A única opinião que temos acerca de nós, seres humanos, e dos nossos actos é formulada por nós mesmos. Nunca fomos confrontados com a forma como outras espécies nos olham e nos julgam. Lembro-me de uma frase de Nietzsche que dizia algo como (e perdoem-me a tradução provavelmente pouco fiel, feita a partir da minha memória e não de texto escrito): “Gostamos muito de estar em plena natureza, porque ela não tem opinião acerca de nós.” Somos capazes de sentir uma alegria imensa quando estamos em comunhão com a natureza e temos, ao mesmo tempo, uma insaciável necessidade de a utilizar de acordo com os nossos interesses, não hesitando em passar por cima dela se isso for vantajoso para a nossa espécie. A questão que se coloca é: será que queremos saber o que pensa a natureza acerca de nós? E estaremos preparados para ouvir a sua opinião? Saberemos talvez o seu veredicto e não queremos ser confrontados com o julgamento. Ou, se calhar, até queremos.
Li, algures, uma notícia que dava conta que daqui a uns anos poderemos dialogar com os nossos cães. Se, à primeira vista, é boa notícia o facto de podermos finalmente comunicar com outra espécie animal através da linguagem humana, pensando melhor, será porventura uma experiência que trará aos nossos corações tanto prazer quanto horror. Está certo que a engenhoca que traduz os pensamentos dos cães para inglês deverá ser bastante limitada, quer neurológica quer linguisticamente. Poder-se-á ainda questionar a exactidão de tal instrumento. De qualquer das formas, serve a notícia para imaginar um mundo onde possamos trocar palavras, nós, seres humanos e os outros animais. Como formularão eles os seus pensamentos? Mais importante, como formularão eles os seus pensamentos relativos a nós? O que terão para nos dizer?
Durante muito tempo, houve tendência a considerar que seríamos os únicos seres sencientes. Como tal, tudo o que fizéssemos aos seres não humanos teria pouco significado para nós, porque, se não há sentimento ou autoconsciência, não há lugar a questões morais e éticas que nos obriguem a catalogar as nossas acções de acordo com a classificação de bem ou mal. No entanto, nos últimos anos, têm-se vindo a provar que não estamos sozinhos nisto de sentirmos emoções mais ou menos complexas. O que torna os nossos actos para com os outros animais e, inerentemente, para com a natureza, em algo que está sujeito a julgamento por parte não só de nós mesmos como por parte dos próprios visados.
Poderemos imaginar o que terá a dizer de nós um cão que tenha sido abandonado ou maltratado (e que jeito daria que nos pudessem dizer o nome e a morada dos seus cobardes malfeitores). Seria curioso perceber que valor dão aos maiores feitos humanos. Se ficam tão deslumbrados quanto nós por ver que conseguimos construir foguetões e criar arte e achar a cura para as piores doenças que nos afligem e que os afligem. E se nos respeitam mais por isso ou se lhes basta o facto de sermos seus companheiros de planeta. Mais interessante ainda seria estender o diálogo a todos os animais, não só aos que vivem connosco, como também aos que gostariam de viver bem longe de nós, mas não conseguem, porque insistimos em invadir e destruir o seu território.
Apesar de a motivação para a criação desta engenhoca parecer ser frívola (que giro é podermos ouvir o nosso cão a dizer que tem fome ou que quer ir passear), os resultados que poderá obter serão certamente muito úteis na forma como nos relacionamos com as outras espécies. A partir do momento em que olhem para nós e nos digam o que sentem ou o que pensam, deixaremos definitivamente de nos podermos considerar seus donos ou seus guardiães.
ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA
[19-01-2014]