
Trabalha a autoestima, o autocontrolo e os sentimentos positivos com crianças para evitar comportamentos de risco futuros. A PREVENIR funciona em Portugal há dez anos, já envolveu mais de dez mil crianças e este ano chegou a Espanha.
Não se deve empurrar os amigos e não se deve morder.» O óbvio para um adulto pode não o ser para uma criança de 5 anos, mas Mariana sabe que isso significa «portar-se bem». E por ter-se portado bem, esta semana é a chefe da turma, o que lhe dá direito a sentar-se ao pé da Nina, a boneca que, com o companheiro Nino, são as referências mais importantes para as crianças da escola EB1/JI de Casal de Cambra, no concelho de Sintra. «O Nino ensina-nos a não fazer birras e a cumprir as regras da sala», diz Rubem, de 6 anos, enquanto pinta um desenho do boneco.
Na verdade, quem impõe as regras é a educadora Fátima Rocha, com a ajuda da Nina e do Nino, através da implementação do «Pré: Programa de Competências», criado pela PREVENIR, uma organização não governamental (ONG) fundada há dez anos pela socióloga canária Lorena Crusellas.
O Pré, para crianças em idade pré-escolar, começou a ser implementado em várias escolas dos concelhos de Cascais, Oeiras e Benfica em 2006. Na EB1/JI de Casal de Cambra utiliza-se desde o ano passado e, de acordo com Fátima, facilitou muitos dos avanços conseguidos com estas crianças em termos de comportamento. «Esta escola está num bairro muito carenciado e com muitos problemas», conta, explicando que o aumento do desemprego tem vindo a deteriorar a vida familiar de muitas das crianças que educa. Sem revelar o nome, conta que um dos meninos da turma tem o pai na prisão, outro «vive sozinho com a mãe e chegou sem regras, batia e era muito conflituoso». Porém, depois de um ano com o Nino e a Nina – isto é, seguindo as fichas e técnicas criadas pela PREVENIR – o miúdo diz que adora vir à escola, que o que mais gosta é de jogar à bola e que já é amigo de todos. O que não impede que de vez em quando, como agora, tire o lápis ao colega do lado que, impedido de desenhar, vem apresentar queixa. Um olhar da educadora é o que basta para que peça desculpa. «Viu? É isto que ensina o programa, o autocontrolo, os limites; percebem desde pequenos que no mundo há regras que devemos cumprir», explica Fátima, a quem a criança repreendida, minutos depois, vem dar um beijinho. «No fundo, o que acontece é que são miúdos muito carentes. Este ano termina o programa com estes, que passam para a primária, mas mesmo que a câmara não continue a apoiar o projeto, continuarei a implementá-lo, porque o Nino e a Nina foram fundamentais para o ensino dos valores», conclui Fátima.
Desde 2002, quando nasceu a PREVENIR, mais de dez mil crianças em Portugal já beneficiaram desta forma lúdica de aprender a portarem-se melhor. A ONG foi criada, conta Lorena Crusellas, a fundadora, porque sentiu a falta de «programas longitudinais e estruturados de prevenção e promoção da saúde em Portugal». A socióloga, que chegou ao país em 2001 para fazer um estudo no Observatório Europeu da Droga, com sede em Lisboa, sobre programas de prevenção em meio escolar, apercebeu-se de que «em Portugal só existiam intervenções pontuais». E foi um passo até criar, com o psicólogo português Paulo Moreira, o projeto «Crescer a Brincar», destinado às crianças do primeiro ciclo do ensino básico. Um programa de quatro anos em que se tratam assuntos tão importantes como a autoestima, o autocontrolo e a gestão dos sentimentos, e para o qual foram produzidos uma série de manuais para cada ano – incluído um para o professor –, editados pela Porto Editora. Marta Costa da Cruz, uma das psicólogas da PREVENIR, explica a importância destes manuais: «São apelativos e divertidos e muitos miúdos aprenderam a ler graças a eles. Adoram as aulas de “Aprender a Brincar”, porque podem falar, desenhar e ler as histórias de Lupinha, uma lupa que no fundo os ensina a investigarem-se e a conhecerem-se, a si e aos outros».
Em Cascais, a Escola Básica n.º 1 de Alcoitão, num dos bairros problemáticos do concelho, aplica o programa «Crescer a Brincar». Catarina Ribeiro, uma das professoras do 4.º ano, conhece de perto a realidade dos seus alunos. «Há muito desemprego, delinquência, alguns têm os pais na prisão, outros pertencem a famílias completamente desestruturadas». E é por isso que para ela o programa é fundamental. «Desde o primeiro ano fazem uma alfabetização emocional que é essencial em termos estruturais para estes miúdos que estão num ambiente socioeconómico e afetivo muito desfavorável.» Quando começaram, há três anos, nem sequer conseguia mantê- -los sentados nas cadeiras, insultos e palavrões faziam parte da linguagem corrente, o respeito mútuo e a autestima rareavam. «Infelizmente, não é de espantar, dado que, no bairro onde vivem, quando se pergunta o que querem ser quando forem crescidos alguns respondem… “ladrões”.» Daí que uma das matérias mais trabalhadas seja a ética e a ideia de que é preciso esforço para obter as coisas.
É nisso que aposta a PREVENIR. «Primeiro, têm de aprender a autocontrolar- -se, a conhecer os limites e as regras», diz a psicóloga Marta, que acompanha a visita. Não é a primeira vez que cá vem. O programa prevê um acompanhamento mensal, para resolver dúvidas e avaliar. Até agora tem corrido bem. Um dos miúdos explica que o programa «ensina a não bater nos outros» e embora não pareça completamente convencido, lá acaba por reconhecer que não, bater não é forma de resolver os problemas. «Já é alguma coisa!», observa a professora.
Entretanto, os colegas desenham a história do caracol Caracolino, que leva a casa às costas e por isso ao fim do dia fica muito cansado. É através de histórias como esta que crianças de 9 e 10 anos aprendem. Hoje trata-se do peso das responsabilidades e da melhor maneira de o carregar. Outro dia, através de estrelas que decoraram em casa com a família, debateram a importância dos valores invisíveis. «E são quais?», perguntava a professora. «A família», respondeu a maioria deles, mesmo que a de muitos seja complexa. Um conceito que trabalharam na aula do «Crescer a Brincar», em que aprenderam a respeitar-se e o que é mais importante: a sentirem-se valorizados. «Ouvimos o que cada um tem para dizer e isso é muito importante para eles», explica a professora Catarina. A conversar, a ouvir e a seguir os jogos e práticas educativas do manual, estes miúdos que «de outra maneira teriam o futuro muito comprometido» conseguiram transformar-se «numa grande família». E essa união levou-os a conseguir algo nunca antes conseguido por uma turma de 4.º ano desta escola: chegar à final do jogo do mata, que é já amanhã:. «Querem ganhar?» «Com certeza!», respondem quase em uníssono. «E se perderem?» «Não faz mal, o importante é termos chegado tão longe», quem responde é Inês, loira, óculos grandes, vestida de rosa, uma cor de que não gosta, e tão tímida que lhe transpiram as mãos. Tem como melhor amigo o seu cão Teddy, mas já aprendeu a ter amigos na escola, a participar mais e a apoiar-se nos seus colegas. «Aqui se alguém está mal, rapidamente vamos ter com ele para ver como podemos ajudar», diz baixinho. «Não teríamos conseguido isto sem o “Crescer a Brincar”», reconhece a professora.
E o que acontece depois do 4.º ano? A Câmara Municipal de Cascais, a primeira a apostar no PREVENIR, pediu à associação que desse continuidade ao programa no segundo ciclo. Daí nasceu «Eu Passo», o programa «dos crescidos», que começou em 2008. São dois anos que podem realizar–se entre o 5.º e 6.º ou o 7.º e o 8.º. Na Escola Secundária Professor José Augusto Lucas, em Linda-a-Velha, no concelho de Oeiras, começou no ano letivo de 2012-2013.
Aqui a turma não é problemática nem está inserida num bairro difícil, mas não é por isso que a ação da PREVENIR deixa de fazer sentido na formação de crianças e jovens. «Neste caso, trata-se de fomentar estilos de vida saudável: uma boa alimentação, a prática de desporto e o estudo para evitar, entre outras coisas, o abandono escolar, a violência ou o consumo de drogas», explica Margarida Barbosa, também psicóloga, vice-presidente de PREVENIR e responsável pelos concelhos de Sintra e Oeiras. «Nunca sabemos onde e quando pode aparecer um comportamento de risco, daí a importância de estarmos sempre atentos».
À porta da escola está à espera a professora de Educação Física, Ana Lucia Gutierres, diretora de turma e encarregue do programa que considera «tão fundamental» que nem os cortes na educação a fizeram desistir dele. Os 45 minutos semanais de «Eu Passo» começaram por ser dados na disciplina «Educação para a Cidadania», eliminada este ano pelo Ministério da Educação, mas que a escola fez questão de manter porque a considera imprescindível para o desenvolvimento saudável dos alunos. «Nestas idades, a pressão dos pares é muito forte, assim como a influência das amizades», diz a professora. Daí o nome «Eu Passo», para «evitar comportamentos negativos e fomentar uma componente social favorável.»
Parece estar a resultar. Uma das atividades do «Eu Passo» nesta escola consistia em vestir t-shirts brancas e escrever elogios aos colegas de turma. E apesar de reconhecerem ter sido mais fácil quando se tratava de amigos, todos foram para casa com as T-shirts cheias de frases bonitas. Por exemplo? Inês, 14 anos, jogadora de básquete e atrevida, escreveu na T-shirt do Pedro, 13 anos, guarda-redes do Real Massamá e cujo sonho é jogar um dia no Manchester United, «é sexy». Risos, até da professora. Pedro não se lembra do que escreveu na T-shirt de Inês – ou não quer dizer – mas lembra-se de outra atividade: fazer corações de origami para entregar à pessoa da família mais importante para si. Ele entregou o dele à avó. E embora confesse que o que gosta menos é de estudar, garante que os 45 minutos semanais de «Eu Passo» lhe servem para se convencer de que é algo que tem mesmo de fazer, «pelo meu bem».
«Haverá algo mais importante do que uma criança saudável e feliz?» A pergunta de Lorena Crusellas é um desafio. Haverá?
INVESTIR NA EDUCAÇÃO
Prevenir comportamentos de risco é mais fácil quanto mais cedo se começar a trabalhar com as crianças. Esta é a conclusão da PREVENIR, que há mais de uma década se dedica à prevenção de comportamentos de risco, como o abandono escolar, a violência ou o consumo de drogas, desde os primeiros anos de vida. A ONG liderada pela socióloga canária Lorena Crusellas tem quatro programas: «Pré: Programa de Competências» (para crianças dos 3 aos 5 anos), «Vamos Cuidar de Nós» (dos 6 aos 8 anos), «Crescer a Brincar», com o qual tudo começou, dedicado aos alunos do primeiro ciclo, e «Eu Passo», para fomentar os hábitos saudáveis nos jovens entre o 5.º e o 8.º ano. Está presente em concelhos como Cascais, o primeiro a tornar-se seu parceiro, Oeiras, Sintra, Lisboa (Benfica), Lagoa, Loulé, São Brás de Alportel ou Mirandela e brevemente chegará a Amarante e Murça, mas o desafio é chegar a todo o país, agora que conseguiu exportar o programa destinado à pré-primária para Tenerife e Oviedo, em Espanha. Conta com apoios como o da Fundação EDP, Baxter Foundation, El Corte Inglés, Johnson Wax, SUMOL+COMPAL, mas todos são bem-vindos, uma vez que o trabalho da PREVENIR passa por formar professores, editar manuais e acompanhar o desenvolvimento dos programas. Um bom investimento, se pensarmos que os programas custam apenas entre 25 e 35 euros por criança por ano e podem significar um presente e futuro melhores. «O investimento na educação das crianças tem de ser uma prioridade, até em tempos de crise», conclui Crusellas.