selecionou a produção de doces conventuais emblemáticos e meteu mãos na massa. «A ideia é que a nossa empresa possa oferecer ao consumidor a hipótese de saborear doces como Dom Rodrigo de Lagos, Toucinho do Céu de Murça ou Camafeu dos Açores.»

Ao âmbito da doçaria associou a componente cultural, para divulgar a história dos doces. Hoje, além de aceitar encomendas, Luís trabalha com padarias, confeitarias, hotéis e empresas de catering, além de realizar workshops no Muuda, o bairro das artes, no Porto.

A história de Cláudia Freitas Bessa é um pouco diferente, mas a motivação é semelhante. Cantora lírica, dedicou boa parte dos 36 anos de vida à música, mas um dia resolveu trocar o bel-canto dos palcos pelos dias a fio na cozinha, entre os aromas dos doces no forno. Da música às compotas, biscoitos e bolachas, Cláudia deu voz a outras inspirações artísticas, primeiro por necessidade e depois por prazer. «Fazer doces é uma paixão. Sempre gostei de cozinha, mas como a minha formação sempre foi no âmbito da música, isso estava algo esquecido. Mas hoje dedico-me a 95% a este projecto.»

O projecto chama-se Doces de Cacau e tem dado que falar. Ou melhor, que comer. São bolachas e biscoitos artesanais, a par de compotas, que têm um sabor especial, talvez porque um dos ingredientes fundamentais, «é o amor com que são produzidos».

Das pautas aos livros de receitas foi «quase magia» porque num ápice a ideia começou a ganhar consistência e a ocupar grande parte da sua vida, apesar de ainda dar algumas aulas de piano. Cláudia tem formação musical, estudou na Escola das Artes da Universidade Católica e começou pelo teatro «para libertar energias e criatividade», contrariando a timidez. Entrou para o coro do teatro da Universidade do Porto, mas a doçaria cantou mais alto. A nova aventura começou há dois anos e não imaginava que a sua vida havia de dar uma volta de 180 graus. São bolachas, biscoitos e bolos, muitos deles «baseados em receitas de família, mas muitos inventados», em grande parte com pitadas de cardamomo, canela e gengibre, experimentando e criando na cozinha.

Primeiro vieram os «biscoitos de cerveja, chocolate e as areias de manteiga que foram um verdadeiro sucesso porque a repercussão foi muito positiva». Hoje são mais de cinquenta, os tipos de bolachas e biscoitos da Doces da Cacau. «A parte criativa é a que me dá mais prazer. Isso e a receptividade que as pessoas têm com a prova dos doces. É preciso gostar mesmo muito de fazer isto, caso contrário não se aguenta.»

Dos frascos aos logotipos e à decoração tudo é criado por Cláudia que conta com a ajuda preciosa do marido, Fernando, não só na cozinha como na compra das matérias-primas «de qualidade e directamente do produtor», como frutas biológicas, amêndoas, nozes, mel ou azeite».

Hoje, graças às feiras em que participam, sobretudo no Porto, vendem os produtos a muitos turistas. Resultado. Há bolachas portuguesas em locais tão distantes como a Austrália. «Nunca me passou pela cabeça que a vida desse esta reviravolta e que iria passar de manhã à noite os dias na cozinha.» O palco de Cláudia é agora a mesa de trabalho, o rolo da massa, o forno e as misturas criativas que aromatizam a casa.

Sofia Salvador tem uma coisa em comum com Cláudia: mudou de vida graças ao açúcar. A curiosidade e a criatividade que trazia da profissão de webdesigner foram essenciais para aplicar no mundo da pastelaria, entre pitadas de alguma irreverência. Uma equação que acabou por conduzi-la aos dias e noites passados na cozinha a criar bolachas, bolos e sobremesas.

A reviravolta na vida pessoal não foi fácil para esta portuense de 35 anos. Habituada ao grafismo, ao design e ao mundo cibernético, ccolocar de lado a formação em Design Gráfico foi receita difícil de confecionar. Mas, desiludida com o rumo da carreira, decidiu mergulhar de cabeça naquilo que lhe dava mais prazer: criar bolos e bolachas.

«Sei que as raízes são importantes e lembro-me que passava tardes de domingo com a minha avó na cozinha a fazer bolos e bolachas. E redescobri esse prazer de criar coisas com paixão de novo. Não estava a gostar do caminho que a minha vida profissional estava a tomar. Além disso, tinha de ter mais tempo para os meus três filhos filhos. Tive de fazer uma opção e acabei por decidir, com algum receio, sair da empresa. Isto apesar dos avisos dos amigos, que achavam que me ia arrepender.»

Mas não só não se arrependeu, como acha que fez a melhor das apostas. «Foi preciso coragem para ir em frente, porque mudar não é fácil, mas tudo começou a correr tão bem e de forma tão natural, que nem tive tempo para pensar muito.» Entretanto, juntamente com a irmã, que a ajuda nas doçarias, tirou um curso de Pastelaria na Escola de Hotelaria e Turismo do Porto, e em apenas dois anos, o negócio deu um salto que ela não esperava. «Comecei por fazer bolos e sobremesas para pessoas conhecidas. Depois, aconselharem-me a fazer uma página no facebook e foi o boom. Nunca mais parei. As pessoas adoraram e o fator “passa a palavra” também ajudou.» O negócio chama-se Pontos de Açúcar e tem um blogue homónimo (pontosdeacucar.blogspot.com), onde divulga fotografias e pequenas impressões sobre as suas criações.

No fundo, acabou por estar ligada às suas facetas mais óbvias da profissão anterior: a internet e a criatividade, sendo que a primeira acabou por ser uma ferramenta essencial de marketing.

Sofia segue a sua linha de designer para criar bolos de visual bastante simples, «muito clean, o que faz a diferença dos outros». O mesmo se aplica aos desenhos e configurações das bolachas. Passa muitas vezes noites em claro na cozinha, até porque há bolos que demoram 12 horas a produzir. Mas as diretas não a fazem desistir ou cansar. Pelo contrário. «Não estava nada à espera de tamanha recetividade, mas agora gosto tanto do que faço que nem me importo do ritmo».

O ritmo acelerado é também uma constante na vida de Mónica Pereira, uma engenheira de minas que se deixou seduzir pelos aromas e sabores da pastelaria, depois de ter vivido no Brasil. Natural do Porto, depois de seis anos a trabalhar nos Serviços de Minas do Ministério da Economia, em Lisboa, deixou de lado os recursos biológicos e os licenciamentos de explorações de pedreiras para dar voltas à massa de bolos. Estranho? «Não. A vida é um constante desafio e gosto de experimentar e conhecer outros territórios.»

«A minha formação foi de facto a engenharia de minas porque era uma área de que gostava, a par da matemática. E ainda estive a trabalhar nesse campo durante bastante tempo, mas precisava de mudar e fazer algo novo.» Umas pitadas de aventura e paixão, mais as saudades das raízes portuguesas fermentaram o caminho para criar a marca Mónica Pereira Cake Design (www.monicapereira.com.pt). «Alguma coisa mais forte me fez mudar o rumo e hoje sinto muito mais prazer e alegria no que faço, dúvida.» Essa paixão chama-se doçaria portuguesa e prende-se com as raízes afetivas de Mónica, evocando «as tardes passadas com a avó a preparar doces».

«Quando estava no Brasil comecei a fazer doces tradicionais portugueses e conventuais e a recetividade foi ótima. Decidi então abrir um negócio e foi um sucesso. Sempre senti um fascínio pela doçaria genuína portuguesa e essa foi a minha forma de preservar a memória e valores de Portugal.» E os brasileiros ficaram literalmente derretidos com os sabores do Pudim de Abade de Priscos ou do Toucinho do Céu. «Curiosamente, creio que em Portugal ainda não sabemos dar o devido valor. Nas pastelarias vemos sempre os mesmos tipos de bolos e não se aposta muito na nossa história a esse nível, que é tão rica.»

 

Fernanda Pereira e Luciano Barroso
Fernanda Pereira e Luciano Barroso

Dada a boa receção às suas criações, Mónica sentiu que «tinha de avançar com o novo desafio. Perdeu-se uma engenheira de minas, ganhou-se uma doceira e peras. «O sabor é a base fundamental e por isso devemos manter a tradição e preservar um património que é nosso e que por vezes não valorizamos como deveríamos. Eu sou uma espécie de “missionária” dos doces conventuais. É um trabalho muito duro que exige muita dedicação, sensibilidade. Hoje há imensa gente a dedicar-se a esta área e a copiar o que os outros fazem. Mas tem de haver muita paixão, magia e arte, caso contrário não se traz nada de novo.»

Os mesmos ingredientes – paixão e magia – são essenciais noutra arte doce: a chocolateria. Doce, aveludado, com texturas e sabores de fazer perder a cabeça, o chocolate deixa qualquer um derretido. Este poder de atração pode mover montanhas e mudar vidas. Foi o caso de Luciano Barroso e Fernanda Pereira, de Braga, que trocaram a arquitetura e os têxteis, respetivamente, por essa paixão antiga à base de cacau. «A ideia inicial era a de criar uma chocolataria, porque viajamos muito e achávamos que em Portugal não havia nada do género», diz Luciano Barroso. Mas o projeto original cresceu e transformou-se em fábrica de chocolate. «Inicialmente, isto nem nos passava pela cabeça.» Da arquitetura à sedução pelo cacau foi um pequeno traço. Quando avançaram com o projecto Casa Grande (www.casagrande.pt), em Famalicão, apostaram no chocolate «porque era uma área ainda mal explorada em Portugal», mas nunca pensaram ir tão longe.

Fernanda e Luciano aventuraram-se no mundo das ganaches, bombons, tabletes e trufas, apesar de, até então, apenas perceberem do assunto como consumidores. Mas, ainda assim, eles próprios fizeram questão de criar os sabores, com a ajuda de um mestre chocolateiro que foram procurar em França para dar formação em Portugal.

«O nosso conceito é a criação de produção própria», diz Luciano. Cinco anos depois têm vinte pessoas a trabalhar na empresa, e várias lojas franchisadas por todo o país, pequenos espaços em Lisboa e no Porto, parcerias com casas do vinho do Porto, preparando-se para expandir o conceito a nível internacional, com várias lojas na Europa e ainda em Luanda e São Paulo. «Não tivemos medo. Sempre acreditamos no projeto e deixamos seguir a nossa intuição natural. O resultado está à vista.»

Passaram a produzir tudo de origem, adquirindo diretamente o chocolate, «matéria-prima de primeira qualidade», em países como Venezuela, Gana ou São Tomé e Príncipe. Criaram a sua imagem própria, descortinável pelo design, e o chocolate é totalmente produzido pela empresa. «Trabalhamos muito para este projeto crescer. Já não só de dia, mas também de noite, muitas vezes. Mas a ideia, desde o princípio, foi mesmo essa. Criar um desafio para estar sempre a crescer. Era isso mesmo que queríamos.»