Crê em pássaros eternos, rebeldes e ideais, em sonhos indestrutíveis, em espíritos que permanecem livres, e canta-os. Crê na Europa disponível para todos e que a todos integra, «ideia fenomenal que não pode morrer»; crê em si nas suas múltiplas nuances – insegura, por vezes, cartesiana, alma «meia brasileira» capaz de «uma boa bagunça». Já muito se escreveu sobre a voz, que continua doce e feliz, sobre olhos azuis, que continuam extraordinários, sobre as mil caras de Maria, atriz, realizadora, cantora, Maria sempre na fronteira. Miguel Esteves Cardoso, no início dos anos 1990, traçou, num texto da revista K, o retrato: «Maria de Medeiros é uma estrela verdadeira. Uma estrela não tem cara. De um momento para outro, passa de Virgem Maria para Maria Madalena. É inocência e podridão. Século XIII e século XX. Miúda e mulher. Maria de Medeiros é a Maria em que se estiver a pensar.» «Nunca se escreveu nada tão bonito sobre mim», diz ela.
Nos dias 4, 5, 6 e 9 de novembro esteve em Lisboa, no Porto, em Aveiro e nas Caldas da Rainha, no âmbito do Misty Fest a apresentar o seu terceiro disco, Pássaros Eternos. É a primeira aventura na composição, a que já chamou atrevimento.
_Atrevimento é a palavra certa. Sempre fui apaixonada por música, mas para mim a música sempre foi o domínio do meu pai, da minha irmã, daqueles que toda a sua vida a estudaram. Por isso, quando há oito anos comecei a fazer concertos como intérprete senti um grande acanhamento.
Antes de avançar, falou com o seu pai (maestro Vitorino de Almeida) ou com a sua irmã (Inês de Medeiros)?
_Não, não falei com ninguém. Apresentei-me às escondidas. Eles foram descobrindo pouco a pouco.
Tal como os portugueses. Como cantora ainda não chegou completamente a Portugal.
_É verdade, ando há dois anos pelo mundo com este concerto e só agora ele chega a Portugal. Depois de no ano passado ter feito na Madeira um concerto que foi uma coisa muito festiva, vou finalmente fazer a apresentação de Pássaros Eternos no continente.
Apesar do ambiente familiar, só nos últimos anos o apelo da música é tão forte, tão claro na sua carreira. Houve algum elemento mais decisivo do que os outros – um clique mental ou emocional, uma passagem na sua vida – a motivar-lhe uma mudança tão nítida?
_ Este impulso surgiu durante o Ano do Brasil em França. Tenho uma alma meio brasileira e do que vi achei que estava a dar-se uma imagem muito redutora do Brasil. Como cresci com a música do Chico [Buarque], do Caetano [Veloso], do Gilberto Gil, com aquelas letras subversivas e extraordinárias que os franceses desconheciam porque as várias adaptações até então feitas sempre trataram as letras de forma superficial, imaginei um espetáculo que repusesse a qualidade dessas canções no devido lugar. Tradutora fanática, eu própria fiz esse trabalho e assim nasceu A Litlle More Blue, espetáculo e depois disco, em que eu cantava e declamava aquelas palavras poderosas. E a verdade é que o público francês ficou boquiaberto com a qualidade literária daqueles textos.
Traduzir para tornar nosso, é isso?
_Para nos apoderarmos de algo, no bom sentido. Para o integrarmos em nós. Quando gosto muito de alguma coisa, traduzo ou desenho.
Trabalhou com Ute Lemper em Rendez-Vous Chez Nino Rota. Foi uma influência? Há intérpretes importantes na formação da sua persona musical?
_Na verdade não conheço bem a Ute Lemper e não posso dizer que seja uma influência. Marcaram-me mais, por exemplo, os espetáculos que a Lia Gama fazia e a que pude assistir. De qualquer modo, não me construí muito seguindo referências, embora tenha algumas. A Marilyn Monroe como cantora é uma gigantesca intérprete, a Liza Minnelli evidentemente, ou a Laura Betti.
Interpreta o papel de Laura Betti no filme Pasolini, de Abel Ferrara, que passou também em novembro no Lisbon & Estoril Film Festival.
_Essa é uma coincidência extraordinária que vale a pena mencionar. Integrei algumas canções da Laura Betti no concerto de Passáros Eternos, canções fenomenais que conheci graças ao Mauro Gioia e que traduzi para português e espanhol. A Laura era a atriz fetiche Pasolini e uma das suas melhores amigas. Qual não foi o meu espanto quando recebo um telefonema do Abel Ferrara a propor-me o papel de Laura para o filme. É engraçado, porque não só ele desconhecia que eu cantava coisas dela como a Laura, mulher muito ríspida, muito agressiva forte e loira, era o oposto de mim.
É diferente estar em palco como cantora ou convoca os mesmos deuses?
_Os mesmos. São disciplinas muito próximas e eu gosto muito desta ideia de estar na fronteira, de integrar vários lados. Em qualquer das situações, devo dizer que entro em palco cheia de medo, superinsegura. Não pertenço ao clube dos atores que não têm medo – sou medricas e tenho muitas inseguranças.
Fazer tudo ao mesmo tempo, saltitar entre fronteiras faz parte da historia da sua vida pessoal. A infância foi passada na Áustria, onde frequentava uma escola com crianças de vários países e etnias. Apesar disso, e de ser ainda uma criança, nunca sentiu a xenofobia?
_A Áustria não é um país fácil mas eu nunca senti a xenofobia, talvez por viver no meio de crianças de todo o mundo. O meu pai, sim, ele sentiu esse sentimento. A relação dele com a Áustria é muito forte, viveu lá 30 anos, mas ele dá conta dessa ambivalência.
Pássaros Eternos fala das cidades de hoje marcadas pela crise e de uma criança que sopra nuvens de vapor para um vidro, vendo nessas nuvens pássaros efémeros. O que os torna eternos?
_A nossa capacidade de os ver, de os imaginar. Esse é o nosso espaço de liberdade, os nossos pássaros eternos. Nasce o dia na cidade é uma colaboração com um músico excecional, pouco conhecido em Portugal mas uma mega-star em Espanha, o Raimundo Amador. É um músico cigano, um virtuoso da guitarra flamenca, que conheci num concerto e com quem criei uma bela amizade. Entre os temas que ele tinha guardados estava este, muito bonito. A letra, escrita por mim, conta a história dessa criança que observa o despertar de uma das nossas cidades da Península Ibérica açoitadas pela crise: o fluxo dos carros, a rádio que vai anunciando todas as catástrofes financeiras, o desemprego que aumenta, as bolsas que caem, as angústias de quem vive no tempo de crise. Mas essa capacidade eterna de ver pássaros, essa não no-la podem tirar.
Como olha para as políticas europeias e para as atuais agitação e crise no continente (nacionalismos, tensões étnicas) a cidadã europeia?
_Continuo a acreditar numa ideia da Europa que é fenomenal. Continuo a acreditar no sonho europeu em toda a sua diversidade, na valorização das culturas. A nossa vida melhorou muitíssimo desde que somos comunidade europeia, poder atravessar as fronteiras constituiu um enorme progresso. Mas estou dececionada e preocupada. Estes nacionalismos levam a que cada um se feche em si próprio. Não percebem que ao fecharem-se deixam de existir culturalmente, sobrando apenas meia dúzia de coisas que não interessam a ninguém. Sinto que essa belíssima ideia europeia está em perigo, mas nada vai mudar a minha convicção de que vamos conseguir manter a Europa de que eu gosto.
A crise europeia é económica e financeira ou, antes de mais, de valores, uma crise de civilização?
_A Europa não fez o suficiente para reforçar as bases democráticas – falo da educação, da habitação, da saúde – e também não fez o que devia pela criação e pelo desenvolvimento de uma classe média e o que isso requer: cultura. É evidente que o comércio não basta para manter uma democracia viva. A democracia é um sistema muito exigente, é uma escolha difícil. Talvez por isso se oiça tantas vezes o fadinho de que em ditadura é que se estava bem. A ditadura é um sistema para preguiçosos.
Faltou a paz e o pão para citar na íntegra o verso de Sérgio Godinho, atual 40 anos depois.
_Absolutamente. O tempo passa e os valores estão mais atuais do que nunca. Por isso tenho tanta admiração pela revolução do 25 de Abril. Quando olhamos para as pseudorrevoluções nos países árabes, para aquele caos, olho para trás e pergunto-me como é que conseguimos dar tamanha lição de democracia ao mundo.
Vamos a esse tempo. Chega a Portugal não muito depois do 25 de Abril, um país em ebulição, vinda da ordem e da disciplina da Áustria, tinha 12 anos. Qual foi a sua reação?
_Foi um choque, e a primeira reação foi mesmo «quero ir embora daqui», mas só a adoração pelos meus avós me manteve à tona. Portugal era o oposto daquilo a que estava habituada. Tudo muito sujo, as pessoas abraçavam-se muito, davam muitos beijos, coisas que ninguém fazia em Viena. Nos primeiros tempos apenas dizia «vamos para a nossa casa».
As recordações mais antigas são dessa casa de Viena?
_Dessa, entre muitas outras. A nossa vida nunca foi constante, o meu pai terá passado por mais de 17 casas e nós, eu a Inês, por umas dez.
Há uma diferente, especial?
_Por acaso há. Uma das casas mais extraordinárias onde vivemos era de um barão austríaco que passava o ano a caçar no Quénia. Chamavámos-lhe a casa dos cornos porque estava repleta de presas de animais, dentes de elefante que chegavam ao teto. Mas até em relação a esta casa, uma das mais constantes, havia um pormenor – tínhamos de sair durante os dois meses que o barão lá passava.
Parece um bom terreno de brincadeira.
_Era genial. Um terreno de jogo fantástico. Fazíamos ali as maiores brincadeiras por entre os dentes de marfim dos elefantes.
Lembra-se de si criança?
_Era uma criança pensativa. Acho que era muito mais inteligente na altura do que agora porque refletia numa série de coisas. Na verdade, quando se é criança tem-se mais tempo.
Até para o aborrecimento…
_Isso mesmo. Nunca mais tive ocasião de me aborrecer. E quando hoje vejo as minhas filhas aborrecidas digo para mim própria: «Que maravilha, ainda estão nessa idade.»
Na Áustria, antes do 25 de Abril, tinha noção de que em Portugal se vivia em ditadura?
_Tive essa consciência no dia da revolução. Até lá, não. Mais tarde, no meu primeiro ano em Lisboa, percebi também que alguma coisa de muito importante se estava a fazer.
O que a levou a ganhar essa consciência? Um episódio, uma conversa?
_Uma conversa. Ouvi uma conversa política e percebi que estavam a trabalhar na Constituição. Devo ter perguntado à minha mãe o que era, porque de repente ganhei a consciência de que se estava a construir uma coisa importante.
Como era a sua vida nesse primeiro ano de Lisboa, em 1976?
_Como muita gente, não tínhamos casa e os hóteis estavam cheios de pessoas que voltaram do mundo inteiro, muitas da Europa, a grande maioria de África. A minha mãe, que já trabalhava como jornalista, eu e a minha irmã vivíamos na York House, que estava repleta. Ainda lá vivemos um ano.Lembro-me de nos darmos muito bem, sobretudo eu e a minha irmã, com a representante do Herald Tribune, que também lá vivia. Foi um ano muito estranho mas em que ganhei a tal noção de que se estava a fazer algo muito importante para o futuro do país.
Nos finais dos anos 1970 andava no Liceu Francês. Crescia ao som da música brasileira e de intervenção – que homenageou nos dois primeiros discos. Em 2000, prestou tributo à revolução com o filme Capitães de Abril. Era um objetivo de vida?
_Era isso mesmo, um objetivo de vida, 13 anos de pesquisa que valeram a pena. Foi o meu pai quem, a certa altura, me passou uns textos do Salgueiro Maia nos quais ele contava a sua experiência na revolução. A história começa aí. Fui rebuscar a biblioteca extraordinária da minha mãe – devo-lhe isso – e percebi que tinha todos os livros escritos pelos militares de Abril. Comecei a trabalhar sobre eles todos dias até que fiz aquela visita inesquecível ao quartel de Santarém. Estava completamente intimidada – tinha 21 anos e ia entrevistar o Salgueiro Maia, que também não estava menos intimidado.
Dois tímidos, ele talvez mais.
_Ele era timidíssimo. Atirou para cima da secretária um turbilhão de papéis e saiu. Eu e a minha amiga Teresa Villaverde, a quem tinha pedido que fosse comigo, ali ficámos um dia inteiro a estudar e a fotocopiar aquelas preciosidades.
O que sente quando revê o filme?
_Vejo imensos defeitos, mas acho que valeu a pena. Foi um objetivo de vida que valeu todas as lutas. De alguma forma, perdi a minha virgindade enquanto artista portuguesa com aquele filme. É a primeira vez que digo isto e, curioso, só agora me apercebi desta imagem que retrata bem o que se passou. Até ter feito Capitães de Abril era uma menina querida da imprensa, sempre bem tratada. Depois do filme soube o que era ser atacada. Tinha 30 anos, já era tempo de perder a virgindade, é certo, mas foi violento. Fiquei a saber o que é levar nos dentes a sério. Lembro-me de sofrer, menos por mim do que pelo meu avô, o único que ainda vivia a ver a neta levar tanta porrada.
Valeu a pena contar a história e contá-la daquela maneira.
_Absolutamente. Também valeu a pena escapar a todos os estilismos, o que também mereceu muitos ataques da gente do cinema. Mas eu queria fazer um filme em que os militares se vissem. Em muitos dos relatos que eles escreveram faziam referência ao cinema, sobretudo a Charlie Chaplin e a Oliver Stone. E eu tentei essa mistura e também disso… je ne regrette rien.
Era de facto menina querida, proveniente de uma família conhecida, movendo-se num meio privilegiado. Tinha essa noção?
_Justamente. Sempre fomos as vitorianas, as filhas de. Profissionalmente foi importante ter escolhido um nome diferente do nome do meu pai – o Medeiros da minha avó paterna, por quem eu tinha uma adoração especial. Até porque não queria que se algo corresse mal a minha família fosse afetada.
Capitães de Abril foi um dos maiores triunfos do cinema português. Porque não continuou a realizar longas-metragens?
_Há uma grande parte do meu trabalho que não passa em Portugal. Este ano, por ideia gentil do Paulo Branco, vai passar no Lisbon & Estoril Film Festival uma pequena retrospetiva da minha carreira que mostrará trabalhos que nunca passaram aqui, quer como atriz quer como realizadora. O mais recente resultou de uma proposta da Comissão de Amnistia e Reparação do Ministério da Justiça, no Brasil e é um daqueles trabalho que nos mudaram, que afeta a nossa vida. Entrevistar a mulher e a filha de um jovem guerrilheiro assinado pela ditadura militar, depois de vários dias de tortura atroz, conhecer a história dessas duas mulheres, para quem a questão da identidade foi um calvário – nunca tiveram os papéis em ordem e viveram sem passaporte durante 40 anos de exílio – foi muito comovente. O filme ganhou todos os prémios no Festival de Gramado e este ano ganhou o prémio do Festival de Cinema Político de Buenos Aires. Já o DocLisboa não lhe achou o menor interesse.
Pulp Fiction terá sido um passo de gigante na sua carreira. Exatamente 20 anos depois, há aspetos negativos da participação no filme?
_Só aspetos positivos. Eu já tinha feito um filme que, esse sim, me fez tomar consciência da máquina americana – Henry & June (Philip Kaufman). Essa foi a minha primeira experiência americana, dispôs de meios extraordinários, e eu, jovem atriz de 23 anos, fiquei maravilhada. Ao contrário, pensei sempre em Pulp Fiction como uma produção independente, até pela forma como conheci Tarantino – num pequeno festival de cinema independente e de uma maneira muito relaxada, muito cinéfila, muito amistosa. Quando recebi aquele guião fantástico de 150 páginas, escrito de forma muito original, pensei apenas: «Vou fazer este filme porque me apaixona a aposta artística.» Nunca pensei que fosse marcar a história do cinema.
Qual considera ser hoje a marca mais importante que o filme deixou?
_O que eu mais gosto na atitude do Tarantino, que era também muito jovem, é a construção de um guião que explodiu com os cânones dos guiões hollywoodianos. Ainda hoje, Pulp Fiction é um quebra–cabeças.
Uma carreira em Hollywood não fazia parte das suas expetativas. Disse-o já várias vezes, mas as pessoas estranham.
_Eu noto que estranham e perguntam-me imensas vezes por que razão foi assim. Chego a pensar que desiludi o meu público, mas a verdade é que as minhas expetativas não eram aquelas que as pessoas esperavam ou tinham acerca de mim. Na época achava que era mais importante fazer o Capitães de Abril.
Filmou com João César Monteiro, Michel Deville, Philip Kaufman, Tarantino, Istvan Szabo, Alejandro González Iñarritu, Guy Maddin…Houve algum projeto em que esteve envolvida que lamenta especialmente não se ter concretizado, uma expetativa que falhou?
_Quando olho para trás, o que mais critico é a gestão do tempo. O tempo passa mais depressa do que se pensa. Hoje entendo a urgência do Manoel de Oliveira, mas levei tempo a compreender que tudo é muito rápido. É mesmo tudo muito rápido.
Contudo, começou muito cedo, aos 15 anos, em Silvestre, de João César Monteiro. Mas não é ainda aí que se deixa convencer pelo cinema.
_Foi fantástico descobrir o cinema pela mão do João César – o cinema dos criadores e dos autores, o cinema intimamente ligado à literatura, o cinema da provocação. Mas, de facto, nessa altura, ainda havia em mim a convicção de que faria Belas-Artes. Estava constantemente a desenhar e a pintar. Nem os professores levavam a mal porque era uma forma de estar concentrada e a ouvir. Ainda hoje é.
E a filosofia?
_A filosofia foi outro encontro inesperado. Deveu-se a um professor do Liceu Francês, apaixonado por filosofia e por teatro. Foi de resto com ele que comecei a fazer teatro a sério, com belíssimas encenações, e foi graças a ele que fui depois para Paris estudar primeiro Filosofia e, mais tarde, Teatro.
Desiludida com a Filosofia?
_Não, acrescentei-lhe apenas o Teatro. No concurso, antes do conservatório da Rue Blanche, muito rigoroso, havia uma cena imposta e uma cena livre. A cena imposta era de A Gaivota (Anton Tchekhov). Por causa das aulas de filosofia estava com tanto trabalho que só aprendi meia cena, sem sequer ensaiar. A meio da cena, precisamente quando já não sabia mais, comecei a ficar vermelha, com os olhos cheios de lágrimas. Passei, mas a verdade é que não estava a representar mas apenas nervosa.
Fica muito irritada com falhas profissionais?
_De vez em quando sai o lado austríaco, até porque sou cartesiana, a minha cabeça é formada à francesa. Mas depois o lado de mim mais brasileiro adora uma bagunça. Uma das coisas que admiro no jazz é esse jogo entre as regras e a liberdade que é a improvisação. E para o qual as bases são essenciais. A base é a condição da liberdade. A liberdade é sempre difícil porque pressupõe a existência de certas bases.
E voltamos à questão da democracia.
_Sem as bases, sem os valores que nos reúnem, não há democracia. Tudo é casa. O planeta Terra é casa. O meu desejo é que um dia possamos dizer isso. A minha pátria é a minha língua, e o meu planeta também.
Mas fala várias línguas e cada uma delas convoca nuances diferentes na forma de ver a realidade.
_É verdade, baixa um santo diferente. Como atriz verifico que cada língua transmite uma certa atitude em relação à realidade. E ao mudar de língua muda-se de personagem ou de persona. As línguas obrigam-nos a uma atitude diferente, e isso é fascinante.
Por exemplo, em castelhano, é obviamente mais alegre.
_Mais alegre, mais atrevida, mais afirmativa.
E em português?
_É a língua com a qual me é mais difícil brincar porque é mais carregada de sentimentos, de histórias, de emoções, de trejeitos. No uso da nossa própria língua somos também mais conscientes dos sotaques que temos e que nos inserem num espaço da sociedade diferente. Tudo tem muito mais significados.
Tem duas filhas, Leonor e Júlia, com 11 e 17 anos. Se elas assim o desejassem, veria algum futuro para elas em Portugal?
_Os nossos filhos sempre serão uma grande surpresa. Começo a perceber que elas realmente são de uma outra cultura, e não é por causa do espaço geográfico. Apesar de eu tentar transmitir-lhes os valores e as referências que me parecem importantes, é de facto outra era. Eu sei que elas vão armazenando coisas nossas, mas o que farão com elas eu não sei.
Como mãe, impõe regras na vida dela mais do que os seus pais impuseram na sua?
_A delas é muito mais regrada. As miúdas da geração delas têm pais muito mais preocupados com as regras do que nós tivemos.
Vive em Barcelona mas está permanentemente em viagem. Como é o seu dia-a-dia?
_Uma correria permanente. O dia de hoje, por exemplo, foi uma loucura.
Quantas entrevistas?
_Hoje, sete ou oito.
O que não pode faltar na mala?
_Na malona (nunca consegui aprender a fazer malinhas) não pode faltar um livro. E sempre que possível gosto de criar uma relação entre o livro e o local para onde vou. Li o Ulisses em Dublin, li Vargas Llosa no Peru, Onetti em Montevideu. Por vezes fico boquiaberta com as minhas filhas: nas viagens levam iPhone, iPod, computadores. É quando eu pergunto, e um livro? Elas, arrastando a voz: «OK, mas qual?»
Qual é a próxima viagem, o próximo projeto?
_Estou a escrever dois guiões e a tratar da adaptação ao cinema da peça Os Nossos Filhos, que está há dois anos a rodar por várias cidades do Brasil e que é uma proposta da jovem escritora brasileira Laura Castro. Ela e a companheira têm filhos, um adotado e dois em resultado de inseminação artificial, e a peça é, portanto, sobre as novas formas de família, questões que continuam na ordem do dia na Europa.
Neste ano, houve algum filme de que tenha gostado especialmente?
_A Jaula de Ouro, um filme mexicano realizado por um espanhol (Diego Quemada-Díez) que é uma obra-prima. Fala da emigração para os Estados Unidos, tem o fôlego dos grandes westerns e as personagens mostram uma grandeza humana extraordinária.
E um disco?
_Vários. Sou muito jazzeira e há uma génia – os brasileiros já integraram essa palavra – chamada Esperanza Spalding que está entre os melhores da música moderna. Está ao nível do Prince.
BASTIDORES
DUAS SESSÕES DE FOTOGRAFIAS
O encontro foi marcado para às 19 horas de um dia impossível para Maria. A trabalhar desde manhã cedo, contava já sete entrevistas quando chegou ao hotel combinado, algumas delas longas, demoradas. E era isso exatamente que eu lhe pedia, no final de uma dia complicado para ambas: que me falasse dela com algum tempo e paciência. Durante quase duas horas, no fim de um dia daqueles, espantei-me com a disponibilidade, com a gentileza, com a atenção que dedica ao interlocutor, com a franqueza das respostas. Estava a vê-la pela primeira vez. Maria fala muito com as mãos, com os olhos. Talvez por isso não gosta de ser fotografada enquanto conversa. Prefere a pose. Mas olha-se para as mãos e para os olhos e não se acredita na idade que tem. Antes, na sessão fotográfica, fora um modelo perfeito. Tal como no dia seguinte, em nova sessão à luz do dia.
Alexandra Tavares-Teles