Fim à mutilação genital feminina

Por tradição, razões estéticas ou deleite dos maridos, ainda se cortam os genitais a meninas e a mulheres. Muitas são cidadãs portuguesas, alerta a antropóloga Alice Frade. Todos somos poucos para acabar com este crime.

O que é que os portugueses precisam de saber sobre mutilação genital feminina?
Todos devem saber que no país existem mulheres de várias idades, incluindo crianças, que sofreram mutilação genital feminina (MGF) e que muitas delas têm nacionalidade portuguesa. Por esta razão, é fundamental que os profissionais das áreas da saúde, educação e intervenção social tenham conhecimentos específicos sobre este tipo de crime (artigo 144 do Código Penal) e saibam o que fazer para prevenir, intervir e sinalizar. Não podemos continuar a ter médicos e enfermeiros que observam uma mulher com mutilação e pensam que ela tem uma malformação congénita ou que teve um parto mal feito.

Para que os leitores não tenham dúvidas, quando falamos em MGF estamos a dizer que há crianças, raparigas e mulheres a quem cortam o clítoris, os pequenos e os grandes lábios. Muitas também são sujeitas a um estreitamento da vagina e a outras práticas que alteram os seus genitais, todas dolorosas, traumatizantes, perigosas e atentatórias dos direitos humanos. É isto?
Sim, a OMS identifica quatro tipos de MGF que contemplam outras lesões, além dos cortes totais ou parciais do clítoris, pequenos lábios, grandes lábios e do estreitamento da vagina. Por exemplo, punções, perfurações e escarificações dos genitais e até o seu alongamento ou cosedura. Não precisa de haver corte. Qualquer intervenção feita nos genitais de uma menina ou de uma mulher por razões não médicas é uma mutilação. Está tudo descrito na Declaração Conjunta para a Eliminação da MGF, um documento que foi distribuído em Portugal aos políticos, profissionais de saúde e órgãos de comunicação social e que pode ser consultado na internet por qualquer pessoa. O alto-comissário para os refugiados, António Guterres, foi um dos subscritores. Também distribuímos, aqui e na Guiné-Bissau, em Moçambique e em Angola, o manual de formação para profissionais de saúde.

Que crenças sustentam a MGF?
Atualmente, a MGF já é entendida pela maioria das pessoas como uma prática violadora dos direitos das meninas e das mulheres. Mas quando é realizada nas comunidades de origem – países africanos, asiáticos e do médio oriente – serve para garantir a integração e o reconhecimento social das mulheres e o seu futuro: casar, ter filhos, cuidar e servir a família.
Nessas comunidades, as mulheres são excisadas para garantir que os seus genitais são bonitos (uma dimensão estética); que o clítoris ou os grandes lábios não tocam na cabeça do bebé no momento do nascimento (acredita-se que provoca doenças); que são intocáveis até ao casamento (crê-se que preserva a virgindade e depois a fidelidade); para aumentar o prazer sexual do marido (mais uma crença), etc. Nalguns países a única razão é discriminação de género.

É mais uma forma de controlo social das mulheres?
Sim. Há práticas tradicionais nefastas que só persistem porque são realizadas sobre mulheres. A MGF é uma delas, os casamentos forçados, a troca e venda de noivas são outras. E o que é mais chocante é saber que alguns países onde estas coisas acontecem recebem apoios importantes da comunidade internacional para a saúde e educação mas os líderes dos Estados doadores não têm tido a capacidade de trazer estes temas para a agenda política, o que é fundamental.

Em que idade é que as meninas mutiladas?
Depende, o mais comum é entre os dez e os 14 anos. Nalguns casos, faz-se logo à nascença. Sobretudo nos países onde já existe uma lei que proíbe a MGF. Assim, o crime é mais facilmente encoberto e quanto mais pequena for a criança menos força tem e menos resiste.

As mulheres que se lembram da sua mutilação genital contam que sofreram horrores. Nós não conseguimos imaginar, pois não?
Claro que não. Nunca me esquecerei do relato de uma mulher que vive nos arredores de Lisboa e que me contou como foi a sua mutilação. Primeiro, passou vários dias amarrada e ajoelhada para aprender a obedecer; depois foi obrigada a comer deitada, sem olhar nos olhos das pessoas mais velhas, para aprender a respeitar. Finalmente, um dia, foi agarrada e imobilizada por várias mulheres que lhe prenderam os pés, as mãos e o tronco e foi cortada com uma faca (podia ter sido outro objeto cortante, um vidro ou uma lata). A história desta mulher é uma história de violação dos direitos mais básicos e ela sabe isso. Ainda assim, por causa dos fatores associados à sua cultura e religião, cada vez que fala do assunto ela sente que está a atentar contra a suas raízes, contra as tradições do seu povo.

Como se estivesse a negar a sua identidade?
Exato, e essa é uma das razões por que temos dificuldade em encontrar mulheres que falem sobre o tema. O medo de represálias é outra. Em Portugal, algumas mulheres que falaram publicamente da MGF sofreram retaliações da sua própria comunidade. E não será por acaso que não há nenhuma associação de mulheres originárias de países onde existe MGF cujo trabalho central seja as práticas tradicionais nefastas. A APF tenta trabalhar com as mulheres para que elas possam assumir um papel de destaque nas associações mas é muito difícil.

No mundo, estima-se que existam entre cem e 140 milhões de raparigas e mulheres com MGF. Um número alarmante?
Assustador. Quantos Costa Concórdia precisam de afundar para termos a dimensão da tragédia da MGF? E alguém conhece algum líder tradicional, primeiro-ministro ou presidente da república que tenha sido julgado porque no seu país cinquenta por cento das mulheres são mutiladas? É certo que muitos países aprovaram legislação proibitiva e desenvolvem trabalho direto nas comunidades – é o caso da Guiné-Bissau –, mas ainda há um mundo de coisas para fazer até acabarmos com esta prática. E têm de ser as próprias comunidades a dizer não.

Na Europa estima-se que quinhentas mil mulheres tenham sido mutiladas e que 180 mil raparigas estejam em risco. Portugal também é um país de risco?
Portugal recebe migrantes de países onde a MGF existe e muitas meninas, incluindo algumas nascidas no país, estão em risco. Pensa-se que a maioria será sujeita à intervenção nos países de origem – antes de virem para Portugal ou durante uma deslocação nas férias, por exemplo à Guiné-Bissau. Cá, também haverá locais onde se pode fazer.

A MGF envolve grandes riscos para a saúde e pode levar as raparigas e as mulheres aos hospitais.
Pode provocar a morte. Mas cá, quando há infeções, hemorragias, dores e outros problemas, parece que as pessoas contornam o sistema. Ouvi um responsável da embaixada da Guiné-Bissau dizer num programa da RTP África que quando a mutilação é feita no país de origem e as complicações se manifestam no regresso a Portugal, o que a comunidade fará é recorrer aos profissionais de saúde guineenses que exercem cá.

Os médicos nunca devem realizar atos de MGF, mas há quem defenda que se o fizerem, em boas condições de higiene, as meninas e as mulheres correm menos riscos. O que acha disto?
Não podem, todos os organismos e associações médicas internacionais o proíbem. Mas nalguns países, no Egito, por exemplo, muitas mulheres são sujeitas a mutilação praticada por médicos.

Uma coisa é ler ou falar sobre MGF outra é conhecer essa realidade. O que é que já viu e o que sentiu?
Na Guiné-Bissau, da primeira vez, vi morrer uma menina de 17 anos, e os seus bebés, devido a um trabalho de parto que se complicou por causa da mutilação genital. Mais tarde, conheci uma rapariga de 18 anos que tinha sido banida da família porque tinha uma fístula obstétrica, com odor. Uma consequência do que lhe tinham feito e não havia meios para a tratar nem dinheiro para a enviar para o Senegal. Também morreu e deixou um recém-nascido órfão, de que ninguém quis cuidar. Aquelas duas mulheres sofreram horrores e nunca se queixaram. As que são mutiladas e não morrem também não se queixam. É destas sobreviventes que depende a vida da família e da comunidade – são elas que cultivam, vão buscar água e lenha, cozinham e lavam, cuidam dos maridos e dos filhos. Perante mulheres desta grandeza, não faz sentido falar das minhas lágrimas contidas.

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QUEM É ALICE FRADE?

É  antropóloga e já trabalhou com mulheres forçadas à mutilação genital feminina. Actualmente é directora executiva da P&D Factor – Associação para a Cooperação sobre População e Desenvolvimento. Até 2012, foi responsável pelo Departamento de Advocay e Cooperação para o Desenvolvimento da Associação para o Planeamento da Família.

 

Entrevista publicada originalmente na Notícias Magazine de 5 de Fevereiro de 2012