Entrevista a Joaquim Letria

Jornalista uma vez, sempre jornalista. Assim é Joaquim Letria, 70 anos de vida, 50 de profissão, agora retirado nas lides académicas a ensinar aos jovens e futuros jornalistas a fazer diferente, como sempre, aliás, ele fez. Acaba de lançar um livro que é uma longa entrevista sobre o seu percurso profissional, um dos mais recheados do meio – dos jornais à televisão, passando pela rádio. Uma entrevista com vista para o pinhal, na sua casa na Aroeira.

Nascido a 8 de novembro de 1943, Joaquim Letria começou no jornalismo com 18 anos, no Diário de Lisboa, onde esteve até ao último número. Foi re­pórter internacional na Associated Press, cola­borou com o jornal República, esteve na prepara­ção do número zero do Expresso, escreveu para o Diário de Notícias, para a revista Flama e foi gran­de repórter da Anop. Em 1969, selecionado para a BBC, mudou-se para Londres, onde frequentou a London School of Journalism. Depois de 1974, voltou para dirigir a informação da RTP. Na televisão e rádio públicas foi autor e apresentador de pro­gramas, da informação a talk shows. Fundou O Jornal, o Tal & Qual e a revista Sábado e foi porta- voz no segundo mandato de Ramalho Ea­nes. Retirado do jornalismo, Letria leva 20 anos de ensino: na Esco­la Superior de Jornalismo do Porto, na Universidade Independen­te, na Autónoma de Lisboa e, atualmente, no Instituto Superior de Ciências da Informação e da Administração de Aveiro.

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Já se despediu do jornalismo?
_ Fui-me despedindo, foi indo devagarinho, e não foi nada doloroso. O jornalismo que se faz hoje pouco tem que ver com o que conheci.
O jornalismo está a morrer?
_Está a mudar. Não sabemos para o quê, nem onde vamos parar.
Por que razões os jornais deixaram de ser lidos?
_ Antes de mais porque são muito mal feitos. Têm sido mal governa­dos, mal dirigidos, estão em mãos que não deveriam estar. Deve con­cluir-se que falta capacidade de antecipação, essencial. Veja-se como o Jornal do Brasil se adaptou, trocando o papel pelo site. Não despediu, pelo contrário, dá trabalho.  E é frequentado, lido.
Que jornais lê?
_ O Público, embora nem sempre goste do que lá vejo, e o Diário de Notícias. Dou uma vista de olhos na versão online do i porque há lá quem mereça ser lido. O El País, o El Mundo, o Le Monde, o Liberation, o The Huffington Post e o The Guardian. E comparando, enquanto um jornal português pouco tem para ler – ou nada mesmo –, nos outros encontra-se matéria muito interessante.
Os jornalistas hoje não são piores do que ontem.
_ De maneira alguma. A culpa não está nos jornalistas. Hoje, os jo­vens entram nos jornais com melhor preparação do que há uns anos. E não é por terem o curso de Jornalismo, que ajuda no domínio das técnicas, é por terem um curso. É preciso acabar com o mito do «an­tes é que era bom». O problema é outro.
Não gostava de fazer uma revista ou um jornal? E volta a pergunta ini­cial: já se despediu do jornalismo?
_ Despedi-me porque fui sendo obrigado a isso. Mas gostaria muito de fazer uma revista mensal com qualidade, onde se lessem boas his­tórias. A minha vida foi criar jornais e revistas e programas. E coisas para as pessoas lerem e ouvirem. Penso que falta uma revista assim, de histórias, feita para pessoas que gostam de ler, devagar. Quem jul­ga que as pessoas não gostam de ler está muito enganado.
Afinal, o afastamento do jornalismo não foi indolor. No prefácio do livro, acabado de editar, de Dora Santos Rosa – Joaquim Letria, sem Papas na Língua –, numa longa entrevista sobre o seu percurso, Ra­malho Eanes fala mesmo em «ostracismo». Encontra uma explicação?
_Creio ser exagerado. Ostracismo seria se aqueles que o decretaram tivessem sido bem-sucedidos. E não é isso que eu vejo todos os dias. As pessoas lembram-se do que fiz e dizem-me que sentem a minha falta. É melhor isso do que se queixarem de eu não deixar os leitores, espetadores e ouvintes em paz, como sucede à maioria dos «comen­tadores» que há por aí. Ser-se desejado é muito gratificante.
Não ter papas na língua tem um preço?
_ Mas só quem paga esse preço reconhece a satisfação que dá.
Sente alguma amargura?
_De maneira nenhuma! Ser amargurado dá muito trabalho. Na vi­da é sempre bom partirmos para outra, seja ela o que for e quem for…
 Setenta anos de vida, cinquenta de profissão. Fale-nos do  momento mais especial da sua carreira, o mais feliz e gratificante.
_Os anos de Londres, cinco anos, quase seis, de 1969 a outubro de 1974, fase muito feliz. Profissionalmente, porque trabalhava numa grande escola – a BBC – onde aprendi muito e conheci pessoas muito interessantes (Basil Davidson, por exemplo, um ex-coronel do exército britânico que ajudara Tito na guerrilha contra os alemães e teve um papel fundamental nos movimentos de libertação africanos); pessoalmente, porque Londres era – é – uma cidade fantástica.
Boas festas, bons amigos, bom futebol, ótimo teatro, bom bailado,
excelente música. Tenho muitas saudades desse tempo.
Como é que chegou à BBC?
_Respondi a um anúncio e fui fazer os vários testes que incluíam inglês, naturalmente, mas também jornalismo, voz, tradução. Quando me comunicaram que fora escolhido, só então ganhei consciência de que ia trabalhar na BBC.
Regressa em 1974, para celebrar o 25 de Abril e assumir a direção de Informação da RTP. Como surgiu o convite?
_Foi feito pelo Raul Rego ( Ministério da Informação) e teve a aprovação do MFA. Eu tinha feito as reportagens das negociações entre Portugal e Guiné-Bissau e a RTP tinha utilizado esse trabalho. Devem ter gostado, e daí, julgo eu, o convite.
Veio ganhar 26 contos, muito, e para um período muito exaltante da história do país. No entanto, fala como se estivesse arrependido.
_Por vezes pergunto-me por que voltei, confesso. Estava lá tão bem. Profissionalmente, aqueles tempos portugueses foram muito interessantes, dediquei-me a eles intensamente. Tudo era novo. Não havia programas de debate, de entrevistas ao vivo, e eu comecei por aí, a ponto de ser acusado de querer fazer da RTP uma BBC.
Ao fim de 15 dias foi despedido – desagradara a Spínola. Pouco depois regressa, a convite de Eanes, entretanto nomeado para presidente da estação. Começam aí os famosos programas de debate. Recorda-se de algum em particular.
_Um programa chamado Teledomingo, com o estúdio cheio e em que toda a gente podia participar. Num deles, tive a oportunidade e a felicidade de mandar calar o Durão Barroso, ainda por cima para dar a palavra a um elemento do Partido Comunista.
A um «social-fascista», portanto. Conte.
_O Durão preparava-se para ler um documento com 17 páginas, aprovado numa RGA [reunião geral de alunos] de Direito. Era o que faltava! Tinha de tirar-lhe a palavra, mesmo sabendo o que me esperava. Pouco depois, estavam mais 300 membros do MRPP a chamarem-me social-fascista. A coisa ficou feia a ponto de o próprio Eanes ter-me aconselhado a sair de carro. Mas recusei, porque senão teria a mesma cena a repetir-se no dia seguinte. Correu tudo bem.
Já recordou esse episódio com Durão Barroso?
_Já e rimo-nos. O que lhe custou verdadeiramente foi eu ter dado a palavra ao «social- fascista».
Dessa época são também alguns dos debates mais célebres. Cunhal–Soares, por exemplo. Como conseguiu juntá-los?
_Mentindo a ambos, dizendo a cada um deles que o outro já tinha aceitado. De qualquer forma, julgo que ambos sabiam que aquele debate, naquela altura, era importante e fundamental.
Acredita que impediu muita violência?
_Creio que ajudou. O país vivia a ferro e fogo.
Para a história, Soares ganhou. O moderador do embate, na altura com 30 anos, concorda?
_Se virmos hoje o debate, quer dizer, se esquecermos a carga daquela época, talvez cheguemos à conclusão de que Cunhal não perdeu. Foi como a Argentina no futebol: há quem meta golos com a mão.
Soares ganhou com um «golo» sujo?
_O Cunhal era extremamente inteligente. Se teve aquele comportamento foi porque achava que devia ter, se deu aquelas respostas é porque achava que as devia dar. Visto à distância, o discurso dele nesse debate é coerente. Soares fez o que fez toda a vida, disse o que as pessoas queriam ouvir, e fê-lo de forma muito eficaz. Transformou o debate num grande empurrão para a Fonte Luminosa.
Em algum momento «torceu» instintivamente por algum?
_Não. Embora, como lhe disse, ficasse dividido quanto a quem venceu. Vendo à distância percebe-se melhor. E se pensarmos nos últimos 30 anos de Portugal, vê-se claramente.
Na altura fumava-se na televisão. Quantos cigarros num debate?
_Alguns, alguns. Eu fumava muito e comecei muito cedo, com apenas 9 anos. Felizmente, deixei de fumar há sete.
O 11 de Março de 1975 consolidou a sua relação com Eanes, acusado de estar envolvido no golpe. Por solidariedade com ele deixa a RTP e funda O Jornal, que por si teria sido o «Tribuna»…
_Eu nunca gostei do nome. «Tribuna» era a minha escolha, mas fui vencido. O Jornal foi uma experiência muito gratificante. Descobri nessa altura que era capaz de escolher bem as equipas e de pôr cada um a fazer aquilo que melhor sabia fazer. Juntei uma seleção de grandes nomes: o Cáceres Monteiro, o José Carlos Vasconcelos, o Joaquim Lobo, o Afonso Praça, o Francisco Sarsfield Cabral, o Fernando Assis Pacheco, o José da Silva Pinto e outros, todos muito bons. Só assim se explica o prestígio daquele jornal, e tão depressa obtido. Nunca tivemos um processo ou um desmentido.
Ao longo da vida contratou centenas de jornalistas. Nunca se enganou?
_Profissionalmente, não. Pelo carácter, em dois ou três casos. Repare que não é incompatível, nem eu misturei as coisas. Se perceber que um filho da mãe não tem hipótese de estragar o ambiente da redação, então vou buscá-lo.
Em contrapartida, reza a lenda, nunca pediu um emprego, com uma única exceção – quando deixou a direção de O Jornal. É verdade?
_É verdade. Nesse dia, uma sexta-feira, entrei no bar do Pabe e encontrei um administrador da Anop. Perguntei-lhe se não precisavam de um repórter razoável. «Quem?», perguntou ele. «Eu», respondi eu. Na segunda-feira seguinte estava a estrear-me na Anop.
De diretor «baixou» a repórter. Não é vulgar.
_Nunca liguei a essas coisas.
Muitos anos depois, com um estatuto muito diferente, regressava a uma agência. A primeira, a Associated Press (AP), foi, diz sempre, a sua grande escola. Todos os jornalistas deveriam passar por uma agência noticiosa?
_Sem dúvida. A AP foi a minha licenciatura, a minha grande tarimba. O Diário de Lisboa foi o meu mestrado e a BBC foi o meu doutoramento. Isto se brincarmos com técnicas e linguagens, estilos e tipologias, a somar à London School of Journalism. Mas a grande escola, mesmo, foi a vida e os grandes mestres foram as pessoas. E quanto mais difíceis, mais me ensinavam.
Recorda alguma reportagem da altura?
_A guerra no Biafra, a revolta no Katanga, a guerrilha na Bolívia, o assassínio de Che Guevara e a entrevista que fiz ao presidente general Barrientos. Entre muitas outras coisas.
Sente saudades das reportagens?
_Não tanto de estar no terreno, disso já não sinto. Mas de as escrever, sim. Muitas saudades, mesmo.
Em 1979, regressa à RTP com o Tal & Qual, um programa de informação e entretenimento. E pela primeira vez é despedido, ou seja, a direção da RTP termina com o programa. Versão oficial: «Incomodou a Igreja.» Qual é a outra?
_O Tal & Qual tinha duas rubricas muito populares: a entrevista histórica e os apanhados. Numa dessas entrevistas – escritas pelo Hélder Costa e interpretadas pelo Carlos Wallenstein –, o entrevistado foi uma figura da Igreja. Disseram que a Igreja não gostou. Desculpas e tricas do Partido Socialista então no poder. Mas não sei porquê. Certo é que uma semana depois estava nas bancas um jornal com o mesmo nome e as mesmas rubricas e que foi um êxito enquanto durou.
Como era a relação com Carlos Cruz, diretor de programas da altura?
_O Carlos Cruz limitou-se a transmitir-me uma ordem que recebera. Tivemos sempre uma relação cordial.
1979 foi um ano agitado – saiu da RTP, fundou o Tal & Qual e foi convidado para porta-voz de Ramalho Eanes, então a cumprir o segundo mandato presidencial. Porque aceitou passar para o outro lado?
_Antes de aceitar tive muitas dúvidas. Por isso mesmo, fui a Paris falar com Pierre Salinger, jornalista da CBS e o primeiro porta-voz de um presidente norte-americano, no caso o John Kennedy. Apesar de não nos conhecermos, tínhamos amigos comuns. Expus-lhe as minhas dúvidas, falei do meu gosto pelo jornalismo e de como gostava de estar no Tal & Qual, mas também lhe disse que tinha uma grande vontade de conhecer o outro lado. «Não hesites, só vais aprender e enriquecer-te como profissional», disse-me ele. É certo que já estava inclinado para aceitar, mas esta conversa foi importante.
Passando para o «outro lado», o regresso ao jornalismo faz sentido?
_Depende do que se faz do «outro lado». No meu caso, nada me envergonha. Nunca pedi favores a jornalistas, e enquanto estive naquelas funções nunca fui spin doctor. Nunca pedi a um jornalista para escrever isto ou para não escrever aquilo, nunca lhes perguntei o que iria ser publicado ou qual era a manchete do dia seguinte.
Mas em Belém recebia essa informação ou não?
_Recebia, mas não que me fosse dada por jornalistas. Sabia muitas vezes pelos assessores políticos que, esses sim , talvez recebessem a informação de gente dos jornais. Se eu tentasse, o mais provável seria encontrar gente disponível para os favores, pois alguns ofereceram–se. Mas nunca tive essa tentação. Nem nunca menti aos jornalistas.
Nem mais tarde, como agência de comunicação?
_A última coisa que uma agência de comunicação deve fazer é mentir aos jornalistas. Em Portugal, infelizmente não se percebia isso. Mas até isso mudou, felizmente. Uma agência de comunicação séria ensina e ajuda a comunicar melhor e contribui para que melhor se compreenda o papel do jornalista. O resto eram mitos. Como aquele de o «publicitário ser um exagerado».
Conhecido «o outro lado», onde se sentiu melhor?
_Não é importante como nos sentimos. O importante é perceber-se como a vida funciona e descobrir gente interessante e que valha a pena conhecer, onde quer que ela exista. Senti-me muito bem em todos os lados, desde que se esteja num lado de cada vez.
O que prefere: entrevistar ou estar do lado do entrevistado?
_Claro que fazer perguntas dá trabalho, mas é mais cómodo.
Na função de jornalista, na preparação das entrevistas, informava o entrevistado das perguntas que tencionava fazer?
_Nunca. Recordo uma entrevista com Mário Soares. Ao entrar em estúdio, advertiu-me no sentido de não lhe fazer determinada pergunta. Pois foi exatamente com essa pergunta que comecei. Ele não gostou, claro. Paciência. E há a entrevista a Miguel Cadilhe, em que fiquei a fazer perguntas diante duma cadeira vazia. Mas estamos a falar de entrevistas de informação em que o entrevistado sabe ao que vai. Portanto, não há preliminares, nem se deve falar do que vai suceder. Num talk show é diferente, aí o espetáculo é a conversa, a graça, a inteligência, o bom gosto ou o humor do entrevistado. E é importante ver-se como o convidado desenvolve as respostas, se é sintético, se fala demais, se tem graça ou o melhor é despachá-lo antes que deixe toda a gente a dormir.
De tantos debates que moderou, nomeadamente nas campanhas eleitorais, há alguma pequena história que não tenha ficado registada?
_Em dois debates aconteceu uma coisa curiosa e semelhante: Eanes e Sampaio aproveitaram o momento que antecede o início do debate para ter uma curta conversa com Otelo e Marcelo Rebelo de Sousa, respetivamente, num canto do estúdio. A partir daí, quer Marcelo quer Otelo apagaram-se completamente. Sei o que vi. Nunca fiz qualquer referência a estes factos. Um para as eleições para a Câmara de Lisboa, outro para a presidência da República.
Intimidaram o adversário?
_Pode alguém ter dito à outra parte «ou te portas bem ou…» Mas não sei mais do que isto e o que me pergunta já é especulação…
Os poderes tentam sempre controlar a informação?
_Estou à vontade para dizer que todos os partidos, todos, tentaram controlar e pressionar a informação. Mas de todos, o pior foi o Partido Socialista. E só não foi pior porque a RTP tinha na presidência um senhor de grande integridade, por acaso também do Partido Socialista – João Soares Louro. E o pior nem é ver a pressão chegar, mas sim perceber que há quem ceda.
Viu muitos jornalistas ceder?
_Vi fazerem-se fretes suficientes para depois serem bem compensados com serviços extra na RTP Internacional ou na RDP África. E quem não fazia fretes pagava um preço.
Pagou esse preço?
_Ainda estou a pagar. Deve ser a prestações suaves. Mas atenção, eu não confundo as coisas. Tive e tenho grandes amigos no Partido Socialista, um partido fundamental para democracia.
Está a pensar, por exemplo, no incidente diplomático levantado por uma suposta frase racista que terá proferido num Cobras e Lagartos, programa que manteve durante oito anos na RDP?
_Por exemplo. Foi montada uma cavalinha para acabar com o programa e nem teria sido necessário fazer tão triste figura porque mal o Partido Socialista, com António Guterres, ganhou as eleições, fui pôr o programa à disposição do José Manuel Nunes, o então novo presidente da RDP.
Associa o incidente ao PS porquê?
_Porque era o António Guterres que estava no Governo. Mas o problema é sempre a cambada de assessores. Essa gentinha vive disso.
Em 1989 fundou a Sábado. Gostou de trabalhar com Pedro Santana Lopes?
_Assim-assim.
Assim-assim porquê?
_Por vezes era um prazer trabalhar com ele, noutras alturas nem por isso.
Como acha que é visto, hoje, pela classe?
_O mais certo é a maior parte não saber quem sou.
Como gostava de ser lembrado?
_Não sei nem me preocupo.
Se tivesse menos 30 anos, o que estaria a fazer?
_Teria 40, viveria talvez em Londres e estaria provavelmente a ver o Manchester United e o Chelsea e a divertir-me com muitas pessoas de quem gosto.
E agora, com 70 anos, porque não uma autobiografia?
_Não, que horror. As autobiografias fazem lembrar aqueles tipos que se assoam e olham para o lenço.
Quis ser jornalista pela profissão em si ou porque desde sempre gostou de escrever?
_Começou por ser o gosto pela escrita. Depois o gosto pela jornalismo em defesa dos pobres e dos mais fracos. E, depois, havia o Tintin: o gosto pelas viagens e pelas aventuras.
Que jovem de 18 anos era o Joaquim, órfão de mãe desde o nascimento, já com uma história de clandestinidade, no PCP, interessado pela escrita, pelos livros, de uma família de classe média com desafogo financeiro?
_Era um gajo divertido, resolvido a agarrar a vida pelos cornos.
E a recuperar da poliomielite, que o atacou tinha 10 anos. Foi um combate solitário?
_Longo e solitário. A recuperação foi difícil, sobretudo a de uma mão, e tempo houve em que abotoar a camisa levava um tempo infinito. Quando os dois braços deixaram de servir foi precisa muita força de vontade, mas nunca me servi da doença como desculpa.
Como era a vida de um miúdo de 12 anos, criado pelos avós, que não podia usar as mãos?
_Tentava fazer uma vida normal sem sentir discriminação. Aprendia desenrascar-me. No elétrico, para pagar o bilhete, pedia que me tirassem o dinheiro do bolso. Mas era natural que, nestas circunstâncias, a preocupação dos meus avós com o meu futuro profissional fosse maior do que seria normal. Mais tarde, no jornal, aprendi a escrever com um dedo. E era muito rápido. A doença deu-me, no entanto, uma ou duas alegrias: escapar à Mocidade Portuguesa, obrigatória, e às aulas de Trabalhos Manuais.
Com 18 anos, em 1961, entra no Diário de Lisboa. Como foi o primeiro embate?
_Fui muito bem recebido, mas o embate era difícil porque éramos atirados aos leões. Ninguém ensinava nada: ou se aguentava ou adeus. A coisa era simples: muito bem-vindo, agora governa-te. Mas como tinha acabado de chumbar de ano não podia falhar. Recordo–me do primeiro dia.
O dia em que conheceu o escritor Manuel da Fonseca?
_Esse mesmo. Começámos no mesmo dia e tenho por ele uma enorme amizade e respeito. Ele vinha de bicicleta da Parede, todos os dias. No primeiro dia, fui perguntar-lhe se sabia onde era a casa de banho. Pois também ele não sabia. Entre outras coisas que não nos ensinavam, também não nos ensinavam isto. Ficámos amigos para sempre.
E o primeiro trabalho?
_Um incêndio num prédio da Avenida Duque de Loulé. Nunca tinha visto um incêndio e, claro, fui sem que me fosse dada uma indicação. Disseram «vai». E pronto.
Correu bem?
_Não havia tempo para correr mal. Contei o que aconteceu, falei com os bombeiros e com a polícia, que me deram os dados todos. E ala, que se faz tarde. Fui escrever a notícia.
Nesses primeiros tempos, nunca chegou a pensar que talvez tivesse escolhido a profissão errada?
_Nunca. E mais: deram-me a escolher. No Diário de Lisboa perguntaram-me se queria um emprego ou ser jornalista. E sentenciaram: «Se quiseres ser jornalista vens ganhar 50 escudos por dia e quando não trabalhares não ganhas.» Só seis meses mais tarde entrei para estagiário. Nos primeiros tempos atendia telefones, quando atender telefonemas de correspondentes requeria alguma responsabilidade.
Como eram as redações desses tempos, quando num mesmo espaço se cruzavam talentos como Cardoso Pires, Cáceres Monteiro, Mário Zambujal, Assis Pacheco?
_Muito diferente, basta dizer que as pessoas falavam, comiam, saiam, divertiam-se umas com as outras. Frequentavam as casas umas das outras. Juntar-lhe-ia muitos outros nomes desses camaradas e amigos. Mas não tire estes: Luís de Sttau Monteiro, Manuel da Fonseca, Mário Castrim, José Saramago, Carlos Botelho, Vítor Direito, Norberto Lopes, Mário Neves.
Em poucos anos ganha estatuto invejável. Faz reportagens na América Latina, pouco depois da morte de Che Guevara, e seis ou sete anos depois torna-se correspondente em Londres do Diário de Lisboa. Ficou surpreendido com o seu próprio sucesso?
_Não é rábula, mas nunca tive tempo para pensar nisso. E pensando bem, não fico surpreendido. Deu-me muito trabalho.
Naquele tempo era mais fácil?
_Mais fácil? Nem pensar. Mas talvez as pessoas prestassem mais atenção. Dou um exemplo: há um par de anos, em conversa com um amigo, responsável de um jornal, nas instalações desse jornal, disse-lhe para prestar atenção a um estagiário com quem, por acaso, tinha acabado de me cruzar na redação. Recordava-me bem dele porque fora um dos meus melhores alunos. Resposta: «Estou-me nas tintas, uns entram outros saem, quero lá saber se são bons ou maus.» Percebe-se assim por que razão os jornais estão como estão. Esta gente, sim, devia ser chamada a prestar contas sobre o fim dos jornais. Soube também na altura que o estágio, claro, não era remunerado. O estagiário ainda perdia dinheiro com alguns serviços.
Este cenário, até como professor, entristece-o?
_Não, e sabe porquê? Porque era previsível. Durante anos houve quem alertasse, sugerisse, desse ideias – ninguém quis saber. Quem não ouviu, que encontre, agora, soluções. De resto, como professor, preocupa-me a capacidade que cada aluno terá para enfrentar o desemprego.
Foi presidente do sindicato. Como podem os jornalistas lutar contra a atual situação?
_O sindicato pode ter um papel muito importante.
Ao longo dos anos foi perdendo influência. Porquê?
_Fui presidente do sindicato no tempo da contratação coletiva. Em 1987, decretei uma greve nos jornalistas para defender salários e postos de trabalho coletivo. Na altura havia cerca de 600 e tal sindicalizados; hoje, ultrapassam os cinco mil. Naquele tempo lutava-se por um contrato coletivo. Depois começaram as contratações individuais, cada um passou a acordar com a administração, uma parte por cima outra por baixo da mesa. Neste contexto, para que queriam o sindicato? Agora, só agora, estão a chegar à conclusão de que se calhar faz falta.
Perante a situação de hoje, a greve ainda é um meio de luta eficaz?
_É preciso mais imaginação e criatividade. Talvez não seja já a forma de luta mais eficaz. Mas para começar qualquer coisa e protestar, não está mal.
O que pode ser feito?
_Antes de mais, fomentar o diálogo entre os jornalistas. Nas redações, as pessoas pouco falam umas com as outras. A palavra camarada passou a proscrita, parece mal, não se diz. Por outro lado, o sindicato, que tem gente capaz, precisa de se modernizar. A própria CGTP está esta anquilosada e o Carvalho da Silva faz muita falta. Um sindicato como o dos jornalistas já devia ter criado um grupo de trabalho para pensar na resolução dos problemas. Porque não trazer para esse grupo o Carvalho da Silva e outros que ajudassem a dar a volta a isto e a pôr uma data de gente no lugar? Gente que não pode ter a oportunidade de ficar na história pelas asneiras que está a cometer. Até porque – e isto é muito importante – o público quer alternativas.
Está disponível para ajudar?
_Estou à disposição de quem entender, para, com outros, ajudar a pensar de forma a melhorar a vida dos jornalistas, a qualidade de informação de uma sociedade que gostaríamos que não deixasse de ser completamente democrática.
A precariedade e a ética – os tempos não estão fáceis?
_No jornalismo e em tudo. A precariedade vulnerabiliza e as pessoas cedem. Cedem aos fretes, porque não sabem se no fim do mês ainda têm emprego. Não é maneira de se trabalhar, claro. Principalmente numa atividade que tem muito que ver com ética. Para estar à vontade e poder dizer ao chefe o que me apetecesse, tive sempre dois empregos. Quem tem só um pensa duas vezes, sobretudo se tiver filhos.
Ao longo da história, os direitos foram sendo conquistados sempre com sacrifícios – até com a vida – de quem também tinha filhos. O que mudou?
_Porque dantes valia a pena. Dantes olhava-se para o lado e encontrava-se outro como nós que, viesse o que viesse, não arredaria pé. E assim se ia congregando mais pessoas. Hoje, sente-se que não vale a pena. Hoje olha-se para o lado e não se vê ninguém. Ou então pode deixar de estar lá a qualquer momento. Pensar em avançar sozinho é de maluquinho.
A autorregulação é suficiente?
_Há a lei geral do país e depois há a qualidade de cada um de nós. Essa vem sempre ao de cima e o público nunca se engana – sabe quem é ou não é sério. Não me parece que os códigos resolvam o problema, nem sequer os organismos a funcionar nesse sentido. Basta pensar na Comissão da Carteira, com a qual tenho de resto uma experiência interessante.
Então?
_Fui entrevistado por um jornal e na legenda de uma das fotos referiam-se a mim como «o jornalista Joaquim Letria». É sabido que entreguei a carteira profissional em 1989, mas não me parece motivo para ser inquirido pela Comissão da Carteira, naquele caso, de «usurpação de funções». Tive de arranjar um advogado para a contingência duma coima de milhares de euros.
Diferenças entre uma notícia hoje e há 20 anos.
_Mudou a linguagem. E provavelmente o conceito de notícia. Veja–se os noticiários em Portugal. Passam uma série de «coisas» que não deviam ter ali lugar. Deixei de ver.
E quem ainda faz bom jornalismo na televisão?
_Não sei responder. Na televisão só vejo os canais de séries e os de cinema e os jogos de futebol, sem som.
Apesar de tudo, deve estar-se otimista?
_Vai chegar um ponto em que terá de acontecer alguma coisa. E por isso estou otimista

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