E depois de abril

Um dramaturgo, uma jornalista, uma atriz, uma cantora, um realizador. Todos recriaram, no seu trabalho, pedaços da revolução. E todos nasceram depois dela. Como é reviver o que nunca se viveu?

 TIAGO RODRIGUES
35 anos, autor da peça Três dedos abaixo do joelho

«A maior ameaça à democracia é o atual discurso do ‘isto não é uma questão ideológica, temos é de fazer as coisas funcionar’. Como se, exatamente, para as coisas funcionarem de determinada maneira, não fosse antes necessário tomar uma decisão ideológica.»

Lá em casa, o ambiente era «bom, de esquerda: extrema, pela parte do pai, próxima do PCP, pela parte da mãe.» Descer a avenida no 25 de Abril sem­pre foi um pouco como o Na­tal, uma das festas do ano, tem­po de encontrar família e amigos e come­morar o nascimento da democracia. Tiago Rodrigues, ator, encenador e dramaturgo, nascido em 1977, três anos depois da revo­lução, viveu-a em diferido, nas redações on­de o pai, jornalista, trabalhava; nos centros de saúde onde a mãe, médica, dava consul­tas; ao serão, através das conversas e me­mórias e histórias dos adultos. «A minha relação com o Portugal da ditadura fascis­ta é a mesma que se tem com Nova Iorque: um lugar onde temos a sensação de já ter es­tado, tanto é o que sabemos, vimos, lemos e ouvimos sobre ele, mas onde nunca esti­vemos. Em miúdo, os protagonistas políti­cos povoa­vam, lado a lado com as persona­gens dos irmãos Grimm, o meu imaginário. O Mário Soares e o Álvaro Cunhal eram fi­guras comparáveis à raposa e à cegonha. O meu desenho mais antigo, que ainda ho­je guardo, é a cara do Mário Soares copiada de uma capa d’O Jornal

Talvez por isso, a revolução, o país que esta gerou, as ideias, os problemas, as con­tradições, as preocupações, a política, es­tão, implícita ou explicitamente, em todo o seu trabalho. E também em Três dedos abaixo do joelho, peça que escreveu, ence­nou e estreou em 2012, no Teatro Nacio­nal D. Maria II e que será agora reposta no Teatro Maria Matos, no âmbito das come­morações dos 40 anos do 25 de Abril, em Lisboa. Em palco, resgatados na Torre do Tombo, dos arquivos do SNI (Serviço Na­cional de Informação), antes secretos e em 2005 tornados públicos, esgrimem-se ar­gumentos da censura para proibir e excer­tos de peças de teatro proibidas, como An­dorra, de Max Frisch, que Carmen Dolo­res, então à frente do Teatro Moderno de Lisboa, durante sete anos consecutivos tentou levar a cena, recebendo invariavel­mente despacho de «proibido», sem mais, o último dos quais a 25 de abril de 1969. Na noite da estreia de Três dedos abaixo do joelho, terminado o espectáculo, a atriz disse ao autor: «Obrigada. Finalmente, ti­ve a minha resposta.» Uma resposta que traz o passado ao presente e questiona se a censura acabou, de facto. «Um dos argu­mentos mais utilizados pelos censores da ditadura era “o público não está prepara­do”. E isso é hoje. Quantos diretores de te­levisões, rádios, jornais, programações e informações dizem: “Isto não, as pessoas não vão perceber, não estão preparadas”?»

Questionar faz parte do processo criati­vo de Tiago, mas uma coisa é clara para o encenador, o Portugal em que nasceu não é o mesmo que lhe deu a matéria para es­ta peça. «Podemos criar paralelos, mas são dois portugais completamente diferentes. As celebrações do 25 de Abril para mim não são do dia, porque isso é pôr um verniz em cima de um acontecimento, são destes 40 anos, de podermos continuar a questionar se é isto a democracia, de termos um docu­mento nobre que nos permite derrubar go­vernos para o defender e que é a Constitui­ção da República Portuguesa. Essa é demo­crática e essa ninguém nos tira.»

 

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ANA SOFIA FONSECA
35 anos, jornalista, autora de Capitãs de Abril

«Esta foi uma revolução feita com muita ingenuidade. Muita gente pensou que se fazia a revolução e no dia seguinte acordava-se num mundo perfeito. Não há mun­dos perfeitos. Ou demora-se muito a lá chegar.»

Acaba de lançar o livro Capitãs de Abril, em que dá voz às mulheres dos militares, e a outras duas: Celeste Caeiro, mais conhecida por Celeste dos cravos, que sem saber deu o nome à revolução, e Clarisse Guerra, a única mulher que leu um comunicado do MFA. Num país e num tempo e numa revolução de homens, a jornalista Ana Sofia Fonseca fixou a «objetiva» no ângulo menos focado: o das mulheres, que tiveram um papel não tão secundário como a história reza. A ideia já tinha servido de mote, há dez anos, para um trabalho na extinta Grande Reportagem. Voltou lá, recolheu testemunhos, foi à procura de mais histórias e a reportagem virou livro. «Há temas a que apetece voltar e este é um deles. Sempre gostei muito de história e qualquer revolução tem muito de romantismo, de aventura, a adrenalina própria das grandes mudanças, muito amor, muito ódio, e isso interessa-me. Como me interessa o tema das mulheres. E percebi que tinha a sorte de ter ainda memória viva, à qual tinha acesso, e fui ouvi-la. Este livro é sobre as mulheres que mais de perto viveram o golpe militar – digo golpe militar e não revolução porque houve muitas mulheres que tiveram um papel na luta pela liberdade, como as do Partido Comunista, que viveram na clandestinidade, mas eu foquei-me nas que partilhavam a vida com os militares. E há histórias extraordinárias.» Como a de Alda Costa Martins, que na noite de 24 para 25 de abril andava com o namorado, o Costa Martins, da Força Aérea, num carro carregado de armas, com a telefonia ao colo, e foi ela que evitou que ele entrasse na rádio, pronto a disparar, quando falhou a emissão da primeira senha.

Para Ana Sofia Fonseca, o facto de ter nascido quatro anos depois do 25 de Abril não é uma desvantagem. «À minha geração, que não o viveu e não conheceu a ditadura na pele, é possível um maior distanciamento e uma predisposição para ouvir estas histórias, diferente de quem tem as suas próprias vivências e memórias, necessariamente intensas porque foi um período intenso.»

As da jornalista, nascida e criada em Azeitão, são emprestadas e as primeiras não tinham tanto que ver com aqueles que lutaram para fazer a revolução, «mas até mais com o outro lado, o dos que foram para o Brasil. Uma das minhas primeiras memórias políticas é um autocolante do Sá Carneiro num quadro de madeira que havia em casa dos meus avós».

Seja como for, está certa de que teria estado em maus lençóis se tivesse nascido, por exemplo, quarenta anos antes do 25 de Abril. «A liberdade é fundamental e eu só tenho de agradecer nunca ter vivido privada dela.»

 

Fotografia de Carlos Martins/Global Imagens
Fotografia de Carlos Martins/Global Imagens

MARIANA MONTEIRO
25 anos, protagonista de Mulheres de Abril

«Mulheres de Abril deu-me a possibilidade de trabalhar vários registos enquanto atriz e de «viajar na máquina do tempo». Foi um projeto que me deixou muito feliz e do qual sempre me recordarei com enorme carinho.»

Quando nasceu, no Porto, a democracia já tinha feito 14 anos, Portugal fazia parte da CEE e o atual presidente da República, Cavaco Silva, era primeiro-ministro. Podia ser filha de Ana, nascida no dia 25 de abril de 1954, personagem que encarna na minissérie Mulheres de Abril,que a RTP estreia amanhã para celebrar os 40 anos da revolução. Um desafio enorme, nas palavras de Mariana Monteiro, «antes de mais, pela responsabilidade de fazer parte de um elenco de excelência, numa série histórica, e depois porque, fazendo a Ana 20 anos quando se dá o 25 de Abril, obrigou-me a um trabalho de pesquisa muito grande, pois tive de “vivenciar’’ um período e uma realidade completamente diferentes dos que conheço».

Não é uma história que lhe seja estranha, começou a ouvir falar no 25 de Abril, na escola e em casa, sobretudo por ocasião dos festejos e nos períodos eleitorais. «Era nesses momentos em particular que se falava dos tempos da ditadura, da falta de liberdade, das desigualdades sociais, da censura, das perseguições políticas e das conquistas da liberdade política e de expressão e da igualdade de direitos.»

Ainda assim, para melhor entrar na pele de uma mulher que viveu este período marcante, Mariana preocupou-se em saber mais e aprofundar conhecimentos, através de livros, jornais, revistas e testemunhos de quem lá esteve para «perceber o contexto do antes, do durante e do depois». Consegue imaginar como teria sido, mas apenas isso. «Entre uma imagem e a realidade vai uma longa distância. Com este trabalho, ganhei uma consciência maior do quão limitador e castrador era viver em ditadura, sobretudo sendo mulher. As mulheres eram discriminadas na sociedade e na família e consideradas de condição inferior. O 25 de Abril libertou-as de muitas amarras».

A oportunidade de perceber, de forma mais consciente, as circunstâncias, o contexto social e político da época e as causas que provocaram o derrube da ditadura e o nascimento da democracia, deu-lhe uma visão global da história recente da sociedade portuguesa, das grandes transformações sociais, culturais, políticas e geracionais. Talvez por isso Mariana Monteiro encaixe no leque dos que sentem que o que se pretendia com o 25 de Abril não foi plenamente alcançado. «São disso sinal os tempos atuais, marcados pela pobreza e a desigualdade social. A ideia da revolução, ao acabar com um sistema político opressor, tem por detrás uma vontade de mudar mentalidades, de se modernizar, de progresso social e económico. Mais do que eu, os grandes revolucionários do 25 de Abril não deviam imaginar para Portugal aquilo a que se assiste hoje: um país com alguma falta de visão e de futuro pouco promissor sobretudo para nós, jovens. No entanto, penso que temos imenso potencial enquanto nação e acredito que a mudança é possível. E quero participar nela ativamente.»

 

Fotografia de Vítor Rios/Global Imagens
Fotografia de Vítor Rios/Global Imagens


ANABELA
37 anos, cantou E Depois do Adeus

«Acho que nunca mais vai escrever-se como se escreveu nas décadas que antecederam o 25 de Abril. Naquele tempo e naquelas circunstâncias, parece que havia mais paixão. Havia poetas extraordinários e a censura acabava muitas vezes vencida pela inteligência, a criatividade e a beleza.»

É de Almada, terra com tradição de luta e margem certa para os comu­nistas, mas os pais, de direita, nunca se envolveram politicamente e não viveram com entusiasmo a revolução. Lembra­se de o irmão, 14 anos mais velho, ir a manifestações e contar que durante o período quente não havia aulas e os alunos é que mandavam. «Nasci em 1978, por isso esse ambiente é muito distante para mim. Aquele em que cresci já não tinha nada que ver, a política não fazia parte do quotidiano. De todo.» Nem em casa nem na Escola António Gedeão, onde estudou. Desde miúda queria ser três coisas, primeiro cantora e atriz, depois psicóloga. A mãe foi a grande entusiasta da carreira artística, o pai puxava mais pela académica. Anabela não desiludiu nenhum deles. Formada em Psicologia, é por enquanto da música (que canta desde os 8 anos) e da representação que vive.

E foi precisamente a entrada para o teatro que lhe abriu os olhos para o passado recente do país. «A minha tomada de consciência do que foi o 25 de Abril e a ditadura deu­-se através do que os meus colegas mais velhos me contavam – a Manuela Maria, a Lurdes Norberto, o Carlos Quintas, entre outros. Eu ficava completamente fascinada, a ouvi-los e a tentar imaginar como teria sido a censura, a repressão, a proibição de expressar ideias diferentes das do regime. Como foi possível? Ainda mais no teatro, que é uma forma importantíssima de falar do estado do país, da cultura, das pessoas, da realidade. Matar isso é matar um povo.»

Quando, em 2010, incluiu no álbum Anabela a canção E Depois do Adeus, uma das senhas da revolução, que interpretou numa versão jazz, não o fez com motivações políticas, e no entanto sente o peso do seu significado. «A ideia era escolher as canções mais emblemáticas e de maior sucesso nas décadas de 1950, 1960 e 1970, mas obviamente nunca me pude esquecer de que esta música simbolizava a conquista da liberdade e o fim da ditadura, pela qual tanta gente lutou. Cada vez que a canto tenho noção da enorme carga emocional que contém, mais até do que política, porque foi detonadora da descompressão e da conquista. Certamente, não a interpreto com a mesma emoção de quem viveu os acontecimentos, mas é uma emoção cantá-la porque me contaram como foi.»

 

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IVO M. FERREIRA
38 anos, realizou Águas Mil

«Quando entrei no Até Amanhã Camaradas, pensei como seria se estivesse na pele da minha personagem (depois concentrei-me em decorar o texto e não tropeçar nos cabos). Pergunto-me muitas vezes quão grande é a minha coragem e como reagiria, se posto à prova: tortura, porrada, isolamento.»

Filho de atores, nascido no verão quente de 1975, cabia ainda na alcofa quando andava do Teatro O Bando – ainda saltimbanco – para as reuniões da UDP, «no tempo em que o tabaco não fazia mal aos passivos (e não fez)». Pouco tempo depois, a casa passou a ser a Comuna (Teatro de Pesquisa), para onde ia todos os dias, no fim das aulas, e que lhe valeu na escola a alcunha de «comuna», estatuto agravado com as presidenciais de 1985. Enquanto a maioria dos colegas envergava autocolantes do «Freitas» ou do «Soares», Ivo Ferreira andava com a «Mulher» ao peito (Maria de Lourdes Pintasilgo). «Foi aí que me desconsideraram de vez. Fiquei amigo de um que tinha o autocolante do “Zenha”. O que vale é que as raparigas não me hostilizaram tanto. Um dia em que eu não levava autocolante os rapazes vieram ter comigo e perguntaram: “Eentão, deixaste-te de mariquices?”. “Hoje é dia de reflexão”, respondi. Não sei se abonou a meu favor…»

As memórias do cineasta, que até hoje quando está em Portugal, todos os 25 de Abril, desce a avenida com os «putos» e a mulher, Margarida Vila-Nova, são muitas. Durante anos, sentiu inveja de não o ter vivido, ou ao PREC, a imaginação picada pelas imagens dos acontecimentos ou a música do José Mário Branco ou as conversas dos pais e dos amigos. Marcante sobretudo a sensação de «fracasso». «Em miúdo não percebia a luz e a tristeza que havia nos olhos deles nas comemorações da revolução. Mas, apesar disso,o meu pai nunca deixou de a elogiar: “Olha que este país antes do 25 de Abril era uma grandessíssima merda. Um enorme atraso de vida”.» Marcante também a prisão de pessoas próximas pelo caso FP 25 de Abril. «Para não me assustar ou hostilizar quem estava preso, os meus pais disseram–me: “Olha, filho, por algum motivo não andámos a pôr umas bombitas aqui e ali, mas podia ter-nos calhado o serviço!”» E depois aquele carro, estacionado à porta da Comuna para qualquer eventualidade e depois a libertação dos que foram presos e um miúdo que tinha ficado na prisão com a mãe. «Era o miúdo mais generoso que conheci.»

Terá sido tudo isto a matéria da longa-metragem Águas Mil, de 2009, estreada em 2011, e que neste mês será passada em Macau, onde Ivo M. Ferreira vive atualmente, e na China, legendada em mandarim, graças à associação cultural Babel. A busca de um filho pelo (seu) passado, fazendo o percurso do pai desaparecido, membro de uma organização armada nos anos quentes do pós-25 de Abril.

Sobre o filme escreveu-se que é uma forma de o cineasta fazer a sua vivência alheia da geração dos pais, que constitui o seu património afetivo, como um autorretrato através dos outros, o retrato de um jovem que procura o seu pai e o seu país, entre as memórias de um passado revolucionário e o presente indefinido de quem busca o seu caminho. Ivo Ferreira agradece a quem o escreveu. Mas não só. Também ao pai (que entra no filme) e a Francisco Martins Rodrigues [fundador da UDP] pelas tantas conversas que tiveram. «Há duas coisas determinantes na minha forma de ver o mundo e no passar isso para o trabalho: o Mauser, de Heiner Müller, na Cornucópia, e o depoimento do Chico Martins Rodrigues em tribunal – que o meu pai me deu para eu e o Nicolas Brites tentarmos, em adolescentes, adaptar para teatro. Basta ver o Águas Mil para perceber.»