Maria da Liberdade

 «Liberdade» por obra e graça dos meus pais, que são de esquerda e eram militantes do PCP. O meu pai esteve preso em Caxias. E o «Maria» foi colocado pelo senhor do registo, que não consentiu apenas o «Liberdade». Não devia estar muito feliz com a revolução.»

Nasceu a 25 de Abril de 1975 e, apesar de ter menos um ano do que a revolução, a história dela cruza-se com a história de Portugal nas últimas quatro décadas. Maria cresceu com o peso do nome, estudou, trabalhou, esteve desempregada e hoje, casada e com dois filhos, ainda coloca a hipótese de sair do país.

Maria da Liberdade Sousa Carlos completa 39 anos hoje. E tem uma vi­da inteira assente numa das datas mais impor­tantes da história recente de Portugal. Nascer naquele dia, naquela família, naquela cidade, marcou-lhe o destino. Mas não foi fácil a habi­tuação e a aceitação do nome. «O dia de anos num feriado signi­fica que, à partida, os teus amigos não estão presentes e a tua fa­mília leva-te a descer a Avenida da Liberdade. E os presentes nos primeiros aniversários? Em vez de te darem as bonecas de que gostavas, dão-te aqueles bonecos de madeira, da Festa do Avan­te!…» E ainda há a memória daquela festa de anos, aos 5 ou aos 6, com dois bolos na mesa. «Um era enorme, vermelho com uma foice e um martelo. O outro, o meu, devia ser o mais pequenino da pastelaria.»

Maria passou a infância a rejeitar a cor vermelha. Cravos, nem vê-los. Mas, agora, isso está ultrapassado. «Metade das pessoas chamava-me Liberdade, a outra metade Maria. Quando me tratavam por Liberdade era mais solta e espontânea, quando me tratavam por Maria era mais recatada. Agora tratam-me pelos dois nomes, a minha imagem de marca. E já vivo bem com a coisa.»

Em termos políticos, Maria (ou Liberdade) garante ter simpatia por quem está mais à esquerda, mas não tem filiação partidária. «A política não me cativa.» Muita coisa mudou desde os tempos do nono ano, quando ainda tinha o sonho de ser presidente da República. «Se calhar por ter nascido na data em que nasci.» Foi também por esse desejo que fez a primeira opção académica. «Na escola escolhi teatro, achei que poderia dar-me desenvoltura para falar em público.» Mais tarde, quando entrou para a faculdade, tinha três hipóteses sobre a mesa: Psicologia, Antropologia e Teologia. Ganhou a segunda, porque não tinha as disciplinas necessárias para a primeira. Esteve um ano parada e depois descobriu o voluntariado.

Os anos de universidade (de 1994 a 2000), no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), em Lisboa, foram de mudança. «Foi na altura em que as pessoas mais significativas da minha vida, as mais velhas, foram adoecendo e morrendo. Foi um processo difícil de digerir. Cresci à força e com perdas.» E voltou a sentir na pele o peso do nome: «Numa faculdade e num curso que tem como base fundamentar o período colonial, houve alturas em que senti crispações. Ouvia umas bocas.»

Um ano depois da licenciatura, entrou no mercado de trabalho. Deu aulas de História e Geografia de Portugal, trabalhou em projetos ligados à inserção social e cidadania, estudou o papel das mulheres ciganas na sociedade, esteve dois anos desempregada e está, desde 2008, na ACM/YMCA de Setúbal, uma IPSS onde, como antropóloga, desenvolve intervenção social e comunitária.

Há uns anos, Maria da Liberdade sonhava trabalhar em África. A ideia ainda não desapareceu. Ela e o marido, José Santos, ainda pensam nessa possibilidade, sempre com os filhos Rodrigo e Vicente na «bagagem». É que os tempos não estão fáceis…

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DUAS HISTÓRIAS QUE SE TOCAM

 1975

Maria da Liberdade nasce às 14h45 do dia 25 de abril. Nesse dia, os portugueses votam pela primeira vez de forma livre e com sufrágio universal para a Assembleia Constituinte. O PS vence.

1981

Maria entra para a primeira classe. Boom na indústria discográfica portuguesa: sete milhões de cópias vendidas. O álbum de estreia dos Táxi faz sucesso. No ano anterior. Rui Veloso lançara Ar de Rock.

1987

Aos 12 anos, toma a decisão de se batizar depois de atingir o terceiro catequismo. Mas os pais não a deixam ir para os escuteiros. «Para os meus pais, era a continuidade da Mocidade Portuguesa.» Em finais de fevereiro, em Setúbal, decorre o funeral de Zeca Afonso, o cantor de intervenção sempre associado ao 25 de Abril.

1990

Maria escolhe a opção de Teatro no nono ano de escolaridade. Perde a madrinha, uma das pessoas mais importantes da sua vida. Vai viver para Lisboa. Surge a famosa Prova Geral de Acesso ao Ensino Superior (PGA). Os protestos estudantis começam a sair à rua.

1991

Maria, 16 anos, faz parte do grupo de jovens da paróquia de Alfragide. Assiste à missa que o papa João Paulo II celebra no Estádio do Restelo. Em junho, em Lisboa, Portugal sagra-se campeão mundial de juniores em futebol. Em novembro, dá-se o massacre no cemitério de Santa Cruz, em Díili, Timor-Leste.

1994

Maria entra no curso de Antropologia Cultural, no ISCSP, na Universidade Técnica de Lisboa. Volta a viver em Setúbal e começa a namorar com José Santos, com quem casará. Grandes protestos contra as portagens da Ponte 25 de abril.

2000

Termina o curso, especializa-se em Relações Etnoculturais. Bolsa de Valores de Lisboa começa a negociar em euros. Princípio do fim do escudo.

2001

Primeira experiência de trabalho remunerado, num livro sobre mulheres que queriam criar o primeiro negócio. Começa a dar aulas de História e Geografia de Portugal. O Porto é Capital Europeia da Cultura. A queda da Ponte Hintze Ribeiro, em Entre-os-Rios, mata 59 pessoas.

2002

Casa-se com José, depois de oito anos de namoro. Nos anos seguintes, trabalha com associações de áreas socialmente frágeis em Setúbal. Apoia a coordenação do projeto Março Mulher. Em maio, Timor-Leste torna-se oficialmente um Estado independente, causa apoiada desde os anos 1990 por Maria da Liberdade e pela sociedade portuguesa em geral.

2004

Esteve dois anos desempregada, fez um curso de formação de formadores, teve mais experiências de voluntariado, fez parte de um grupo sociocaritativo no Bairro da Bela Vista, colaborou com centros de explicações e deu apoio escolar na área da História e Geografia de Portugal. O Campeonato da Europa de Futebol foi o maior evento desportivo de sempre realizado em Portugal. A seleção nacional ficou em segundo lugar, perdendo a final para a Grécia, por um a zero.

2007

Maria tira a carta da condução e colabora com um projeto do Programa Escolhas, sendo responsável pelo Centro de Evolução Digital. A despenalização do aborto é referendada. Em maio, Madeleine McCann desaparece na praia da Luz, no Algarve.

2008

Começa a trabalhar na ACM/YMCA de Setúbal. A entrevista era para técnica do Rendimento Social de Inserção, mas a formação em Antropologia leva-a a fazer uma substituição, por licença de maternidade, no centro comunitário da instituição, onde ainda hoje se mantém. O computador Magalhães, um projeto do governo socialista, torna-se um caso sério de popularidade. Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, chega ao cinema.

2009

Nasce Bernardo, o primeiro filho. O Tratado de Lisboa entra em vigor

2012

Nasce o segundo filho, Vicente. Nenhum é batizado, mas Maria garante que isso acontecerá ainda em 2014. Guimarães torna-se Capital Europeia da Cultura, juntamente com Maribor, na Eslovénia. Morte de uma das figuras mais emblemáticas da televisão portuguesa, o historiador José Hermano Saraiva, um dos rostos do Estado Novo.