Eu já citara Novo Mundo Mundo Novo, de bocadinhos que lera. Nos anos 90, escrevi Os Primos da América, reportagens sobre os portugueses dos Estados Unidos, e, claro, falei da mesma viagem feita por António Ferro, para o Diário de Notícias, mais de 60 anos antes. Esta semana encontrei num alfarrabista um exemplar do livro de Ferro, 30 euros, de capa em vermelho gasto. Nem o modernista amigo de Pessoa, nem o propagandista de Salazar, mas o jornalista que tratava o leitor como companheiro de café. Ora, por estes dias, os 150 anos do DN já me tinham levado a ler reportagens de António Ferro (1895-1956). Viciei-me em segui-las com um terceiro amigo, Mr. Google, não sei se estão a ver.
Na primeira, estava eu e o Ferro – e ele começava assim: “Chego a Munique…” – era Outono de 1930 e íamos ter com Adolfo Hitler. Uma entrevista falhada, Hitler, nas vésperas de ser aquele que o jornalista não se dá conta, liga pouco ao português. Mas uma reportagem fantástica, pelo olhar atento e estilo moderníssimo de Ferro. Foi aí que comecei a viciar-me a apanhá-lo na curva. Ele ia comprar uma foto, entrava no estúdio e descrevia as loiras com minúcia. Mas não se dava conta que aquela garota, filha do fotógrafo Henrich Hoffmann, é Henriette e iria ser a mulher do gauleiter da Áustria e que a outra loira é provavelmente Eva Braun… Ele não sabe que o seu cicerone desengonçado, Ernst Hanfstaengl, é o pianista de Hitler, vai traí-lo e tornar-se conselheiro do presidente americano Franklin D. Roosevelt… Eu e Mr. Google, que conhecemos o futuro, riamo-nos.
Agora, com Novo Mundo Mundo Novo à cabeceira, volto a sentir-me Deus. Naquele ano de 1927, atravessando a América, Ferro vai no comboio e fala com o seu ocasional companheiro de viagem. O olho de repórter nota a máquina ao lado do americano, um Cine Kodak. O jornalista mundano reconhece, quando o outro se apresenta, Cornelius Vanderbilt Jr, da família milionária, e que também é jornalista. Mas o que falha António Ferro – Mr. Google abana a cabeça, incrédulo – é que o americano, em 1933, irá filmar (com aquela Kodak?) o primeiro documentário anti-nazi americano. Há uma cena em que Vanderbilt pergunta a Hitler, no Palácio de Desportos, em Berlim: “E os judeus, Excelência?” Adolfo Hitler responde-lhe: “Fale com ele, que lhe dirá tudo sobre esses judeus que tanto parece preocuparem a América” E Hitler aponta-lhe para o desengonçado ao seu lado: o dr. Ernst Hanfstaengl… Eu e Mr. Google espantamos-nos, como é que dois jornalistas, numa viagem em 1927, não aproveitam para falar dos personagens extraordinários que vão encontrar em breve, um em 1930, outro em 1933?!
Já no Leviathan, o paquete que de Cherburgo, em França, o levara a Nova Iorque, António Ferro tivera encontros imediatos de terceiro grau e não se deu conta. Sendo o seu inglês “de recruta”, Ferro escolhe um raro grupo que fala francês. No livro, refere um jovem americano, Ernest T. DeWald, professor de Arte na Universidade de Princeton, “que fala um francês consciencioso e certo.” Pois, sobre DeWald , Ferro limita-se a dizer que, na Europa, ele recebera “a notícia da morte de seu pai.”
Mr. Google e eu voltamos a espantar-nos. Então ele não adivinha que Ernest T. DeWald será um dos the monuments men, os homens que no Exército americano, durante a II Guerra Mundial, têm como missão tentar salvar as obras e os monumentos? Tenente-coronel, DeWald será até o comandante para as minas de tesouros de arte, Itália e Áustria. Em 1944, fará para os soldados ianques, um Guia de Roma, e vai passar os anos seguintes à cata da arte roubada pelos nazis. Em 1927, António Ferro falou disso com o seu companheiro Ernest T. DeWald? Não falou. Depois admirem-se que sejam os americanos (George Clooney) a fazer um filme sobre The Monuments Men – Caçadores de Tesouros (2013).
Publicado originalmente a 21 de setembro de 2014.