Lutos reais

Notícias Magazine

Não conseguiria pôr por palavras o que é o «amor». Fazer daquelas descrições bonitas e certeiras, que parecem tão fáceis de dizer, mas que necessitam de uma boa dose de inspiração e outra boa dose de experiência. Para isso, recorro aos grandes poetas e escritores. Por imagens, muito menos. Não saberia por onde co­meçar. Ao invés, olho para os quadros que pintaram os mestres.

A única coisa que sei e posso dizer, assim de chofre, é que ao «amor» nunca poderá equivaler a morte, porque a ele equiva­le sempre a vida. Quer nos refiramos ao «amor carnal», ao «amor fraternal», ou a qualquer outro tipo de amor. Isto porque na sua base está algo que é a essência da vida. Todo o amor corresponde à criação de algo e não à sua destruição. Se o amor matar, é por­que não era amor. Era outra coisa qualquer. Nefasta, feia, torpe. No amor, ninguém é de ninguém. Aliás, de nosso só a própria vi­da. A de mais ninguém.

É um mal que se conhece desde que a humanidade existe, o diagnosticar-se erradamente amor por alguém. Pensa-se que sim, que amamos a outra pessoa e que a outra pessoa nos ama e proce­demos de acordo com o que achamos serem os arrebatamentos e achaques amorosos. Mas a linha entre amor e essa outra coisa que se faz passar por ele é ténue e subtil. Facilmente se confundem. Então, constrói-se uma vida com outra pessoa baseada na premis­sa de que ali há amor. De que há um laço que duas pessoas ataram por vontade própria, com um nó firme, mas não demasiado aper­tado. Qualquer safanão brusco, pode desatar esse nó, que é delica­do. E se o amor acaba, ou se aquela ligação fina e estreita se que­bra, há um luto a fazer. Um luto que deverá ser tão metafórico quanto o nó que se desfez.

Lamento perceber, pelas notícias que leio, que tantos en­ganos levem a tanto sangue derramado, por um amor que nunca o foi. Os lutos reais sucedem-se. Um matou o outro, porque o outro já não era seu. Porque nunca foi seu. Porque não podia deixar de ser seu. O engano da posse. Nalguns casos, a este sentimento de posse que não olha a diferenças de género e que acomete tanto a um co­mo ao outro, acresce um código de honra que dita que a mulher é pertença do homem, nunca o podendo desonrar, nunca se poden­do dele separar. Queria acreditar que já não se pensa assim nos dias que correm, pelo menos, que uma maioria já não se revê neste «có­digo de honra». Que não se acha que o facto de uma mulher se que­rer separar do seu marido, qualquer que seja o motivo, seja razão para punição com a própria vida.

O pior é que me parece precisamente isso, ao ler as caixas de co­mentários a mais uma notícia de um homem que matou a sua mu­lher. Notícias que teimam em repetir-se, mudando os nomes, as ida­des, as terras, mas deixando a constância da violência gratuita e sem nexo. O equivalente às conversas de café, as caixas de comentários na rede fazem-se essencialmente de pessoas que conversam entre si acerca da vida alheia, deixando revelar mais sobre a sua própria vida do que desejariam. Quando se encontram justificações para a acção do homicida que desembocam na suposta conduta moral da mulher morta, estão a perpetuar-se as crenças e os enganos que le­vam ao desrespeito dos mais básicos direitos humanos.

 «Amor» não casa com «dependência», da mesma forma que «respeito» não é sinónimo de «obediência». São coisas diferentes em valor e grau. E geram reacções diferentes perante as adversi­dades. Ninguém é de ninguém. Estamos uns com os outros. E fa­zemo-lo porque queremos e porque a presença do outro nos com­pleta, nos faz sermos pessoas melhores. Mas se a sua ausência faz de nós assassinos, então é porque nunca soubemos amar.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA

[Publicado originalmente na edição de 18 de Maio de 2014]