Sempre que há campeonatos de surf em Portugal, a voz de Nuno Jonet faz-se ouvir em todo mundo a partir das praias por onde passam as provas do WCT e do WQS, como no mês passado. Pioneiro do surf nacional, fundador da Federação Portuguesa de Surf e decano dos comentadores de surf nacionais e internacionais, Nuno já não anuncia as ondas no Hawai, mas continua a dar a voz ao manifesto.
Equilibra a circunspeção com o sentido de humor e tem a serenidade de quem já viveu muito. Nuno Jonet, 62 anos, fundador da Federação Portuguesa de Surf e o primeiro português a sagrar-se campeão europeu de Masters ¬ duas vezes ¬ foi um jovem dos seventies. Rebelde, experimentador de tudo o que havia a experimentar e, no entanto, casado até hoje com a namorada de sempre. Viciado em adrenalina, substituiu as corridas de moto pelo prazer das ondas quando lhe puseram uma prancha de surf na mão, aos 21 anos, em Angola. Esse foi o primeiro dia do resto da sua vida. Esta. Dedicada ao surf. Dentro e fora de água.
Foi pioneiro do surf em Portugal, mas o surf aconteceu-lhe em Angola, em 1973, aos 21 anos. Como foi isso?
_Eu estava na ponta da ilha, no Barracuda, a vender o meu artesanato, quando vejo aparecer uma Land Rover com canoas de várias cores em cima e três americanos cabeludos, barbudos e de óculos Ray– Ban lá dentro. Já falava bem inglês e fui perguntar-lhes quem eram, de onde vinham e para que serviam aquelas canoas. Um deles era o Randy Rarick, fundador do surf profissional, que estava a fazer uma viagem pela costa ocidental africana para mapear as zonas de surf .
O Randy Rarick teve um papel determinante no seu percurso, não foi?
_Sim, foi um mentor. Foi ele que me pôs a fazer surf e foi ele que me abriu as portas do surf mundial. Assim como o Jaques Harry e o Patrice Shaw, que num campeonato de surf em França me deram pela primeira vez um microfone para a mão e me iniciaram numa carreira que não estava nos meus planos e que dura até hoje. Mas eu e o Randy mantemos até hoje uma amizade incondicional e vários projetos em comum.
Depois desse primeiro encontro, só voltaram a cruzar-se 15 anos mais tarde.
_Sim, eu estava a fazer comentários em França e ele a competir no mundial de longboard. No ano seguinte, viu-me a trabalhar no Brasil e convidou-me para comentar os campeonatos da Vans Triple Crown, no Hawai, o que fiz durante anos. A partir de 1990, fiz todos os circuitos mundiais, porque depois de uma pessoa ser convidada para trabalhar no Hawai tem carta-branca para o resto do mundo. A minha vida tem sido à volta dos campeonatos, como speaker.
Mas como foi então a primeira onda?
_Quando perguntei para que serviam as canoas, eles olharam para a praia – a ponta da ilha era onde os cargueiros entravam no porto – agarraram na prancha, entraram dentro de água e quando passou o cargueiro e fez uma esteira, eles fizeram uma ondinha de meio metro. Disse-lhes que conhecia um sítio onde havia ondas muito maiores, as Palmeirinhas, levei-os lá. Comprei-lhes uma prancha por trinta dólares e eles ensinaram-me a surfar. Estou a ouvir neste momento, como se fosse há cinco minutos, mas foi há 41 anos, os gritos do Randy a dizer «get behind the white water, get behind the white water» (fica atrás da água branca», ou seja, fora da rebentação). Nunca mais parei de surfar.
A sua carreira foi construída sobretudo do lado de fora das ondas. De que lado prefere estar?
_Se pudesse e tivesse saúde para isso, continuava a surfar todos os dias. É bom de mais e só por uma questão física é que não se continua. Quando comecei, dizia que ia surfar até morrer, mas aos 41 anos uma hérnia discal obrigou-me a deixar de o fazer diariamente. Acabou-se o que era doce. Mas adoro o trabalho que faço, adoro ver surf e vejo os melhores surfistas do mundo em ação.
Fundou a Federação Portuguesa de Surf em 1989. Alguma vez sentiu que estava a surfar contra a maré?
Sou o sócio n.º 2, por respeito a um mais velho, o Antero Santos, pai de surfistas, que foi o primeiro presidente. As pessoas precisam de pertencer. Nós éramos uma subcultura. Tendo a federação podíamos regulamentar, promover e abrir a mais gente o prazer do surf. Quando fizemos aqui, em Ribeira d’Ilhas, o primeiro campeonato, em 1977, tivemos uma conversa tão simples como isto: guardamos as ondas para nós mais um ano ou abrimos ao pessoal e fazemos o campeonato já este ano? Resolvemos avançar, mas sabíamos que estávamos abrir uma caixa de Pandora. Tenho algum chagrin de ter ajudado a bastardizar o surf, mas…
Bastardizar como?
_No início, éramos meia dúzia, andávamos sempre à procura de alguém para não surfarmos sozinhos, hoje é preciso ser artista e ter um zebro [ri] para fazer uma onda só com amigos. Foi uma época de muito maior partilha e paixão, era tudo mais genuíno porque não havia agenda por trás. Não precisávamos de convencer presidentes de câmara de coisa nenhuma. O surf era uma subcultura e agora é mainstream. Éramos vistos como drogados, contragrão, malucos e agora somos quase salvadores da pátria. Começámos a ganhar respeito com os salvamentos. E as primeiras pessoas a considerarem-nos foram os pescadores, que nos chamavam corredores de ondas e diziam que os tipos das pranchas não apanhavam peixe nenhum mas eram gajos fixes.
Tem saudades desse tempo?
_Claro, porque aprendia-se surf por osmose, quantas amizade vi serem destruídas por alguém comprar uma prancha a meias com alguém? Dava chatice. E depois éramos novos, vivíamos apaixonados, eu tinha filhos e família, que para mim sempre foi a prioridade, mas olho para trás e não eduquei os meus filhos, cresci com eles. Estou a educar os meus netos. A parte gira, no entanto, é que os nossos filhos, filhos de hippies, portavam-se melhor à mesa de Natal e da Páscoa do que os filhos dos queques todos.
A sua família era queque?
_Um bocadinho.
Foi concebido em Paris, nascido em Lisboa, criado em Viseu e quando tinha 14 anos a família zarpou para Angola. Tantas voltas porquê?
_A minha mãe cresceu em Viseu mas nasceu em Angola, onde o meu avô, que era colono, tinha demarcado uma região na zona da Gabela e tinha roças de café. O meu pai, que era de Portalegre, foi para Viseu quando casou com a minha mãe e montou lá uma fábrica de plásticos e ferramentas. Não correu bem e, em 1966, a minha mãe achou que era melhor irmos todos para Angola, onde estavam as roças e podíamos começar uma vida nova. Fui fazer o quinto ano do liceu no Salvador Correia. Depois vieram os 15 e os 16 anos. Vivia num bairro com muitos americanos do petróleo, comecei a dar-me com os miúdos americanos e aprendi a pensar e a falar em inglês. Arranjei trabalho como operador de telecomunicações de rádio para a Cabinda Gulf Oil Company e saí de casa.
Com 16 anos?
_Dezasseis, 17. Naquela altura havia uma espécie de comunas onde se juntavam os miúdos que tinham saído de casa. O espírito era libertário. Foram anos muito bonitos. Eu, como tinha aquela influência americana, recebia coisas dos EUA, especialmente música. E fazia desporto: saltos para a água, esgrima e motocrosse. Luanda prestava-se muito a isso, saíamos umas 20 ou 30 motos à descoberta para ver até onde conseguíamos ir.
As aventuras de moto nem sempre correram bem.
_Sim, tive um acidente brutal. Em cada dez mil, só um é que se safava e fui eu. Morri três vezes, mas ressuscitaram-me quatro. Durante anos, serviu de desculpa para a minha maluqueira. Palavra de honra.
A maluqueira de sair de casa? Vivia de quê?
_Fazendo artesanato. Fazia aquele artesanato hippie: colares de missangas, pulseiras, anéis de cromoníquel e de prata retorcida, que vendia na ponta da ilha, no Barracuda, o sítio mais turístico de Luanda. E dava para viver bem.
Quantos irmãos tem?
_Uma irmã e um irmão mais velhos e duas mais novas. Sou o terceiro.
Os outros também eram hippies?
_Não. A minha irmã a seguir a mim era minha versão feminina, mas os dois mais velhos eram superatinados. E as mais novas já apanharam outra fase. Depois de me acontecer o surf, parei com as outras coisas todas. Fazia artesanato para subsistir, mas vivia largos tempos nas Palmeirinhas, com a minha mulher, que na altura era só namorada e estava grávida, e basicamente vivíamos na praia. Só vinha a Luanda quando tinha muito stock de peças feitas e precisava mesmo de dinheiro.
O surf, o amor e uma cabana?
_Mais ou menos. Ao fim de semana, servia de nadador-salvador e levava os anzois e iscos dos pescadores mais longe do que conseguiam lançar com a cana. Assim apanhavam peixes maiores e dividiam comigo. De resto, apanhávamos amêijoa e o que dava à costa. Uma noite descobrimos que havia uma fada que lavava a loiça. Deve ter sido uma noite em grande porque deixámos os pratos por lavar na areia. No dia seguinte estavam impecáveis. Percebemos que os caranguejos faziam esse trabalho por nós, de maneira que deixámos de lavar loiça.
Como é que a sua família via esse modo de vida?
_Não via muito bem. Eu era um bocadinho contragrão, mas sempre nos demos muito bem.
A sua namorada da altura é ainda hoje a sua mulher.
_Sim, a Lita. Não me pergunte como. Apaixonámo-nos tinha eu 21 anos e ela 15. Se fosse hoje, era preso. Começámos a viver juntos um ano depois. O Sol, que era o nome que eu queria dar ao meu filho mas toda a gente achava muito hippie e na altura não se podia pôr por isso chama-se Nuno José, nasceu tinha ela 17, e a Sara, quatro anos depois. Na altura levei um bocadinho nas orelhas da família porque estava a casar fora da minha classe social e ia ter problemas. Até hoje não tive, a não ser os normais por que todos os casais passam. Não conto mudar. E acho que ela também não.
Como era a sua relação com os seus pais?
_Na adolescência, tive imensos conflitos com o meu pai, mas sempre com muito carinho entre todos. A minha mãe era o esteio, o pilar da família. O meu pai era um bon vivant, como eu, nadava em todas as águas, mas nunca foi um bom homem de negócios.
E com os seus irmãos?
_Muito boa. Foi uma herança dos nossos pais, por mais diferenças que tenhamos, damo-nos muito bem. Eles são muito sociais, eu sou um desatinado, não me lembro do nome de ninguém, não faço vida social, dou dois beijos em vez de um, vivo em Carcavelos e eles em Cascais. Mas quando toca a sineta a reunir vamos todos. Vemo–nos as vezes suficientes durante o ano para não nos fartarmos uns dos outros.
Quando foi para Angola, Portugal vivia em ditadura. Tinha consciência política?
_Alguma, mas não, não tinha consciência política para ser da oposição, talvez por não ser de uma das famílias mais afetadas pela ditadura. Cá, não sentíamos a questão da perseguição e, em Angola, vivia-se de forma muito mais aberta.
Como era a relação branco-negro?
_Eu, por empatia e pela minha maneira de ser, tinha muitos amigos pretos, privava com muitas famílias africanas, falava o calão de Luanda e, quando saímos para o mato, ficávamos em cubatas, comíamos o mesmo que eles, fumávamos o mesmo que eles, íamos às festas deles, estávamos perfeitamente integrados, e algumas vezes senti necessidade de lhes dizer que tinha vergonha de estar a pisar aquele chão e ter a cor que tinha porque sabia de todas as injustiças e prepotência que tinham sido exercidas sobre eles. E quando vim embora, disseram-me: o problema não é contigo, é com os teus pais, fica connosco porque fazes parte de nós. Fui convidado para ficar nos quadros do MPLA, mas recusei. Nunca fui político.
E voltou para Portugal.
_Voltámos todos em 1975. Não quis vir fugido, não quis vir de ponte aérea. Comprei um bilhete de ida e volta para mim, para a minha mulher e para o meu filho, que tinha nascido entretanto. Viemos porque os tiroteios secaram o leite à minha mulher. Era muito pesado andar a escapar às balas. Vi coisas que não desejo que ninguém veja. Foi uma brutalidade.
Como viveu os tempos de guerra?
_Fui chamado para o exército de Angola, mas entretanto deu–se o 25 de Abril e acabei por fazer só um ano de tropa. O 25 de Abril safou-me dessa má trip. Não me safei, no entanto, dos combates à nossa volta e de ver muita gente morrer. Foi uma época muito dura, mas conseguimos surfar no meio daquilo tudo e voltar em agosto de 1975. Sem nada. A máquina de lavar as fraldas do meu filho cheia de livros e a prancha de surf: foi tudo o que trouxe de Angola. Viemos para uma casa de família que estava em risco de ser ocupada. Era um palacete na Mouraria e acabámos por ser nós os okupas. Ficámos lá cinco anos, até mudarmos para Carcavelos, para mais perto das ondas.
Na altura, os que voltavam eram chamados de retornados. Sentiu o peso desse rótulo?
_Pior era para os da geração anterior, que eram considerados portugueses de segunda. Eu não tirei muito partido de ser retornado, podia ter tirado mais, mas estava mais preocupado em encontrar ondas do que em perder tempo nas infindáveis em filas do IARN [Instituto de Apoio ao Retorno dos Nacionais]. Ainda tentei fazer artesanato, mas percebi que não dava. E como já estava metido no surf, e a loja mais próxima de artigos de surf era em Biarritz, comecei a fabricar alguns acessórios, sobretudo capas para pranchas, chops e fatos.
Foi então que abriu uma loja de surf na Mouraria.
_Sim, no palácio onde morava.Tinha muito espaço e fizemos a «fábrica» de roupa de borracha na sala de jantar, porque entretanto tinha conhecido um australiano que me convidou a ir à Austrália aprender a fazer fatos e tirar a licença para fabricar na Europa. Lá fui. Nunca mais me esqueço, foi na noite de passagem de ano de 1979 para 1980. Eu à espera de champanhe no avião e tudo o que vi foram os ingleses da British Airways de mãos dadas a cantar o God Save the Queen.
Podia estar rico se tivesse continuado no negócio dos fatos e dos acessórios de surf. Porque o deixou?
_Quando o rat race começou a ficar mais apertado – o rat race é a corrida dos ratos– e apareceram as primeiras surf shops e a caça à representação das marcas, eu já estava numa fase de saturação. Não era aquilo que queria fazer. Sim, tenho saudades de fazer os fatinhos, sobretudo por medida, nunca gostei de produzir em série e encher cabides, mas não era um industrial e nunca fui um homem de negócios. Simplesmente não era essa a minha índole.
Qual era então?
_Era mais um facilitador e um organizador. Trabalhava com a Federação Europeia de Surf e fazia a ponte entre os vários países, que tinham sensibilidades diferentes: britânicos, franceses, espanhóis. Em 1981, convidaram-me para tradutor-intérprete (falava várias línguas fluentemente) para os campeonatos europeus da Escócia e fui. Às tantas, dizem-me: «Vocês não têm federação, mas nós reconhecemos-te como representante de Portugal, queres entrar e defender as cores do teu país?» Não tinha levado prancha, mas emprestaram–me uma e acabei por ganhar o Masters.
Oscilou sempre entre um lado e outro, não foi?
_Sim, cheguei a ser indigitado para presidente da Federação Europeia de Surf, mas nunca quis essa responsabilidade. Prezava muito o meu estilo de vida e não queria ficar fechado num escritório. Aliás, quando mudámos a loja para Carcavelos, em 1983, dava-me ao luxo de pôr um letreiro à porta a dizer «gone surfing», como quem diz: «estão altas-ondas, venham cá depois». Hoje poria «gone fishing».
Nos anos 1980, primeiro em França, depois no Hawai e depois no mundo todo, tornou-se um dos mais requisitados comentadores de surf. A par disso, foi editor do Portugal Radical, colaborador da Surf Portugal, animador na Rádio Energia e até fotógrafo freelancer. O que procurava?
_E organizava surf trips e coisas do género, a Lita também virou camerawoman e trabalhava comigo. Procurava estar o mais ligado possível ao surf, que sempre foi uma paixão, e manter o meu estilo de vida. Nunca quis mais nada, palavra. Nunca me vendi bem nem nunca fui bom a fazer marketing de mim próprio. Não gosto de gabarolices, prefiro que sejam os outros a reconhecer o meu trabalho.
Diz que o microfone é uma arma. O que quer dizer?
_Uma das coisas que aprendi com o Randy é que se não temos nada de bom para dizer sobre alguém é melhor não dizer nada.
O que faz um bom comentador de surf?
_Conhecimento profundo do assunto, boa voz, doa dicção, boa memória , isenção e objetividade. Ajuda ter praticado ou praticar e manter-se atualizado. É essencial gostar do que se faz, trabalhar em equipa com os patrocinadores dos eventos, manter os atletas sempre informados e explicar o surf aos espetadores, com humor, se possível.
Como vê isto de o surf ser ter tornado um setor importante da economia, um cluster?
_Acho interessante porque cria-se uma espécie de ambiente. Se conseguirmos afirmar Portugal como a Califórnia ou Florida da Europa, o próximo passo é, mais do que o surf, trazer para o Algarve ou para o Oeste o Silicon Valley que existe ao pé de Bordéus. Temos todas as condições para isso, os criativos produzem muito melhor perto do mar e do sol.
Fenómenos como o de Garrett McNamara, que têm impacte mundial, ajudam a afirmar o surf em Portugal?
_Sem dúvida. Saiu a sorte grande à Nazaré e, por tabela a Portugal. Este é um bom filão, muito promissor, e até já existem excursões do interior do país para ir ver a «onda do MacNamara», diariamente…
Com 62 anos, ainda é hippie?
_Em algumas coisas sim. Era um estado de espírito, uma tentativa de quebrar com o marasmo e com as convenções, que eram muito rígidas nos anos setenta. Há um ditado em inglês que diz «if you remember the seventies, you’re not supposed to», ou seja, «se te lembras dos anos setenta, não devias». Realmente, andava tudo ganzado na altura, a fazer experiências.
E o Nuno?
_Eu também, mas tive a sorte de nunca entrar em loucuras que pusessem em causa a minha saúde. Não sei se por autopreservação ou se pela minha mulher e os meus filhos, que precisavam de mim, nunca abusei. Essa experimentação, na altura, fazia parte da formação do indivíduo. E depois cresce-se. Não é uma questão de ficar careta.
Tem medo de alguma coisa?
_De desapontar as pessoas com quem trabalho ou que dependem de mim. Não gosto de deixar as pessoas tristes. Medo da morte não tenho, porque é daquelas coisas que não é se, é quando, portanto quando vier logo se vê. Quando era miúdo, por causa das motos e dos saltos para a água e do surf, achava que dos 30 não passava, por isso…
Viver depressa, morrer novo. É muito anos setenta. A adrenalina era um vício?
_Sim. E quem faz surf tem de ser viciado em adrenalina, senão era impossível. O tempo que realmente se passa a fazer surf para o tempo todo de espera e preparação… Cinco segundos a fazer uma onda e vinte minutos à espera da próxima. Aquilo tem de ser muito bom e viciante para justificar aquela espera toda.
Vê nos miúdos novos o espírito que o fez apaixonar-se pelo surf?
_Isso é facílimo de ver numa pessoa que faz uma onda pela primeira vez, não há palavras, a cara que se faz mostra que o feeling é real. E é nesses momentos que fico feliz porque, se por um lado abastardizei o espírito original, por outro ajudei a proporcionar a muitas pessoas este prazer tão grande. Dá-me um gozo enorme.
Quem são as promessas do surf nacional?
_Vasco Ribeiro, Frederico Morais, Nicolau von Rupp e José Ferreira acabaram de fazer brilhantes baterias na atual temporada do Hawai. Depois virão Miguel Blanco, Tomás Fernandes, João Kopke e outros, ainda a amadurecer para enfrentarem o resto do mundo.
Olhando para trás…
_Fazia tudo outra vez. Só modificava aqueles momentos em que magoei amigos ou a família com alguma coisa menos bem pensada. Mas já viu como sou privilegiado, as coisas que fiz, o estilo de vida que sempre tive? Ainda por cima, não fiz assim tantas asneiras, porque as pessoas gostam de mim e podemos enganar algumas pessoas durante algum tempo, mas não todas as pessoas todo o tempo. E eu já ando nisto há quase quarenta anos, por isso, não devo estar a enganar o pessoal tanto assim. A verdade é que tento não viver muito de memórias. Procuro viver o dia-a-dia e o amanhã enquanto posso pensar em amanhã.
Em que pensa quando pensa em amanhã?
_Na possibilidade de ir para os Açores e se eu e a Lita nos dermos bem lá, logo se vê. Também podia ir para Singapura, ter com o meu filho Sol, para viver os últimos anos de vida, mas ainda não estou preparado. Apesar dos meus 62 anos, gosto de pensar que o melhor ainda está para vir. Não falta muito para passar o testemunho no comentário de surf, mas quero continuar sempre a trabalhar e ir ao mar todos os dias, pelo menos dar de comer aos peixinhos. Preciso de estar com o mar. Ver movimento. Ver horizonte.
E voltar a Angola?
_Vou voltar. Tenho vários projetos com o Randy Rarick lá, um dos quais mapear algumas ondas em Cabinda.
O que é que ainda lhe falta fazer?
_Escrever um livro. Já tenho título e tudo: O Surf e Eu. Mas tenho um problema: quase me apetecia que fosse publicado a título póstumo para poder pôr lá tudo. Há certas coisas que fazem parte de mim e das quais, por uma questão de pudor e de não dar maus exemplos aos mais novos, hesito em fazer publicidade. Queria que fosse inspiracional sem que fosse uma resenha de basófias. Mas logo se vê. Precisamos de uns malucos que de vez em quando abanem o barco, senão a viagem fica chata e isto vira Wall Street. O livro é uma questão de to be or not to be, mas vai acontecer, como a morte: não é se, é quando.
BASTIDORES
MAKE SURF, NOT WAR
Em Ribeira d’Ilhas decorriam as provas que levariam Vasco Ribeiro a sagrar-se campeão mundial de surf júnior. E Nuno Jonet estava a comentar as provas, tarefa que, com a serenidade de quem anda nisto há muitos anos, intercalou com a entrevista de duas horas e tal à Notícias Magazine.Mas quando da praia vinham gritos de entusiasmo, os olhos de Nuno brilhavam. «O nosso Vasquinho ainda nos vai dar uma alegria hoje.» O surf está-lhe na pele, tem saudades do tempo em que o mar era dele e de mais meia dúzia de maduros e havia tempo e espaço para a partilha, mas não se arrepende de ter democratizado este que, reconhece, sempre foi um desporto de elites.Fossem estas queques ou hippies. Make surf, not war, podia ser o lema de Nuno Jonet. Catarina Pires